Quase lá: O perigoso flerte de Lula com o fracasso

Presidente não pode cometer o mesmo erro dos industriais brasileiros nos anos 90, que abraçaram a agenda neoliberal e cavaram a própria cova. Sanha pelo déficit zero implodirá o projeto de reconstrução — e pode desgastar o governo e desesperançar parte das lutas sociais

OutrasPalavras

Publicado 24/09/2024 às 16:56


Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

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Uma das questões mais intrigantes no campo da ciência política e da sociologia é a busca de compreensão de fenômenos em que os chamados atores sociais assumem como suas algumas bandeiras e programas que, na verdade, pertencem a seus adversários ou mesmo inimigos na disputa ideológica, na chamada luta de classes. Situações como estas podem ocorrer no nível micro e até mesmo individual, mas também em uma abrangência mais ampla, envolvendo partidos, governos, sindicatos e entidades associativas.

Um dos processos mais recentes e surpreendentes foi a adesão das forças políticas vinculadas à então chamada social-democracia europeia aos cânones do neoliberalismo e aos preceitos do Consenso de Washington, em especial a partir da chegada ao poder durante a década de 1980. Tal movimento teve início na França, logo depois da vitória de François Mitterrand nas eleições presidenciais em 1981 e a participação ativa de seu Partido Socialista (PS) nos governos a partir de então. Ele foi reeleito em 1988 e assim completou 14 anos como chefe de Estado, uma vez que à época o mandato presidencial era de 7 anos.

Na Espanha deu-se processo bastante semelhante. O Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) obteve maioria de votos nas eleições de 1982 e conseguiu indicar Felipe González como primeiro-ministro daquele país. Na condição de importante liderança do partido e secretário-geral do mesmo por um longo período, ele dirigiu diversas formações parlamentares espanholas até 1996.

Social-liberalismo europeu e a adesão ao receituário neoliberal

Na Inglaterra o movimento chegou quase uma década mais tarde. Com certeza a razão mais importante deve ter sido o “reinado” do Partido Conservador, quando obteve maioria no Parlamento e conseguiu emplacar Margaret Thatcher como primeira-ministra. O governo thatcherista teve início em 1979 com a vitória sobre os trabalhistas e terminou em 1990. Ao longo deste período, a então chamada Dama de Ferro levou a cabo uma brutal mudança na estrutura social e econômica britânica no pós-guerra. Em sintonia com as políticas de Ronald Reagan nos Estados Unidos, os dois foram os principais responsáveis pelo fortalecimento e pela implementação da agenda neoliberal pelo mundo afora.

Em 1997 os trabalhistas voltam a obter maioria e conseguem indicar o primeiro-ministro novamente. No entanto, a hegemonia interna no Partido havia sofrido uma profunda mudança, com a ascensão das ideias de seu jovem líder Tony Blair e suas propostas para um New Labor, a chamada Terceira Via. Ele ocupou a posição de primeiro-ministro por uma década, tendo renunciado em 2007.

O elemento comum que marca estas três experiências pode ser identificado na adesão às pautas do neoliberalismo. Os três governos de partidos de tradição de esquerda em seus respectivos países abandonaram seus compromissos históricos com projetos progressistas em termos sociais e econômicos. Mergulharam de cabeça na agenda do Consenso de Washington e das diretrizes incorporadas pela União Europeia, à época ainda em seu processo de consolidação institucional. Assim, eles converteram-se em defensores de reformas de matriz conservadora e implementadores de políticas públicas contrárias aos interesses de suas próprias bases políticas e eleitorais. Promoveram processos de privatização das empresas estatais que haviam sido uma das características relevantes da construção dos espaços nacionais no período posterior à Segunda Guerra. Levaram a cabo processos de liberalização e desregulamentação econômicas, além de implementação de políticas econômicas marcadas pela austeridade fiscal e pela consequente redução das despesas orçamentárias voltadas para as políticas sociais.

Esse período e as ações desenvolvidas pelos dirigentes e partidos que tinham um passado mais vinculado às correntes da social-democracia ficou conhecido como “social-liberalismo”. No entanto, os prejuízos sociais e econômicos de tal experimento não ficaram restritos às estruturas das nações que adotaram tal estratégia. Os partidos e sindicatos que decidiram encampar os programas da direita e do sistema financeiro internacional sofreram grandes derrotas, perderam espaços e votos para os agrupamentos conservadores e encontram até hoje grandes dificuldades para retornar à cena política com a recuperação de seu passado de vínculos com os trabalhadores e os setores de menor renda em seus países.

Submissão da indústria brasileira à agenda do financismo

Para o caso brasileiro, chama atenção igualmente o processo de conversão quase absoluta de amplos setores das classes dominantes à agenda neoliberal a partir dos finais da década de 1980. As diferentes representações das chamadas “frações do capital” aderiram de forma praticamente integral aos programas de privatização, liberalização, desregulamentação e austeridade fiscal combinada ao arrocho monetário. Na verdade, assumiram como se fossem seus os interesses do sistema financeiro e abriram espaço para um verdadeiro processo de autodestruição. Afinal, como explicar que representantes da indústria, do comércio, dos serviços e mesmo da agropecuária apoiassem projetos e estratégias de governo envolvendo a adoção de políticas públicas que apontassem para o reforço do espaço e dos ganhos do financismo em detrimento dos demais setores das próprias classes dominantes?

Ao que tudo indica, o entusiasmo com a agenda anti-Estado e pró-liberalismo de forma geral foi incorporado pelos dirigentes de tais ramos em termos prioritariamente ideológicos, sem a devida e a necessária avaliação dos impactos que tais propostas provocariam sobre a estrutura produtiva do Brasil e sobre os setores não vinculados organicamente ao poder do sistema financeiro. Na ausência de formuladores com capacidade de exercer a influência de pensamento sobre os dirigentes e sobre as elites de tais áreas do capital, o que se verificou foi a hegemonia sendo efetivada a partir da perspectiva da defesa dos interesses da fração genuinamente financista do capitalismo por aqui. Um exemplo cristalino de tal processo de submissão voluntário pode ser resumido na influência da Pesquisa Focus. Este levantamento de opiniões a respeito das perspectivas econômicas efetuado semanalmente pelo Banco Central (BC) pretende ser a opinião do assim chamado “mercado”. Mas não são consultados dirigentes de nenhum setor da economia real. O órgão regulador do sistema das finanças ouve apenas os interesses de 171 dirigentes de bancos e demais instituições financeiras. Apesar disso, os grandes meios de comunicação estampam em suas manchetes e telas que aquelas são as opiniões do “mercado”, ou seja, de todos os agentes da oferta.

O pesquisador Haroldo Silva tem trabalhado sobre o tema, indagando a respeito do que teria levado os dirigentes da indústria a aderirem de forma tão acrítica à agenda neoliberal, que esteve na base do processo de desindustrialização e de perda de espaço deste importante setor no conjunto do processo de acumulação de capital no país. Seu livro A ilusão neoliberal da indústria explora bem o tema. Ou seja, tudo se passa como se os industriais tivessem apoiado a onda neoliberal por alguma simpatia política e ideológica, sem se dar conta de que isso levaria ao seu próprio desaparecimento como fração de classe no interior do núcleo do capital. Pois ao longo das últimas décadas de dominância do pensamento neoliberal, assistimos a um processo crescente de financeirização, internacionalização e perda de espaço da capacidade produtiva da indústria brasileira no conjunto das atividades econômicas. Tudo se passa como se os representantes do chamado setor secundário da economia se organizassem para caminhar pacifica e entusiasticamente rumo ao seu próprio cadafalso. Uma loucura!

Haddad, PT e a conversão ao credo neoliberal

Finalmente, cabe indagar as razões para que processo com características similares esteja ocorrendo no âmbito de um governo supostamente de esquerda. O fato é que a adesão aos dogmas da austeridade fiscal e do arrocho monetário tem se dado desde que Lula foi eleito pela primeira vez em 2003. No entanto, o entusiasmo com que os dirigentes, parlamentares, governadores e prefeitos do Partido dos Trabalhadores (PT) abraçaram, neste terceiro mandato de Lula, a agenda do financismo causa bastante perplexidade. Afinal, a conversão à agenda conservadora e ortodoxa é completamente contraditória com a tradição da agremiação, que sempre havia mantido uma integridade de crítica ao neoliberalismo e de defesa de pressupostos do desenvolvimentismo e de políticas que hoje são chamadas genericamente de “progressistas”.

A obsessão do atual ministro da Fazenda com o cumprimento das metas de austeridade fiscal se combina com a disposição quase ideológica com que o mesmo articulou o Novo Arcabouço Fiscal (PLP 200/23) para substituir o antigo Teto de Gastos (EC 95/16) de Michel Temer. Comportamento semelhante pode ser observado em seu esforço quase militante por impedir qualquer tipo de flexibilização das metas de inflação, medida essa que permitiria adoção de uma política monetária mais amena. O apoio a que seu ex-secretário executivo seja nomeado por Lula como presidente do BC a partir de janeiro de 2025 não vem acompanhado de um discurso em prol de uma mudança substantiva na condução do órgão regulador e fiscalizador de bancos e demais entidades do sistema financeiro. Galípolo se apresenta como um fator de continuidade das políticas monetária e cambial de seus antecessores. Aliás, Haddad jamais se manifestou a favor da revisão da lei articulada por Guedes e Bolsonaro junto com o financismo, em favor de uma quase independência do BC.

A adesão à agenda financista tem provocado sérios desgastes ao governo Lula e ao PT. A começar pelo afastamento das bandeiras históricas do partido em defesa de políticas sociais previstas na Constituição Federal, a exemplo de previdência social, saúde, educação, assistência social e outras. Além disso, o apoio indiscutível à austeridade definida pelo próprio Haddad no arcabouço fiscal também provoca a redução do peso do Estado na economia, abrindo espaço para medidas de privatização como as Parcerias Público Privadas (PPPs) e o impedimento de novas capitalizações necessárias nas empresas estatais.

Ora, tudo indica que, salvo raras exceções, a desenvoltura do ministro da Fazenda em defesa dos interesses do financismo conta com o apoio de boa parte das instâncias do próprio PT. A tendência, no médio prazo, é que a avaliação de amplos setores da sociedade brasileira a respeito de tais propostas acabe por responsabilizar o partido e seus dirigentes pelos prejuízos que venham a ser provocados para a inviabilização da retomada de um projeto nacional de desenvolvimento econômico e social.

Assim, a exemplo do que ocorreu com a adesão da social-democracia europeia às teses do Consenso de Washington ou com a adesão dos industriais brasileiros à agenda do financismo, é bem provável que a atual obsessão fiscalista e o empenho pelo arrocho monetário de Haddad terminem por provocar graves prejuízos às lutas dos setores que ainda se mantêm coerentes com uma pauta comprometida com a defesa dos interesses dos trabalhadores e da maioria da população. A rendição a que estamos assistindo recentemente às propostas do financismo não tem a seu favor nem mesmo a desculpa do ambiente mais geral em favor da austeridade, pois até nos países desenvolvidos e no interior de organismos multilaterais (como o Banco Mundial e o FMI) observa-se uma flexibilização de tais recomendações.

Enquanto na época de Thatcher, e mesmo depois, se criou até o acrônimo TINA (“there is no alternative”) para fazer crer que não havia alternativas à receita neoliberal, hoje em dia há vários exemplos no mundo de medidas que vão na contramão daquilo que impunha o esmagamento ideológico patrocinado pelo financismo. Estão aí os processos de reestatização de empresas na área de serviços públicos (saneamento, energia elétrica, entre outras) e o abandono das regras de austeridade fiscal em situações como a crise econômico-financeira de 2008/9 e a da covid.

A permanência de uma esperança para mudanças efetivas na sociedade capitalista contemporânea depende de vários fatores. Mas um deles, talvez o mais relevante, seja a manutenção de um discurso e uma prática coerentes dos partidos, entidades e governos sobre os quais foi depositada a confiança para levarem a cabo processo transformadores. Caso contrário, a perspectiva é de que o processo histórico futuro seja impiedoso na cobrança de tal abandono, que muitos críticos qualificam como abandono de princípios basilares.

 

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