"Se quisermos enfrentar o fascismo de hoje devemos ser honestos sobre sua continuidade, na Alemanha, na Espanha, na Itália ..."
Carolin Emcke (Mülheim an der Ruhr, 1967) é jornalista, filósofa e ativista feminista e LGTBIQ+, que ficou conhecida mundialmente por um livro que chamou a atenção: Contra o ódio. A pensadora está certa de que esse sentimento é o inimigo e que razão e argumentação devem se impor a ele.
Visitante frequente de Barcelona, a alemã retorna ao Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona – CCCB para participar da Bienal do Pensamento, em duas atividades diferentes. Uma com alunos, junto com Miquel Missé, cujo título não poderia ser mais claro: Nunca um direito foi conquistado para sempre. A outra, no sábado, dia 15, reflete sobre os Novos Fascismos.
Emcke não é muito fã do adjetivo que acompanha esses movimentos que são cada vez mais fortes na Europa e no mundo. Admite que existe muito ódio e, embora não se atreva a dizer se existe mais ou menos do que antes, está certa de que é mais importante desarmar o inimigo e sua estratégia do que buscar entendê-la.
A poucos dias de sua participação no evento, Crónica Global conversa com a pensadora para refletir acerca dos perigos enfrentados pela democracia e o papel fundamental dos movimentos sociais a esse respeito.
A entrevista é de Joan Colás, publicada por Crónica Global, 11-10-2022. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Você participa da Bienal do Pensamento com duas conferências: "Nunca um direito foi conquistado para sempre" e "Novos Fascismos". Ambas parecem dialogar. Devemos estar atentos a direitos não garantidos, frente à ameaça de novos fascismos?
Primeiro, penso que antes teríamos que conversar sobre o que estamos dizendo quando falamos de fascismo. Você falou de “novos” fascismos. Eu sei o que significa, mas não estou realmente segura de que seja assim. “Novos fascismos” implica em falar de um tempo que acabou e, de repente, algo novo emerge.
Não seria tudo raro, em todo caso. Há continuidade, também rupturas, mas se quisermos enfrentar o fascismo de hoje devemos ser honestos sobre sua continuidade, na Alemanha, na Espanha, na Itália, com Meloni, que imita estética, política e linguisticamente o fascismo. De qualquer forma, entendo o que significa, sobretudo no caso alemão com o nacionalismo e Hitler. Eu mesma demorei um certo tempo para falar de fascismo.
Por quê?
Porque a preocupação para uma alemã, com o exemplo do fascismo alemão com os piores crimes contra a humanidade da Shoah, é que se você chama algo de fascismo, parece que relativiza a singularidade, o extremismo da Shoah e não pretendo isto. Então, existe essa preocupação, mas ironicamente se pergunta quando chamamos o fascismo de fascismo. Estamos tão assustados com esse termo, que os chamamos de movimentos autoritários, racistas, antidemocráticos e já está na hora de dar o nome de fascismo.
Quanto à sua pergunta, eu diria que sim, uma das características desses fascismos é que negam direitos, direitos de igualdade. Concordo, é especialmente uma de seus traços de identidade: querem estabelecer uma hierarquia de cidadãos ou de humanos e negar direitos, em particular direitos do coletivo gay, trans, das mulheres, mas também dos migrantes, refugiados.
Outra coisa que fazem, por outro lado, é propagandear a liberdade?
É verdade, eles preferem ser chamados de libertários em vez de liberais. Depende também, porque Viktor Orbán seria uma democracia iliberal, o que significa que não há em absoluto democracia. Se você observar o Vox, Marine Le Pen, a AfD, na Alemanha, ou a direita radical nos Estados Unidos, existe uma tendência a demonizar o Estado, todas as garantias institucionais. São explicitamente subversores da legalidade, dos direitos igualitários ou do Estado de direito.
Se observamos, estão sequestrando, apoderando-se de terminologia, vocabulário, para ter uma narrativa que pareça a favor do povo e próxima dos trabalhadores e inclusive democrática. Isto é uma dissimulação. Novamente, Vox é um exemplo, é absolutamente uma piada que digam que são próximos do povo, quando seu líder não vem das classes baixas. É semelhante quando você olha para os representantes da direita europeia. Isso é o oposto à classe, frequentaram as melhores escolas, simplesmente usam esse código.
Mas por que contam com o apoio de jovens e trabalhadores? Por exemplo, Meloni parece ter recebido o voto de cidadãos que ganham menos de 2.500 euros e o socialismo daqueles que ganham em média 5.000.
Cada país tem suas particularidades. Na Alemanha, não é assim, não é que só a classe trabalhadora vote na AfD. Na França, isto acontecia no começo e agora está mudando. Acredito que são falsos profetas como neoliberais, no sentido de que usam certos medos e preocupações legítimas e todos os tipos de razões para todas as classes. Penso que tem a ver com o capitalismo financeiro excessivo, completamente descontrolado, que deixa as pessoas desorientadas e medrosas.
Agora, evidentemente tem a ver com a guerra na Ucrânia, com a crise energética. O truque é que eles usam esses medos e os canalizam para um objeto que não tem nada a ver com a origem desses problemas. Eles os canalizam contra o feminismo, os trans, os migrantes. Aqui, também quiseram o confronto com a Catalunha para mobilizarem. O Vox não oferece uma resposta para esses problemas, fingem ser políticos.
Mas por que segue vivo? Parece que cada vez temos mais liberdades e eles promovem outras que vão contra e mesmo assim vencem.
Não tem nada a ver com isso. Historicamente, vimos como cada movimento de emancipação luta e sofre muito para conquistar diferentes liberdades e direitos civis, e sempre há uma reação conservadora que quer nos fazer retroceder nessas liberdades. Sempre vemos isso.
Observe Vladimir Putin. Se você o escuta, ele fala explicitamente sobre a degeneração da Europa, do Ocidente, critica as liberdades pelas quais lutamos. Se você observa, os movimentos fascistas, particularmente Putin, estão incrivelmente assustados com as mulheres, que as pessoas realmente escolham o que desejam ser, porque são a sua ameaça mais forte, ameaça à sua maneira de entender o poder.
Claro, mas se buscamos entrar em sua cabeça para ver...
Não! Não faça isso! É um grande erro e um desperdício de energia. Muitas vezes, perguntam-me como podemos explicar esse ódio aos gays ou por que as pessoas votam neles. Não quero explicá-los! Não quero explicar o que atrai no fascismo, não farei isso. Eles que façam o trabalho deles. Eu faço o meu e minha visão é demonstrar o porquê essas ideias não são atraentes, o motivo pelo qual estão errados, o porquê é mentira, o porquê não existe a pureza. Não vou por aí, pois me parece uma perda de tempo.
Perfeito, então vamos abordar a relação que você citou entre fascismo e capitalismo. Como colaboram entre si?
Quando analisamos o poder destrutivo desse capitalismo financeiro radical e descontrolado, podemos ver como destruiu o tecido social, a fábrica social, a gramática social da democracia. Meu exemplo favorito é a Inglaterra, amo analisar como destroem a si mesmos. É possível ver como, durante a pandemia, o país que teve um dogmatismo neoliberal total da privatização acabou amputando o sistema público de saúde, porque o trabalhismo que houve nesse meio não era muito diferente. Desse modo, o sistema público de saúde foi incapaz de lidar com a pandemia.
Também é possível ver isso globalmente, em como o FMI buscou impor seu sistema ao Equador e acabou retirando milhões de pessoas do sistema público de saúde. Quando você olha para os países que mais falharam durante a pandemia, verá que são os que privatizaram ou desregulamentaram o sistema público de saúde. O sentimento de perda, de vulnerabilidade, de não estar suficientemente protegido são medos e continuarão sendo produzidos por essa ideologia neoliberal, e esse capitalismo radical pode fazer com que caminhem em direção a partidos fascistas.
Algo positivo na Espanha, por exemplo, foi a resposta de Pedro Sánchez ao aumento dos custos da energia e da inflação. Minha impressão é que agiu bem e melhor do que o nosso governo. Entendeu que é preciso dar um sentido de proteção social, de um estado de bem-estar social capaz de proteger, porque, caso contrário, quando os preços subirem, a extrema direita se aproveitará dessa desorientação e medo.
Claro, mas com o uso do medo e agora a proximidade de uma guerra, como você mencionou, devemos temer que o fascismo ressurja?
Como ativista queer de esquerda, sinto que meu dever é vir com um vocabulário ou narrativa de resistência para ter uma visão política que gere atração e desejo. Porque é nisso que os extremistas são bons, têm visões. Não temos que estar permanentemente atentos à visão deles, mas criar a nossa.
O que este histórico momento tem de particular é que na Europa vemos como é Putin. As pessoas queer, os jornalistas, há anos vêm alertando sobre os crimes de Putin e sua ideologia, não apenas quando interveio na Síria ou na Geórgia ou invadiu a Crimeia e agora a Ucrânia, mas também quando estava reprimindo a comunidade LGTBIQ+ no sul da Rússia. Como ninguém fez nada? Estava matando dissidentes, jornalistas e usava todos os tipos de mecanismos para isso.
Temos buscado lutar por uma democracia diversa, com direitos civis fortes, responder à questão social e aos direitos dos trabalhadores. Agora, finalmente, o mundo todo vê o que Putin faz. Eu não diria que é uma oportunidade, mas um desafio responder a isso.
Para ir finalizando e olhando por isso para o panorama, você escreveu ‘Contra o ódio’, em 2016. Em todo esse tempo, existe mais ou menos ódio?
Boa pergunta. Seis anos se passaram. Quando eu escrevi, Trump ainda não tinha sido eleito, infelizmente posso dizer que ficou comprovado que eu estava certa. Não sei se existe mais ódio, mas a análise continua sendo válida. Olhe para o que está acontecendo no Brasil. Sou otimista a esse respeito, embora quando olho para os Estados Unidos sou tristemente pessimista.
O importante para mim e o que venho fazendo ao longo desses anos é que posso descrever, analisar os mecanismos do ódio, da exclusão e do racismo, da demagogia, da extrema direita, mas preciso sair com uma férrea defesa de outra sociedade, de outra forma de democracia e de viver juntos... Eu nunca vou terminar uma entrevista só falando de fascismo.
Nos últimos seis anos, em cada um deles, vi êxitos de movimentos sociais, como o extraordinário levante do Fridays for Future, de uma geração jovem lutando contra a catástrofe climática, o movimento LGTBIQ+ em luta e tecendo alianças com os movimentos antirracistas. Há muitos exemplos, como as lutas pela democracia.
Essa é outra questão. Como esses movimentos ajudam a defender a democracia e a lutar contra o fascismo?
Primeiro, temos uma tradição de luta prática contra o fascismo, porque todos esses movimentos trouxeram mudanças, modernidade, luz. O movimento LGTBIQ+ em particular traz ironia, tem uma tradição de ressignificação de palavras e terminologias que as colocam contra os outros.
A libertação racial, o movimento pelos direitos civis... para mim, mesmo sendo branca, é um movimento inspirador, eles nos ensinam práticas de dissidência e de resistência não violenta. A capacidade de se mobilizar contra a estrutura que parece totalmente inamovível e imutável.
O movimento feminista na Espanha obviamente teve um tremendo êxito, eu admiro as mudanças que se estabeleceram aqui. Nós nos divertimos mais do que os outros.
Por último, como é possível fortalecer a democracia contra esse ódio?
Devemos sempre ter clareza de que podemos criticar a ideologia, a política, as ações, os textos, os símbolos, mas não podemos demonizar os eleitores. Podemos criticar o funcionamento dos partidos, se quisermos, o objeto de minhas críticas são ações, frases, políticas, mas nunca um ser humano. Não quero excluir as pessoas que, para mim, votam equivocadamente no Vox. Temos que tentar fazer com que voltem.
A democracia é algo pelo qual vale a pena lutar, é um tesouro, é como um presente e temos que fazê-la soar, ser saboreada, sentida deliciosamente pelas pessoas. Isso é o que temos que fazer.
Em vez disso, em determinadas ocasiões, os eleitores são criticados por terem votado em X ou Y.
Não devemos! Você tem que argumentar que os políticos estão errados, que sempre mentem, que não são o que dizem ser, que não se importam com as pessoas, mas devemos mostrar que nós sim. Eu sempre digo que se entende que existem medos que são legítimos, outros são meras projeções que temos que denunciar, mas não ir contra as pessoas.
O problema é que alguns movimentos, como o feminismo e o das pessoas trans, muitas vezes lutam entre si.
Não há movimento monocromático. Para mim, é preciso sempre ter muito cuidado, nunca podemos tornar ortodoxo um movimento que luta pela democracia, por conter mais direitos. Devemos ter clareza que continuamos inseguros, irritadiços, duvidosos acerca de nossas certezas e questioná-las. Essa é a minha maior preocupação. A dúvida e a ironia são os dois instrumentos que nos ajudam a não nos tornarmos dogmáticos.
Isto é o fascismo, dogmático.
Exato!
Leia mais
- “Há uma nova direita global que está voando muito perto do fascismo”. Entrevista com Federico Finchelstein
- Como “Deus, Pátria e Família” entrou na política do Brasil
- “Existe a ameaça de ascensão do fascismo? Lamentavelmente, sim”. Entrevista com Noam Chomsky
- O eterno fascismo como estado de espírito. Artigo de Corrado Augias
- Psicologia do fascismo brasileiro
- “A direita tradicional está morrendo e pode ser substituída pelo fascismo.” Entrevista com Sabrina Fernandes
- Cristoneofascismo, teísmo político e o Deus sacrificial de Bolsonaro
- O fascismo na nossa cara
- Fascismo brasileiro: como geramos este inferno
- A ascensão de Meloni na Itália: a extrema direita que não quer o Papa
- A derrota de 7x1, o despertar do bufão da extrema-direita e a emergência da virada com afetos positivos. Entrevista especial com Paolo Demuru
- Extrema-direita e neonazismo: muito mais do que “discursos de ódio”
- Intelectuais alertam sobre o avanço da extrema direita
- As redes globais da extrema direita 2.0