PunhoLeno
 
Após aprovação na Câmara dos Deputados, um projeto de lei que descriminaliza o aborto está sendo votado hoje no Senado argentino. Neste contexto, realizamos uma entrevista com ativistas feministas da organização não governamental CISCSA - RED MUJER Y HÁBITAT LAC, em Córdoba, que integra a Articulación Feminista Marcosur, sobre o processo que levou milhares de mulheres às ruas em defesa da legalização do aborto na Argentina, levando o tema à votação no Congresso. 
 
1) Vocês poderiam relatar como seu deu o processo de incidência no parlamento para a aprovação do projeto de lei que legaliza o aborto? Que estratégias você ressaltaria como fundamentais para que o projeto fosse levado a votação e aprovação na câmara dos deputados?
 
As militantes feministas, nós na Argentina, chegamos ao debate sobre o aborto mais atrasadas que outros países da região. Enquanto havia grupos reivindicando o direito de decidir sobre nossos corpos, na Argentina a ditadura atrasou o processo porque o centro da luta estava nos direitos humanos e na localização com vida daqueles que desapareceram pelo genocídio. Desde a recuperação da democracia, nos unimos ativamente às vozes latinoamericanas. O exílio também significou que muitas feministas argentinas voltaram ao país depois de uma experiência em outros países da região, ou outras regiões, e contato com uma prática feminista. Uma das estratégias era dar a conhecer as experiências de outros países latinoamericanos que estavam na mesma luta.
 
Um momento interessante foi quando, em 2003, as feministas uruguaias viajaram para Córdoba com o objetivo de compartilhar seus processos de incidência política. Foi nesses anos, com a militância feminista e a formação das Católicas pelo Direito de Decidir que começou a campanha pública para "educação sexual para decidir, contraceptivos para não abortar, aborto legal e gratuito para não morrer".
 
Os Encontros Nacionais de Mulheres, que acontecem no país desde 1987, também tiveram impacto. Foram espaços de debates políticos que, de alguma forma, tornaram-se os eixos dos Encontros Feministas Latino-americanos e do Caribe. A questão da saúde sexual e reprodutiva fazia parte da agenda. 
 
Desde o início do século XXI, as marchas dos Encontros Nacionais de Mulheres foram espaço para a instalação deste slogan “educação sexual para decidir, contraceptivos para não abortar, aborto legal e gratuito para não morrer”, e uma massa crítica foi construída em torno do tema. 
 
No entanto, e de forma contínua, setores relacionados às hierarquias eclesiásticas, com sua presença, dificultaram o debate nas oficinas de reflexão sobre o aborto.
 
Também houve jornalistas que contribuíram para instalar o tema. O debate público ocorreu no próprio processo em direção à Quarta Conferência Mundial em Pequim. TV e jornais pautaram o tema do aborto e setores confessionais se posicionaram claramente contra. As defensoras do aborto como o direito de decidir sobre nossos corpos eram chamadas de "assassinas". 
 
A construção da argumentação, baseada em dados estatísticos construídos pela militância feminista, conseguiu tornar o tema visível, para dar conta das mortes das mulheres, num trabalho cuidadoso de informação e divulgação do tema, que foi sensibilizando a sociedade argentina.
 
Nesse processo, e muito recentemente nesta segunda década do século XXI, a conquista de tornar público o tema da Violência contra a Mulher, e não apenas a violência, mas o assassinato de mulheres, foi uma construção de feministas que permitiu que a violência de gênero fosse removida do silêncio e colocada no palco público. Isto foi combinado com uma série de outros aspectos que têm a ver com o crescimento da participação política das mulheres, com uma situação na região que torna possível a instalação no debate público de questões de direitos das mulheres, em particular o direito a uma vida sem violência.
 
É nesse processo complexo, rico e não isento de tensões que surge um novo ator social, o Coletivo Nem Uma a Menos, que massificou a demanda contra a violência de gênero, tomando as ruas não mais com atitudes passivas e de demandas a um “outro”, mas ativa e exigindo do Estado e da sociedade uma mudança estrutural pelos direitos das mulheres a uma vida livre de violência. 
 
No marco do  "Nem Uma a Menos" em relação ao feminicídio, é incorporada à reivindicação massiva o slogan "Nem uma morte a mais por aborto clandestino". Vale ressaltar que neste processo o debate não está mais centrado em torno de "aborto sim ou o aborto não", mas adotando massivamente o slogan atual "aborto legal, não ao aborto clandestino".
 
Devemos reconhecer que as feministas construíram argumentos que permitiram instaurar a questão do aborto de maneira substantiva como um problema de saúde pública. Alcançamos alianças com outros movimentos sociais que reivindicam direitos e igualdade, como sindicatos, grupos de apoio de esquerda, acadêmicos, movimentos sociais, etc. Isso ocorre no quadro de fortes tensões políticas no país que radicalizam posições. Vários coletivos se somam, em particular, devemos mencionar os grupos de atrizes, jornalistas, escritoras, que se manifestam publicamente e alcançam adesão e repercussão massiva.
 
2) Como vocês avaliam o debate sobre a legalização do aborto e as possibilidades de leva-lo à aprovação no parlamento durante o governo de Kirchner?
 
Essa questão é interessante e nos leva a uma reflexão complexa. É necessário aceitar que durante o governo Kirchner não foi possível instalar a questão do aborto. Foi colocado no Congresso e as feministas sempre o levantaram como tema central da agenda de direitos. Isso ocorreu porque era necessário responder a complexas negociações em que, como sempre, questões relacionadas aos direitos das mulheres não eram centrais para a agenda política. O foco do governo Kirchner era mais baseado na construção de forças aliadas territoriais, de questões relacionadas ao trabalho e os recursos aplicados às mulheres estavam mais ligados a essas questões e menos à agenda de direitos. No entanto, deve-se dizer que o governo Kirchner aprovou leis muito avançadas, como o casamento igualitário, a lei de identidade de gênero, mas a questão do aborto legal, seguro e gratuito, não encontrou um lugar na agenda.
 
3) Como foi o processo de articulação entre a diversidade dos movimentos feministas contemporâneos em torno da pauta da legalização do aborto para se chegar a este consenso de mobilização tão grande e unificação?
 
Essa construção foi feita a partir da instalação do tema, a argumentação substantiva sobre a questão da saúde sexual e reprodutiva, as questões jurídicas relacionadas, a questão da participação e incidência nos espaços regionais e internacionais. A articulação de redes feministas na região que estavam construindo uma agenda sólida de direitos que se refletiu na Argentina. 
 
No entanto, as novas vozes sociais foram decisivas, as novas vozes das jovens feministas da diversidade. Eles não vieram do tronco feminista, mas traziam à flor da pele as demandas feministas. Esse novo sujeito social, coletivo, diverso e complexo foi o que instalou nas ruas, na massividade de seus protestos, a demanda mais decisiva contra a violência de gênero e entre essas violências, a criminalização e a clandestinidade do aborto. 
 
Essas vozes coloridas endossaram o slogan Aborto legal, seguro e gratuito. O lenço verde introduzido pelas Católicas pelo Direito de Decidir foi apropriado pelas massas. A maré verde foi o resultado dessa sucessão de mobilizações e movimentos.
 
4) Nesta grande movimentação que vocês conseguiram em torno de uma pauta extremamente polêmica e que mobiliza concepções e valores profundamente demarcados por religiões, o que de mais importante nós brasileiras e as feministas latinas podemos aprender com a experiência de vocês?
 
Consolidar argumentos. Trabalhando em conjunto com a mídia, as jornalistas feministas são fundamentais. Apoiar a mobilização de novas vozes. Escutem e construam com jovens (menores de 18), acompanhem-nas, celebrem o fato delas adotarem slogans feministas, apoiem essas vozes a multiplicarem-se e promovam a militância intergeracional, bem como a transversalidade política para construir alianças. 
Não negligenciem nenhum flanco de ação. Coloquem pressão permanente em diferentes movimentos sociais, sindicatos, outros. Estejam atentas às reações da sociedade, estejam cientes da força construída através da "ideologia de gênero", pensem em estratégias de "autocuidado" diante de reações violentas.
 
5) Quais os próximos passos e que ações de mobilização / pressão vocês estão planejando para que o projeto seja aprovado no Senado no dia 8 de Agosto?
 
Queremos mais de um milhão de mulheres, de pessoas, nas portas do Congresso Nacional e seus arredores. Queremos centenas de milhares de mulheres nas ruas em todas as cidades do país. Queremos garantir a maré verde. Vamos manter a vigília nas ruas, no espaço público, como foi feito na votação da Câmara dos deputados. Continuamos com os “pañuelazos" e outras ações e intervenções que vêm sendo feitas sistematicamente desde março. Estamos pressionando os senadores que não definiram o seu voto, e aqueles que já definiram pelo negativo. 
 
Outra questão a ser destacada é que se a lei é aprovada ou não, a descriminalização do aborto já está instalada na sociedade. Se antes era um tabu, hoje é questão de reflexão e debate instalar o direito e garantir a autonomia das mulheres.
 
 
As questões desta entrevista foram respondidas pela equipe do CISCSA - Ana, Sole, Pao, Leticia, Bahia, Mara, Fada, Paloma y tudas - e as respostas foram traduzidas para o português pela equipe do CFEMEA.
 

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