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“POLÍTICOS, JORNALISTAS E JUÍZES se tornaram o pior pesadelo das forças policiais”, disparou Luiz Fernando Ramos Aguiar, major da Polícia Militar do Distrito Federal em 2021. Por escrito e assinado, ele ameaçou autoridades e toda uma classe profissional por terem reagido à maior chacina perpetrada pelas polícias do Rio de Janeiro, na favela do Jacarezinho, em maio passado.

Mesmo publicado num blog da esgotosfera policial, como foi o caso, o artigo deveria ter sido farejado pelos comandantes de Aguiar e lhe rendido uma punição exemplar. Não foi, e ainda ficou pior: a diatribe chamou a atenção dos editores do jornal paranaense Gazeta do Povo, que a reembalou e republicou para um público muito maior.

Ainda assim, nada ocorreu a Aguiar. Ao contrário –  ele segue com cargo de confiança na corporação. Recebe, limpos, mais de R$ 18 mil mensais, segundo o Portal da Transparência.

A leniência das autoridades com a radicalização à extrema direita das forças de segurança vai muito além do major, no entanto. O nome do Corpo de Bombeiros do Distrito Federal, por exemplo, vem sendo há 12 anos usado por um site para vender conteúdo fascista e politicamente enviesado – além de publicidade.

É por isso que surpreende a zero pessoas bem-informadas a facilidade com que terroristas invadiram e destruíram o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal neste domingo, dia 7, em Brasília. Já sabemos que colegas do major Aguiar bebericavam água de coco enquanto assistiam aos terroristas destruírem a Praça dos Três Poderes.

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O major Luiz Fernando Ramos Aguiar, da Polícia Militar do Distrito Federal.

 

Foto: Reprodução/Twitter

Claro, há alguns protagonistas entre os culpados óbvios pelo maior atentado terrorista já visto no Brasil. O primeiro é Ibaneis Rocha, um advogado ricaço e prepotente que resolveu brincar de político e torrou alguns milhões para se eleger e reeleger governador do Distrito Federal pelo MDB. Espécie de Bolsonaro que prefere vinhos caríssimos a frango com farofa, Ibaneis resolveu zombar do país todo ao renomear o delegado da Polícia Federal Anderson Torres como seu secretário da Segurança Pública.

Torres foi chefe de gabinete do deputado federal Fernando Francischini, do União Brasil paranaense, cassado por mentir sobre as urnas eletrônicas que o elegeram. Como prêmio, foi chamado por Ibaneis para comandar a Segurança do DF, mas deixou o cargo em março de 2021 para ser ministro da Justiça de Jair Bolsonaro. Sob o comando de Torres, a Polícia Rodoviária Federal matou Genivaldo de Jesus Santos numa câmara de gás improvisada no camburão de uma viatura no Sergipe.

O assassinato não custou o cargo a Torres, que ficou à vontade para tentar roubar a eleição para o chefe Bolsonaro – usando, novamente, a PRF – e ficar de braços cruzados quando golpistas resolveram tocar o terror em Brasília em 12 de dezembro, dia da diplomação de Luiz Inácio Lula da Silva e Geraldo Alckmin no Tribunal Superior Eleitoral.

Nada disso fez Ibaneis desistir de devolver-lhe a Secretaria da Segurança Pública. O governador tentou salvar o próprio pescoço demitindo Torres no auge da barbárie do domingo – àquela altura, já se sabia que o Batalhão de Choque da PM do Distrito Federal só fora acionado quando golpistas já depredavam os prédios públicos mais importantes do país. Tarde demais, Ibaneis: se houver um resto de institucionalidade no Brasil, você e Torres serão escorraçados da vida pública. E, talvez, presos por prevaricar.

A lista de honra das tchutchucas de terroristas também tem lugar para o ministro da Defesa José Múcio Monteiro, que puxava o saco dos militares nos anos 1970 e inexplicavelmente foi chamado por Lula para seguir fazendo a mesma coisa. Na semana passada, Múcio riu no Salão Nobre do Palácio do Planalto quando precisou falar sobre os amigos e parentes que dizia ter nos acampamentos golpistas protegidos pelo infame Exército brasileiro.

“Não sabia que iam levar isso tão a sério”, divertiu-se o ex-arenista. Neste domingo, perguntei à assessoria de Múcio se ele seguia achando o golpismo bolsonarista “democrático” – e se algum amigo ou parente dele lhe mandou selfies destruindo prédios públicos. Dessa vez, o outrora risonho ministro preferiu o silêncio – a essa altura, indecoroso como os atentados terroristas.

O presidente Jair Bolsonaro (PL), com o governador reeleito do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), que declarou apoio ao presidente no segundo turno, durante entrevista coletiva no Palácio da Alvorada, em Brasília, nesta quarta-feira.

O governador do Distrito Federal Ibaneis Rocha, afastado do cargo por Alexandre de Moraes por 90 dias após os ataques de domingo, e seu ex-secretário de Segurança Pública, Anderson Torres, com Jair Bolsonaro.

 

Foto: Pedro Ladeira/Folhapress

A destruição é militar

O foda-se institucional, justiça seja feita, é obra militar. Eduardo Villas Bôas, Sérgio Etchegoyen, Hamilton Mourão, Walter Braga Netto, Luiz Eduardo Ramos, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira e Marco Antônio Freire Gomes, todos generais de quatro estrelas do Exército, sonharam reviver a ditadura militar, mas passarão à história como cúmplices da destruição da capital federal. Terão a seu lado os ex-comandantes da Marinha, Almir Garnier Santos, e da Aeronáutica, Carlos Almeida Baptista Junior.

Tudo isso – a podridão institucional de toda uma geração de altos comandantes militares, as risadas cínicas de Múcio, a prepotência de Ibaneis e a cumplicidade aberta de Torres – se materializou, ontem, na tranquilidade com que PMs assistiram inertes à destruição de Brasília. Nisso, foram seguidos pelos militares do Regimento de Cavalaria de Guardas e do Batalhão da Guarda Presidencial, unidades do Exército cuja ÚNICA função (o grifo é necessário aqui) é proteger a sede do poder Executivo.

Mas só quem acordou ontem se surpreendeu. A fleuma com que fardados se sentem à vontade para atacar a democracia se exibe cotidianamente, por exemplo, nos esbirros golpistas de generais em redes sociais. Ou na tranquilidade com que o guarda da esquina – em nosso exemplo, o major da PM Luiz Fernando Ramos Aguiar – ataca de uma só vez a magistratura, a classe política e toda a imprensa sem temer retaliação e se fazendo cúmplice do terrorismo da extrema direita.

Encontro com os novos comandantes das Forças Armadas.

Os comandantes das Forças Armadas de Jair Bolsonaro: Paulo Sérgio Nogueira, do Exército, ao lado de Walter Braga Netto e do ex-presidente; Almir Garnier Santos, da Marinha; e Carlos Almeida Baptista Junior, da Aeronáutica.

 

Foto: Marcos Corrêa/PR

Cada qual dessas categorias profissionais, diga-se, tem seu quinhão de culpa na esbórnia institucional. Juízes – dos circunspectos Luiz Fux e Luís Roberto Barroso ao baixo clero da primeira instância – aplaudiram o vale-tudo jurídico-político da Lava Jato e se fizeram instrumentos da abjeta propaganda ideológica da extrema direita sem serem de fato enquadrados pelo Conselho Nacional de Justiça.

(Parêntese necessário: o Ministério Público tem como uma de suas funções fiscalizar e controlar a atividade policial. Mas, há alguns anos, o grosso dos promotores e procuradores passou a gostar da sensação de descer o cacete e prender sem provas, tal como fazem os policiais militares brutamontes da Rota paulista. O retrato de Dorian Gray do acanalhamento do parquet está visível para o mundo na cumplicidade franca do procurador-geral da República, Augusto Aras, e sua número dois, Lindôra Araújo, com a extrema direita.)

O quinhão de culpa da classe política é imenso e democraticamente distribuído, mas pode ser resumido em três tristes homens públicos paridos pelo Paraná. Ricardo Barros, deputado federal do PP, um sujeito sempre disposto a servir o governo de turno, tentou culpar Lula, empossado há uma semana, as urnas eletrônicas e o ministro Alexandre de Moraes pela balbúrdia em Brasília.

Se houver institucionalidade no Brasil, Ibaneis e Torres serão escorraçados da vida pública – e, talvez, presos.

Deltan Dallagnol, deputado federal do Podemos, acreditou que um Cristo que pertencia a Lula havia sido roubado por ele da Presidência e teve frêmitos de prazer ao imaginar-se lhe passando as algemas. Ontem, só foi balbuciar alguma crítica à depredação generalizada de um patrimônio público e histórico perpetrada por seus irmãos de extrema direita depois das 20h. Com muitos mas, contudos e poréns.

Sergio Moro, que como juiz foi alicerce fundamental da ascensão da extrema direita, foi ainda pior: atacou o governo Lula por “reprimir protestos”. Mais tarde, como a panela de pressão explodindo, disse que os terroristas “precisam se retirar dos prédios públicos antes que a situação se agrave” – sem pedir a prisão deles.

Por fim, é preciso haver uma autocrítica vinda de nós, jornalistas. Neste domingo, a principal coluna política do maior jornal brasileiro, a Folha de S.Paulo, assim arrematou uma nota sobre a chegada de ônibus com golpistas a Brasília: “Os manifestantes contam com uma rede de solidariedade para se manterem acampados”. Um par de horas depois, os “manifestantes”, amparados por sua “rede de solidariedade”, passaram a destruir a capital.

É espantoso que haja alguma surpresa ante o cenário desolador deste domingo. Quem quer que esteja disposto a enxergar as coisas como são já percebeu que as polícias, as Forças Armadas, parte do Ministério Público, do poder Judiciário e da classe política não estão à altura dos papéis institucionais que a Constituição e a sociedade lhes confiaram. Precisarão, todos, ser vigiados de perto pela parcela democrata da sociedade até que sejam devidamente saneados e reconstruídos. Uma tarefa que não é mais adiável – sob pena de sermos, todos, demolidos pelo talibã que veste farda ou camisas da CBF e age cada vez mais às claras no Brasil.