O processo de desmilitarização e desfascitização precisa ser uma agenda central do atual governo Lula, das instituições, da sociedade civil e dos movimentos sociais. A relação evidente da polícia do Distrito Federal (DF) com a invasão e do secretário de segurança pública Anderson Torres (antigo ministro da Justiça de Bolsonaro), assim como, possivelmente, do governador Ibaneis Rocha, o silêncio eloquente do ministro da Defesa, a possibilidade de envolvimento de setores do GSI, a negativa de dispersão organizada com o Exército do DF quando os manifestantes voltaram para frente do quartel-general, a omissão do Ministério Público Federal (MPF), na figura do Procurador Geral da República, revelam que o enraizamento nas forças de segurança e no Estado brasileiro como um todo, do movimento de extrema direita conduzido por Bolsonaro, são significativos e precisam de combate frontal. 

Radicalização, violência e terrorismo da direita

Desde a vitória de Lula no segundo turno das eleições, temos testemunhado uma série de tentativas de deslegitimação da vontade popular expressa nas urnas por movimentos de caráter fascista e golpista. Esse, aliás, tem sido um elemento central para a análise do saldo político da extrema direita. 

Após as eleições, não restam mais dúvidas da consistência de um movimento de massas (embora minoritário socialmente) de caráter fascista (sem medo do uso do termo). Isso porque é fundamental reconhecer a vertente radicalizada da extrema direita brasileira, que possui um engajamento político relevante, uma visão sobre liberdade absolutamente autoritária, de profundo rechaço aos demais poderes constitucionais, bem como da imposição de seus valores conservadores no âmbito da família, da cultura e da religiosidade. O elemento de um armamento significativo deste setor (seja através dos CAC’s, das milícias; seja por ter relação direta com setores militarizados no âmbito estatal – polícias e Forças Armadas), com uma política de ódio e intolerância, indicam que as respostas tendem a ser produzidas com significativa violência.

“É fundamental democratizar as escolas militarizadas, ter amplas campanhas contra as vertentes do ódio, reivindicar e garantir a laicidade estatal e construir redes de solidariedade.”

E houve um sistemático e contínuo aumento da curva desta radicalização e violência, conforme esses setores se veem exprimidos pela vitória eleitoral (e portanto, por uma maioria social) que representa o exato oposto dos valores e da política que defendem. Antes mesmo da invasão à cada uma das casa principal dos três poderes, testemunhamos uma desarticulação de atentados na ocasião da posse do Lula, com bombas e explosivos (em aeroportos e outras localidades), que poderiam produzir ou dar novos contornos à adiada tragédia das bombas do Riocentro – uma tentativa terrorista da linha dura contra a abertura política da ditadura. Sem dúvida, para a história da política brasileira, teria impactos sem precedentes.

Como se organizaram

Já estamos há três meses convivendo com acampamento em frente a quartéis, requerendo intervenção militar (golpe militar) para restituir Bolsonaro. Já assistimos os trancamentos nas rodovias e atos periódicos em várias cidades com essa mesma pauta. E tudo isso alimentado por uma rede de grupos na internet, que se articulam de forma pulverizada, podendo, inclusive, ter comandos que não passam pelas principais lideranças deste movimento (ao menos não nominalmente ou diretamente), mas que evidentemente possui uma direção política e um caráter organizativo articulado (inclusive pelo patamar de dinheiro que é necessário para manter essas mobilizações). 

O nível de fake news nesse processo foi um elemento que alterou o patamar de um universo paralelo completo, que chegou a disseminar uma prisão fake de Alexandre de Moraes, uma posse fake do Lula, dentre outras desinformações. Essa não é uma máquina qualquer de comunicação, ela inviabiliza qualquer ponto de diálogo comum com o restante da sociedade, tendo uma característica absolutamente segregada e controlada por essas narrativas – cujo alcance do contraponto nesses mesmos fóruns e redes é quase nenhum. 

“Ainda, deve haver uma mobilização constante da sociedade para não permitir que as manifestações da extrema direita sejam a única visão de ocupação das ruas.”

As características similares com os movimentos e a estratégia fascista da década de 20/30 não são irrelevantes. Para além da inspiração evidente com o Capitólio dos EUA (embora a dinâmica seja absolutamente outra no Brasil, em especial pelo nível de envolvimentos das forças de segurança brasileiras com o episódio), há também uma série de processos de milicianização do movimento e de articulação política que possuem referências históricas fascistas (como a conformação dos camisas pretas, atentados de cunho terrorista, queima e depredações de prédios de instituições, cultura do ódio e conservadorismo preponderante nas atuações do movimento). 

Essas referências se aliam a um quadro geral, mais específico e profundo da América Latina, que já possui, como nos aponta Florestan Fernandes, em Poder e Contrapoder na América Latina, estruturas e aparelhos estatais fascistas, sem precisar ter um regime fascista completo. Essa dupla dimensão da natureza do fenômeno no Brasil (fascista geral e aparelhos fascistas específicos) foi central na estratégia conduzida por Bolsonaro de aparelhamento dessas estruturas híbridas que sempre conviveram com a república brasileira (a estruturação das polícias, Forças Armadas, justiça militar, sistemas de inteligência, sistema autoritário do judiciário pela seletividade penal; dentre outros). 

Como chegamos até aqui?

Esse movimento, que tem realçando seu caráter fascista, militarizado e fundamentalistas religioso, também tem deixado em evidência seu braço no aparato estatal. Há uma institucionalização que viabilizou as barreiras de votação no segundo turno com a Polícia Rodoviária Federal (PRF), que permite a aliança da polícia estadual do DF com a invasão, que garante que não haja desdobramento as denúncias feitas pela Abin ao GSI sobre a possibilidade desses movimentos, que mantêm o ministro da Defesa sem movimentações atuantes, que constitui um MPF omisso e coadjuvante, e que não retira os acampamentos de frente dos quartéis mesmo quando há ordem judicial nesse sentido. 

Esse sustentáculo é ainda mais profundo do que vemos num primeiro momento. Ele são os milhares (mais de 7 mil em algum momento) de militares postos na máquina pública pelo governo Bolsonaro, o programa cívico militar nas escolas públicas mais vulneráveis, a politização e radicalização de conportetes das forças de segurança e das Forças Armadas com a construção da extrema direita; são os diversos funcionários públicos que passaram a integrar cargos de confiança na máquina pública, porque apoiavam o governo, é o controle pelas Forças Armadas dos sistemas de inteligência, de uma GLO com alteração de legislação para julgamento de tribunal militar em caso de mortes de civis por militares na sua aplicação, é o fim do tempo máximo de 2 anos para cargos comissionados para funcionários da ativa, é a não responsabilização dos agentes da ditadura que ainda influenciaram e formaram gerações nas Forças Armadas, são as operações ostensivas de militares nas periferias que produzem um genocídio de negros e pobres. Enfim, é um produto complexo das origens que remontam a formação da sociedade brasileira e também das permanências autoritárias que permanecem atuando politicamente desde sua criação na Nova República.

O que o Capitólio à brasileira nos revela, é não apenas o assombro de até onde podemos chegar e com que tipo de movimento fascista estamos lidando, mas também que se não enfrentarmos a agenda de fascistização e militarização que o Estado brasileiro herdou da ditadura e, em especial, que ele aprofundou e acrescentou mais entulhos autoritário nos últimos seis anos, presenciaremos recorrentemente situações como a que vimos no último domingo. Não há como seguirmos para um processo de defesa da democracia (mesmo que apenas liberal), sem desarticularmos esses grupos desde suas raízes. 

O que fazer

Énecessário, efetivamente, fazer um retorno dos militares aos quartéis, retirando-os da máquina pública, desarmar a população, retirar as células que permanecem em seus acampamentos na frente dos quartéis, exonerar todos os funcionários públicos e, em especial, membros das Forças Armadas e segurança pública, que apoiaram ou foram coniventes com esses movimentos. 

É fundamental democratizar as escolas militarizadas, ter amplas campanhas contra as vertentes do ódio, reivindicar e garantir a laicidade estatal, construir redes de solidariedade comunitárias nas regiões mais impactadas pela fome e miséria dos últimos anos, garantir a abertura dos sigilos de 100 anos do governo Bolsonaro (bem como dos arquivos da ditadura que até hoje não se encontram nessas condições). Desmilitarizar as polícias e as investidas nas periferias, dentre uma série de outras agendas mais estruturais e, sobretudo, responsabilizar civis, agentes públicos, militares, empresários e políticos (em evidência Bolsonaro,seus filhos e seus ministros) pelos crimes cometidos durante seu governo (como a condução mortífera da Pandemia de Covid -19), pelos cometidos de incitação ao ódio e pelos atos concretos praticados para romper com premissas democráticas institucionais. 

“O problema de não realizarmos esse acerto de contas não é de ordem moral ou punitivista.”

Ainda, deve haver uma mobilização constante da sociedade para não permitir que as manifestações da extrema direita sejam a única visão de ocupação das ruas. A demonstração da maioria consolidada nas urnas com a vitória de Lula precisa ser constante. A sensação de ser maioria social empodera as células fascistas e ajuda na narrativa de que as eleições não representaram a verdadeira vontade popular. 

O pacto de reconstrução nacional que o governo Lula representa não pode englobar setores do fascismo. Não pode pensar em colocar panos quentes com alianças aos grupos militares e de extrema direita que fortaleceram Bolsonaro. Inclusive porque há até grupos econômicos que ganharam muito com esse governo e agora buscam melhores condições de negociação para a manutenção de seus privilégios econômicos (sendo alguns espúrios, como o caso dos que ganham à custa da depredação ambiental). Por isso, é preciso coragem e enfrentamento. 

Cenário no horizonte

Fomos favorecidos por um cenário mundial que dificultava qualquer tentativa de golpe por Bolsonaro. A falta de apoio internacional de países com capacidade de oferecer resguardo a uma investida autoritária por Bolsonaro parece ter sido determinante. Mas o cenário mundial ainda é incerto, a extrema direita permanece com peso significativo ainda que tenha perdido maioria em países importantes nos últimos anos (a exceção de Giorgia Meloni, na Itália, que chegou a êxito nas últimas eleições, com um discurso fascista e conservador que remonta à Itália do século 20-30).

Não sabemos se o governo dos EUA, por exemplo, fosse ocupado por Trump, se a postura fugitiva e furtiva de Bolsonaro seria a mesma. Bolsonaro quer preservar a si e sua família e com receio das responsabilizações sai da câmara frontal para atuar de maneira desarticulada pelas suas redes. Há riscos também, de uma certa agenda de responsabilização ser apropriada por Bolsonaro como forma de aumento da ideia de “mito” sob o prisma de uma suposta perseguição. Desse modo, mantém a tática de ficar por detrás das cortinas e manter firme as estratégias fascistas pulverizadas – que fortalecem ainda sua figura (mesmo com contradições pela sua não participação direta) e as possibilidades de negociações melhores, visando uma espécie de anistia (dessa vez também meio ampla e irrestrita).

“Se fizermos agora, teremos no máximo uma pausa de intensidade nos ataques golpistas nos próximos quatros anos do que vimos antes até aqui.” 

As primeiras reações às invasões de domingo pelo governo Lula e as instituições foram assertivas. Medidas contundentes foram tomadas, como a intervenção federal na segurança pública do DF, o afastamento pelo STF do governador Ibaneis e as diversas manifestações populares em defesa da democracia no dia seguinte. Permanece preocupante e nebuloso, no entanto, o papel específico do ministro da Defesa e sua relação com setores golpistas das Forças Armadas. Se não houver algum grau de segurança na condução do Ministério da Defesa e de alguns setores das Forças Armadas com maior aproximação com o governo, o clima de ameaça constante será incontornável. Por isso, é necessário não apenas a responsabilização dos atuais articuladores, financiadores e invasores de domingo, mas de uma resposta mais estrutural e capaz de desmobilizar essa estrutura.

O problema de não realizarmos esse acerto de contas não é de ordem moral ou punitivista. É que se não o fizermos agora, teremos no máximo uma pausa de intensidade nos próximos quatros anos do que vimos antes até aqui – lembrando que o extermínio da juventude negra nunca foi interrompido e revela aspecto fundamentalmente fascista do Estado brasileiro, e continuaremos sob a constante ameaça fascista, com ações extremistas e de articulação de novas lideranças e figuras que representam esse movimento. Entender essa construção fascista como um movimento social e político é fundamental para compreender como desarticulá-lo.

 

Sobre a autora

 

é advogada, doutoranda em Direito pela USP, professora de Direito na Anhembi Morumbi e pesquisadora do DCHTEM/USP e NEV/USP.

 

fonte: https://jacobin.com.br/2023/01/como-desmontar-a-estrutura-que-sustenta-o-golpismo/