Glauco Rodrigues, Sem título [Mergulho na cidade do Rio de Janeiro], serigrafia, 1987.
 
 

Por DEBORA MAZZA*

Considerações sobre o livro de Elena Ferrante

Dias de abandono, de Elena Ferrante, conta a história de Olga, uma mulher de 38 anos, serena e satisfeita que é repentinamente abandonada pelo marido e cai em um redemoinho de encontros com cenários sombrios, passados e presentes. Deixada pelo marido Mario, com um filho, uma filha e um cachorro, na pacata Turim para onde havia se mudado há alguns anos em decorrência do trabalho dele, Olga, profundamente enodoada pela dor e pela humilhação do abandono, é sugada pelos fantasmas de sua infância que se apoderam do presente e a encerram em uma autopercepção alienada, assustadora e intermitente. Assim começa um processo de queda ruinosa, marcada por perturbações mentais e comportamentais que resultam em estado alterado de consciência sobre si mesma, a realidade e a perspectiva de retomada da vida.

A narrativa se organiza sedutoramente em 47 capítulos, mas sua estrutura profunda parece exprimir matematicamente movimentos demarcados em três tempos: a não aceitação da separação, a esperança do retorno, a constatação da traição e do fim do casamento (capítulos 1- 17), os transtornos com o cotidiano arriscado, desesperador, insuportável e o desenvolvimento de um quadro borderline (capítulos 18- 33), a tentativa de retomada do sentido da vida a partir de outros parâmetros (capítulos 34 a 47).

O estilo contemporâneo de Elena Ferrante nos empurra para um terreno escorregadio que embaralha as fronteiras do senso e dos delírios, somados a pânicos causados por esquecimentos que colocam em riscos eminentes a sua vida e a de humanos e não humanos que estão sob seus cuidados.

A leitura nos lança em ziguezague no poço fundo da perturbação mental e prática e nos arranca para tomar um folego nas demandas insignificantes e urgentes da vida cotidiana. Em vários momentos somos convocados a vida a partir dos problemas rotineiros do celular quebrado, do vazamento de água da banheira, do pagamento da conta etc. Desta forma, o banal e o corriqueiro emergem como dimensões que nos resgatam da loucura e da sedução da morte.

De tudo se desprende uma visão sofrida, embaçada e pragmática da vida, expressa numa linguagem que transita entre a assertividade das necessidades e das obrigações cotidianas que nos chamam para a realidade das pessoas, das coisas, das muitas formas de vida, da tecnologia e das circunstâncias e a obscuridade das figuras de dentro pouco compreendidas, mas inscritas na nossa estrutura psíquica e que insistem em saltar para a superfície quando menos esperamos.

A não aceitação da separação

O livro começa relatando uma tarde qualquer de abril quando após o almoço de domingo, enquanto as crianças brincavam e a mesa era retirada, Mario (40 anos) comunica a Olga (38 anos) que queria lhe deixar. Depois dessa sentença inesperada, aparentemente sem nenhum fato novo, Olga inicia um processo de acumulação de destroços de um casamento de quinze anos com duas crianças e um cachorro descrevendo um cotidiano vivido em um apartamento em Turim, Região de Piemonte, norte da Itália.

Olga vinha de uma família de Nápoles, Região de Campânia, sul da Itália, e cresceu presenciando tons de voz alta, movimentos bruscos, sentimentos ruidosos, expressões estrondorosas e se sentia comprimida com estes costumes. Deixou a cidade com 20 anos para trabalhar em uma companhia aérea em Roma com a intenção de nunca mais voltar. Com 22 anos conheceu Mario, se casou e pediu demissão para poder segui-lo no seu trabalho como engenheiro. Deixaram a Itália e viveram no Canada, depois na Espanha e na Grécia.

Durante o relacionamento, Olga identificava apenas dois incidentes críticos: um quando ainda eram namorados e Mario rompeu o relacionamento mas voltou após uma semana dizendo que sentia um grande vazio longe dela; outro quando se mudaram para Turim e Gina, uma colega de faculdade de engenharia de Mario, mulher inteligente, de família abastada e viúva com uma filha de 15 anos, Carla, ajudou-os a se estabelecerem na cidade, estreitou amizades e Olga sentiu que mãe e filha assediavam Mario. Esta situação levou o casal a uma discussão, distanciamento e restabelecimento da rotina familiar.

Desta forma, Olga sentia que a separação não se efetivaria, primeiro porque ele saiu deixando todos os seus pertences; segundo porque intuía que ele reveria sua posição, pensaria melhor e voltaria para casa.

Na primeira semana, Mario passou todos os dias, no fim de tarde, para conversar com Gianni (11 anos), brincar com Ilaria (8 anos) e passear no parque com Otto, o pastor. Olga se arrumava para recebê-lo pois ansiava por seu retorno. Ele se retraia, era vago, se autodepreciava alegando delírios de infância, incapacidade de desenvolver sentimentos verdadeiros e derivas profissionais. Ela o ouvia com atenção e se mostrava compreensiva e disponível para ajudá-lo a superar esse momento de crise.

Certo dia disse a Olga: “viver juntos, dormir na mesma cama, torna o corpo do outro um relógio, um medidor da vida que vai embora deixando um rastro de angústia” (p. 37). Ela entendeu que ele não suportava o correr da vida e a culpava.

Ela, por sua vez, se alterou e passou a se lembrar de figuras obscuras de sua infância napolitana, de poverellas (pobres mulheres abandonadas pelos maridos) que perderam tudo: o conforto, a dignidade, a beleza, a auto estima, o sobrenome e o respeito da comunidade. Entrou em uma onda de incerteza e insegurança.

Frente a angústia crescente, a fraqueza do corpo e a desordem mental e a prática imposta pela condição de poverella, por duas semanas, Olga levantou um dia tonta, correu para ajeitar a casa, atendeu as crianças, andou com o pastor e esperou a visita de Mario. Comprou um vinho, preparou um molho vermelho, almôndegas, batatas assadas com alecrim e macarrão. A ideia era convidá-lo para jantar e colocá-lo contra a parede pois já não aguentava mais suas histórias incertas. No entanto, a sensação de exaustão e o excesso de trabalho sem prazer, levou-a desastres como derrubar o açucareiro na cozinha, estourar a garrafa de vinho quando tentou gelá-la e cortar a mão com o abridor de latas. Limpou tudo como pode e quando estavam à mesa foi direta: “- Você se apaixonou por outra mulher? Quem é ela? Eu a conheço?”

Mario tentou aparentar desenvoltura e alegar que aquela pergunta estava fora de lugar, mas no meio da discussão e do jantar mastigando metodicamente uma garfada de macarrão com molho, mordeu algo, gemeu de dor e começou a sangrar pela boca. Era uma lasca de vidro que escapou desapercebida na comida. Levantou-se de supetão, derrubou a cadeira, ofendeu a loucura e pequenez de Olga e saiu batendo a porta. Ela, diante da expressão de ódio manifesta por Mario e desconhecida por ela, até então, ficou horrorizada com a cena imprevista.

A partir deste momento, entramos em contato com uma narrativa cortante de Olga tentando se convencer sobre o improvável retorno do marido, o desespero de tentar compreender o que se passou, o que o levou a tomar esta decisão, o que ela fez de errado, o que aconteceu com ele e onde foi que o casamento se desfez. Recordava que tinha abandonado tudo para seguir Mario e corresponder aos seus costumes, a sua cultura, inteligência e carreira profissional. Tinha abandonado o sonho adolescente de ser escritora. Informa-nos, rapidamente, que quando jovem tinha suas pretensões e pensava querer escrever histórias de mulheres com muitos recursos, mulheres com palavras indestrutíveis e não um manual da esposa abandonada.

Diz: “Eu não gostava da página muito fechada, como uma persiana abaixada. Eu gostava da luz, gostava do ar entre as ripas. Eu queria escrever histórias cheias de correntes de ar, raios filtrados pelos quais dança o pó. E depois eu amava a escrita de quem te faz olhar para baixo de cada linha deixando sentir a vertigem da profundidade, a escuridão do inferno” (p. 17).

Mario desapareceu e Olga busca desesperadamente notícias através de amigos comuns. Aos olhos dela ele era alto, bonito, culto, educado e muito atraente. Descobre que ele estava em outro relacionamento, com uma mulher mais jovem. Então passou a elucubrar, dia e noite, as loucuras sexuais que ele vivia com a nova mulher, adotou um vocabulário chulo para se referir as possíveis putarias e perdeu-se na loucura fantasiosa de “noites de cópula com ele em cima dela apalpando sua bunda suada ” (p. 19) “os rostos saciados de quem não faz outra coisa além de foder. Beijavam-se, mordiam-se, lambiam-se” (p. 23).

Abandonou a casa e as crianças, desenvolveu insônia e, nas madrugadas mal dormidas, passeava com o cachorro na praça que havia em frente ao prédio que habitava. Numa destas rotas de fuga, encontra-se com Carrano, o vizinho músico do andar debaixo, a seus olhos, um homem curvo, magro, com pernas compridas, caminhar pesado, cabelos grisalhos, figura escura e expandida pelo instrumento que carregava. Ele, distraído, cansado e voltando de um concerto, pisou no coco do Otto, escorregou e quase caiu. Dirigiu-se a ela e disse: “- A senhora viu? Estraguei o meu sapato. ”

Olga envergonhada se desculpou, chamou energicamente o cão e o prendeu na coleira. Ele reagiu dizendo que não precisava se desculpar mas devia levá-lo para passear no outro lado do bosque pois muita gente já havia reclamado. Ela disse: – Sinto muito, meu marido normalmente toma cuidado…” – “Seu marido, me desculpe, é um mal-educado. Diga-lhe que não abuse. Conheço pessoas que não hesitariam em encher esse lugar com almondegas envenenadas” – Não vou dizer nada ao meu marido. Eu não tenho mais um marido” (p. 20-21).

Foi a primeira vez que Olga tomou conhecimento de críticas que outras pessoas faziam ao Mario. Será que ele poderia não ser tão perfeito quanto ela acreditara?

Segue-se a esta ocorrência um mergulho espiral em pensamentos obsessivos somado a repentina sobrecarga de tarefas que lançam Olga em um quadro de contrariedades afetando sua capacidade de pensar, sentir e se comportar com clareza. Vai perdendo o contato com a realidade, desorganizando seus comportamentos e reduzindo a concentração na realização das responsabilidades cotidianas.

Certo dia, no início de agosto, circulando por um bairro de Turim buscando resolver o problema da linha telefônica que havia sido desligada por falta de pagamento, Olga vê Mario circulando numa praça pública de mãos dadas com Carla, a filha de Gina, agora com 20 anos. Naquele momento entende que ele a enganava há cerca de cinco anos. Não consegue se controlar, bate o carro ao estacionar, avança em Mario com tapas e socos, tenta atingir Carla, mas sua explosão de brutalidade é contida por ele. Muitos passantes presenciam a cena e não intervêm.

Nessa mesma noite, depois de colocar as crianças para dormir, Olga pensa em acabar com sua vida, mas vê a carteira de motorista do vizinho músico que havia encontrado na praça quando passeava com Otto e muda de rota. Penteia-se, pega uma garrafa de vinho e vai ao apartamento de Carrano tentando fugir de sentimentos profundos e dolorosos de inveja, ciúme, raiva e traição. Sente-se como “a vespa que pica, a cobra escura, o animal invulnerável que atravessa o fogo sem se queimar” (p. 73). Faz sexo com ele, no entanto, mesmo oscilando entre o senso e o delírio, consegue entender que ali não existe atração e nem amor apenas rota de fuga do abismo profundo em que se encontra em queda livre.

Os transtornos mentais e comportamentais

A seguir nos deparamos com uma narrativa minuciosa, tensa e em ritmo acelerado que compõe o miolo do livro (capítulos 18 a 34).

No dia seguinte do encontro com Mario e Carla e da visita a Carrano, no verão encalorado de Turim, com as crianças em férias escolares e sem condições de levá-las para passear na praia ou nas montanhas, com a cidade vazia e o sumiço de Mario; Olga se põe entre a vida e a morte “pairando feito um equilibrista” (p. 41) no cenário do apartamento. São momentos de pânico e pavor que parecem durar uma eternidade pois ela vai tomando consciência de que a engrenagem da porta do apartamento está emperrada, o filho Gianni está vomitando, com dor de cabeça e febre alta; o pastor Otto tendo crises de espasmos e soltando uma substância com cheiro horrível pela boca e pelo intestino e Ilaria desesperada solicitando os cuidados da mãe e não conseguindo trazê-la para a normalidade de uma ação coordenada.

Olga oscila entre os fantasmas castradores da infância, a lembrança dos anos vividos com Mario e o presente desesperador de vidas que solicitam seus cuidados e sua responsabilidade. Diz para si mesma: “só tinha que aquietar a visão de dentro, os pensamentos. Confundiram-se, atropelavam-se, pedaços de palavras e imagens, rondavam rapidamente como um cacho de vespas, davam a meus gestos uma terrível capacidade de causar danos” (p. 89). Sabia que caia num precipício que destruía seu cérebro e sua capacidade de controle. Se indagava “onde estou? O que faço? Por que? […] Nada estava retido, tudo escorregava. Era preciso restituir-se em meio ao caos” (p. 103).

Lembrou-se que, na ausência das crianças durante o final de semana passado com o pai, havia dedetizado a casa para matar as formigas que apareciam naquela estação, e que talvez Gianni e Otto estivessem adoecendo pelo veneno esparramado por sua ação. Ao mesmo tempo, mergulha em pensamentos existenciais que a paralisam e impedem de medicar Gianni, limpar o vomito da cama, socorrer Otto, limpar suas secreções e orientar a colaboração de Ilaria.

O fogão acesso, o vazamento d´água na banheira, o celular quebrado, a conta vencida, o telefone desligado, o sinal de trânsito fechado, o sapato apertado, a troca da fechadura da porta de entrada, a fome das crianças são chamamentos corriqueiros e cotidianos que obrigam Olga a deslizar-se por entre as camadas do eu profundo e a realidade da vida.

Neste cenário desesperador, ela se olha no espelho e – talvez numa apropriação por Elena Ferrante do estádio do espelho de Lacan – se conscientiza do seu pouco controle, da sua frágil resistência, bem como, de seu forte vínculo de amor e afeto pelas crianças e pelo cachorro. Transcende a imagem frontal do espelho e alcança “a geometria oculta” dos muitos lados fugidios e desordenados que atravessam o processo de formação de si. Entende que “os sentidos, o sentido da sua vida dela com Mario […] foram somente uma luz no fim da adolescência, uma ilusão de estabilidade. A partir de agora era preciso confiar na estranheza mais do que na familiaridade, e movendo-se daí devolver […] devagar a confiança e tornar-se adulta” (p. 120).

Olga compreende que seu corpo desobedecia e sua atenção se perdia, “não conseguia estabelecer hierarquias, sobretudo, não conseguia preocupar-se” (p. 106). Numa tentativa de “remediar e segurar-se à beira” ela dá a Ilaria um cortador de papel para que a menina a machucasse fisicamente toda vez que ela variasse, escorregasse e se desligasse da urgência do real. Precisava da ancoragem da dor física para lhe “restituir uma medida” enfraquecida que estava depois de quatro meses de tensão, dor e dias de abandono. Era preciso “começar de novo a escrever bem. Apagar o supérfluo. Restituir o campo. Virar a página. Desenhar novamente as bordas do corpo” (p. 123).

Assim, em meio ao descontrole e contando com a ajuda de Ilaria, Olga consegue manejar estratégias barulhentas que chamem a atenção de Carrano, o único morador que permaneceu no prédio durante as férias de verão. Consegue localizar o paracetamol, medicar o filho e instruir a filha para monitorar a temperatura do irmão. Enquanto isso, isola Otto na lavanderia, acompanha seus últimos minutos de vida, limpa sua sujeira e o embrulha em um saco para poupar a crianças de vê-lo morto. No meio do dia, a campainha toca e ela consegue finalmente abrir a porta. As crianças pensam ser Mario, mas era o vizinho que chegava da rua e passava para saber se ela estava bem e se precisava de alguma ajuda. Ela o recebe e diz: “Tenho um trabalho sujo para você” (p. 144). Era preciso enterrar o cachorro.

Carrano, desde a noite anterior se sentia afetado pela beleza, sensualidade e fragilidade de Olga. Era um homem de gestos tímidos, educados e silenciosos com capacidade de participar da tragédia familiar daquele dia quente e repleto de insensatezOlga sentiu que suas lágrimas haviam secado naquele dia.

A retomada do sentido da vida

Os capítulos do último segmento do romance (35 a 47) nos envolvem em um ritmo narrativo embalado em uma temporalidade de eventos mais lentos que buscam a retomada do cotidiano e do sentido da existência. O parâmetro temporal é indicado com a expressão “algumas semanas depois”.

Olga sentia que seu corpo havia atravessado a experiência pesada da morte, Otto havia lhe ensinado coisas e agora poderia se permitir a leveza da vida. Ela juntava seus pedaços e compreendia que já não mais amava Mario. Repetia para si: “o pior já passou”. Precisava aprender de novo “a certeza plana dos dias normais”. Havia se visto no fundo de um buraco e era necessário “aprender de novo o passo tranquilo de quem acha que sabe onde está indo e por que” (p. 145).

No mesmo dia, buscou diagnosticar a morte de Otto com o veterinário de sua confiança. Consultou o seu pediatra de Gianni e descobriu que nada era culpa sua. A morte de Otto foi ocasionada por alguma coisa envenenada, provavelmente, encontrada e comida na rua e a doença de Gianni foi acarretada por um rotavírus.

Algumas semanas depois, retomou as boas maneiras da fala mansa, a segurança da língua livresca e o exercício da gentileza. Utilizar as palavras corretas a tranquilizava. Buscou encontrar o tom certo nas relações futuras com as crianças e com o Mario. Liberou as crianças para uma maior convivência com o pai nos finais de semana. Retomou os encontros com alguns amigos. Passou a identificar novas oportunidades relacionais e se abriu para escutar comentários que apontavam o comportamento prepotente, insensível e oportunista de Mario. Sentia “como se estivesse em pé, sobre o parapeito de um poço, num precário equilíbrio” (p. 165)

Assistiu a um concerto de Carrano e reconheceu, incrédula, um homem mais alto, magro, elegante, com cabelos que reluziam um metal precioso, sedutor, com tórax, braços e mãos que conduziam e tocavam sedutoramente um violoncelo.

Sentia que o acontecer de tantas lacerações de descuido de si a jogava na corda fina de uma trama que agora ela juntava e segurava firme com suas próprias mãos. Reconhecia que “aquele homem do andar de baixo se tornara guardião de uma potência misteriosa que escondia por modéstia, por cortesia e por boa educação” (p. 174). Ele, por sua vez, lhe trazia silenciosamente, flores, acudia as crianças em brigas de rua, arrebanhava objetos perdidos por Olga nas imediações do prédio e lhe observava com desejo.

Algumas semanas depois, com a ajuda de amigos, arrumou trabalho em uma agencia de locação de automóveis para cuidar da correspondência internacional. Um dia foi surpreendida com a visita de Mario e Carla que foram reclamar sobre os serviços que a empresa havia lhes prestado nas férias em Barcelona. Olga vendo a tratativa arrogante que ele dispensava a atendente se propôs a se ocupar daqueles clientes. Apareceu no balcão de atendimento, causou espanto e boa impressão pela condução gentil do protocolo e aproveitou para informar a Mario sobre seus mal momentos, o mal estar de Gianni e a morte de Otto. Mario estremeceu e perguntou: – Morreu? – Envenenado. – Quem foi? – Você. – Eu? – Sim. Descobri que você é um homem rude. As pessoas respondem à rudeza com maldade” (p. 176).

Dois dias depois desse encontro, Mario visita os filhos com presentes e pergunta a Olga se ela tinha deixado de amá-lo. Ela lhe responde: “- Sim – Por que? Por que te menti? Por que te larguei? Por que te ofendi? – Não. Justamente quando me senti traída, abandonada, humilhada, te amei muitíssimo, te desejei mais do que em qualquer outro momento. – E então?

– Não te amo mais porque, para se justificar, você disse que tinha caído no vazio de sentido e não era verdade. – Era sim – Não. Agora eu sei o que é um vazio de sentido e o que acontece se você consegue voltar à superfície. Você não sabe. Você no máximo lançou um olhar para baixo, se assustou e tampou o buraco com o corpo de Carla” (p. 181).

Mario mostrou-se incomodado, informou-lhe que prepararia os tramites da separação e disse-lhe que não poderia ficar todos os finais de semana com as crianças porque Carla andava cansada, precisando estudar para as provas e o desgaste com as crianças poderia atrapalhar o seu relacionamento, afinal, ela era a mãe.

Três dias depois, voltando do trabalho, Olga encontra no capacho do apartamento um botão e um grampo de cabelo que gostava muito e havia perdido na correria. Carrano os resgatou e lhe entregou. Eram as pequenas gentilezas silenciosas de cuidado que ele dirigia a Olga, ao Gianni e a Ilaria. Vieram muitas outras e num final de semana depois que as crianças saíram para a casa de Mario, Olga se banhou, se maquiou e bateu na novamente na porta do vizinho.

Pensou com gratidão naqueles meses, que com discrição, “ele se esforçara para recosturar ao meu redor um mundo confiável. […] Queria me dizer que eu já não tinha mais motivo para me desanimar, que cada movimento era narrável em todas as suas razões, boas ou más, que em suma chegara o momento de voltar à força dos nexos que enlaçam juntos os espaços e os tempos” (p. 182).

Olga o viu como um homem de vida densa e pareceu-lhe a pessoa que ela precisava naquele momento. “Era uma sombra atraente por trás de um vidro fosco” (p. 183). Ela o beijou e ele indagou-a sobre o que havia acontecido depois da primeira vez que eles se encontraram.

“- Foi muito ruim? Ela respondeu: – Sim – O que aconteceu naquela noite?

– Tive uma reação de excesso que rompeu a superfície das coisas. – E depois? – Cai. – E onde você parou? – Em lugar nenhum. Não havia profundidade, não havia precipício. Não havia nada” (p. 183).

Eles se abraçaram por algum tempo e, em silencio, reforçaram e reinventaram o sentido da plenitude e da alegria. “Amaram-se longamente, nos dias e meses porvir, quietamente” (p. 183).

Elena Ferrante

O que dizer de Elena Ferrante? Um pseudônimo de um(a) autor(a) italiano(a), reconhecido(a) mundialmente que não mostra seu rosto e nem dá pistas de sua identidade.

Nas poucas entrevistas concedidas por escrito e todas elas por intermédio de suas editoras italianas, explica que optou pelo anonimato para poder escrever com liberdade e não se deixar influenciar pela imagem pública provocada pela recepção de seus livros. Alega que “já fez tudo que podia ter feito por seus livros escrevendo-os”. Especula-se várias possibilidades de revelação de sua identidade e também que tenha nascido em Nápoles principalmente pelas descrições detalhadas da cidade e dos costumes presentes em sua obra.

Escreve desde 1991, ano em que publicou seu primeiro romance L´amore molesto (Um amor incômodo, no Brasil), convertido em um filme memorável por Mario Martone. Sua tetralogia napolitana, também foi convertida no filme A amiga genial, por Saverio Costanzo. Outro romance La figlia oscura (2006) (A filha perdida), contou com a adaptação de Maggie Gyllenhaal, recebendo três indicações para o 94º. Oscar 2021. No momento, a Netflix exibe uma série intitulada A vida mentirosa dos adultos dirigida por Edoardo De Angelis e inspirada no romance homônimo (SECCHES, 2023).

Nesse mistério, no entanto, residem certezas objetivas: “a força gigantesca de sua literatura, a recusa do artificialismo da linguagem, o mergulho na consciência profunda das personagens e a honestidade brutal, tão perturbadora quanto redentora: confessar sentimentos de abandono, ciúme, inveja e vergonha é também tomar consciência dos próprios afetos e libertar-se das ilusões” (Segunda orelha do livro).

A prosa de Elena Ferrante nos convida a visitar nossas cavidades profundas e acessar nossos dilemas existenciais de esquecimentos dos filhos, fantasmas inconscientes, pulsões de morte, equilíbrios precários, abandonos doloridos, traições íntimas que podem emperrar ou acelerar o entendimento de que toda experiência vivida está contida no aparelho psíquico afetando o nosso desenvolvimento cognitivo, físico, social e emocional. No limite, é com isto que contamos.

Winnicott (1994) sugere que o medo do colapso é um fenômeno universal relacionado às experiências passadas, individuais e societárias, na relação com os caprichos do meio circundante.[i] Ele representa a lembrança de fracasso de uma organização de defesa de si e, enquanto tal, esta situação passada torna-se uma questão do aqui e agora, experimentada como sensação de aniquilamento, intromissões infantis, invasão de falhas, pontos cegos que nos colocam em risco.

Desse modo, as humanidades expandidas e esgarçadas retratadas nos personagens de Dias de abandono nos acossam a olhar no espelho e ver a geometria oculta dos muitos lados desordenados que compõem as muitas camadas do que somos e nos alertam que o colapso já aconteceu e o que restou foi a lembrança do acontecimento que projeta o medo para o presente e o futuro. Por isso, Olga não vê nada, nem profundidade e nem precipício. Nada de novo.

Nesse momento em que o processo civilizatório, nacional e internacional, flerta com o neoliberalismo, neoconservadorismo e neofinancismo, todos eles gourmetizados ideologicamente em um cristianismo soft – narcisista, autoritário e consumista – que apresenta a religião como uma questão individual, midiática, empreendedora e de alpinismo social; a narrativa de Elena Ferrante pode nos ajudar a resistir e compreender que não existe nada de novo no front, a tragédia já aconteceu, temos apenas que ter coragem e adultecer lastreados nas práticas do cuidado de si, dos outros e nos vínculos afetuosos e duradouros com os vizinhos, os amigos, os coletivos e a capacidade de amar quietamente e sem exibicionismo.

*Débora Mazza é professora do Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Educação da Unicamp.

Referência

Elena Ferrante. Dias de abandono. Tradução: Francesca Cricelli. São Paulo, Bibloteca Azul, 2016.

Nota

[i] Agradeço a Fernanda Ferreira Gil a indicação de leitura deste texto.

 

fonte: https://aterraeredonda.com.br/dias-de-abandono/


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