À frente de seu tempo, Chica Barrosa, conhecida como "Rainha Negra do Repente", propagou com sua voz e sua viola os desafios das batalhas poéticas feitas de improviso por uma dupla diante do público

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Ilustração de Chica Barrosa utilizada em cartazes de um evento literário no qual ela foi a autora homenageada – Ilustração: Cedida pela pesquisadora

 
Jornal da USP - 3/02/2023

Texto: Ivanir Ferreira
Arte: Simone Gomes

 

Invertendo a ordem social da época, Chica Barrosa, poetisa, repentista, negra, nascida na Paraíba na segunda metade do século 19, foi um ícone no campo das poéticas orais no Nordeste brasileiro. Ficou conhecida como a “Rainha Negra do Repente”. Se vivesse hoje, ela seria uma ativista dos movimentos feministas e/ou do antirracismo. Em suas apresentações, fazia questão de se identificar como mulher negra e atrevida, e dava ênfase à pronúncia do sufixo feminino de seu sobrenome, dizendo-se “Barrosa”, com letra “A”.

“Era mesmo atrevida e foi assim que conquistou o seu lugar na cantoria, um espaço que era predominantemente masculino. Embora fosse respeitada e admirada como grande repentista de sua época, tudo indica que ela também provocou muito incômodo por onde passou. 

Em um contexto bastante adverso, marcado pelo domínio patriarcal e por relações escravistas, mesmo nos anos do pós-abolição, Chica, cujo nome de batismo era Francisca Maria da Conceição, foi brutalmente assassinada durante uma cantoria” conta ao Jornal da USP Mariana do Nascimento Ananias, autora da pesquisa que resultou em uma dissertação de mestrado, defendida em janeiro de 2023, no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP. 

“Os depoimentos encontrados apontam diferentes versões sobre as circunstâncias desse assassinato. Em todas elas, fica evidente a violência cometida contra uma mulher negra, vítima de feminicídio”, diz a pesquisadora.


Legenda: Mariana Ananias, autora da pesquisa sobre Chica Barrosa - Foto: Arquivo pessoal

 

O estudo dessas histórias biográfico-literárias, permeadas de glórias e dramas, foi realizado por Mariana, que também é musicista e formada em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. A pesquisadora fez análise de notas e fragmentos coletados em fontes bibliográficas, realizou entrevistas com autores especialistas em cordel e cantoria, coletou depoimentos de moradores antigos dos lugares onde Chica se apresentava, de descendentes de repentistas que duelavam com ela; além de consultar cartórios, arquivos, acervos privados, incluindo o da Universidade de Poitiers (França) e fontes eclesiásticas. Sobre a data exata do nascimento de Chica Barrosa ou de suas apresentações, não foi possível verificar com precisão. Segundo a pesquisadora, a estimativa é que ela tenha nascido por volta de 1867, na Província da Paraíba. Mariana chegou a procurar documentos de batismo em igrejas locais, mas não encontrou nenhum que confirmasse esse dado.

“Meu objetivo foi apresentar um estudo multidisciplinar acerca da poesia e da atuação dessa grande autora negra da Paraíba oitocentista, que produziu a sua arte através da oralidade e é considerada a primeira mulher repentista a se estabelecer na profissão”, diz a pesquisadora ao Jornal da USP.

Segundo o professor Paulo Teixeira Iumatti, orientador da pesquisa, o trabalho de Mariana é muito importante na medida em que se concentra no estudo da trajetória individual de uma cantadora negra que deixou poucos registros, aprofundando-se no levantamento de documentação primária e em depoimentos orais.

“Muita mitologia se construiu em torno de Chica Barrosa e faltava um estudo mais sistemático dos documentos e de rastros deixados na memória social. A pesquisa rompe com o binômio idealização/detração (ataques), fazendo avançar o conhecimento científico. Mariana foi hábil em lidar com os silêncios da documentação, em mapear os circuitos que Chica Barrosa integrava e em fazer uma leitura sensível dos registros dos folcloristas, incorporando uma dimensão literária e de retórica”, diz Iumatti.

Mariana lembra aspectos marcantes na poética de Chica Barrosa: a firmeza em relação às questões sociais e raciais de seu tempo e seu deslocamento por diferentes territórios do Nordeste, desafiando célebres cantadores.

Capa do disco Mulheres no Repente. Minervina Ferreira e Mocinha da Passira, duas grandes repentistas da atualidade – Imagem: cedida pela pesquisadora

 

Há registros de duelos com repentistas do Piauí, da Paraíba e do Ceará. Em seus repentes, Barrosa respondia à altura aos ataques e provocações que recebia em uma cantoria.

Mariana explica que esse procedimento é conhecido como “insulto poético” e faz parte dos desafios do repente. “Trata-se de um momento do embate em que ambos se atacam através da poesia e procuram demonstrar, diante do público, quem é melhor repentista. No entanto, no caso de Chica Barrosa, por ser uma mulher negra naquele período, verifica-se que foi preciso grande fôlego poético na elaboração de estratégias para responder aos ataques associados ao seu gênero e à sua raça.”

Relações de poder: desafio aos homens que possuíam terra

Neco, você não se esqueça
De que sou negra atrevida…
Eu no dia em que me estorvo
Só canto é à toda brida
Meus olhos se acacurutam,
Fica a venda retorcida,
Cantadô macho é bobage,
Não pode com a minha vida.”

Fragmento extraído do livro Cantadores (1921), de Leonardo Mota, página 81.

Nos versos acima, há o registro de um fragmento do duelo entre Chica Barrosa e um coronel fazendeiro (Neco Martins) que era poderoso no Ceará. A repentista dizia que ninguém a dominava e que se fosse preciso até em fera, e das mais bravas, ela se transformaria, relata Mariana em sua dissertação.

Ataques raciais, resistência cultural e religiosa

Em outro momento, esse mesmo Neco Martins entoou o seguinte verso provocando Chica:

“Eu agora, estou ciente, (Neco Martins)
Que negro não é cristão:
Pois a alma dessa gente
Saiu debaixo do chão,
E lá na mansão celeste,
Não entra quem é ladrão!”

“Mas seu Neco, a diferença (Chica Barrosa)
Entre nós, só é na cô,
Eu, também, fui batizada
Sô cristão como o sinhô!
De meter mão no alheio
Nunca ninguém me acusô!
De ir o preto para o céu,
Seja o branco sabedô,
E, lá na Mansão Celeste,
Se quiser Nosso Sinhô;
Vai o branco pra cozinha
E o preto para o andô!”

Grandes escritoras negras

Mariana conta que, ao longo do tempo, “a literatura de mulheres negras existiu e resistiu no Brasil”, e lembra do nome de Maria Firmina dos Reis. Mulher negra nascida e criada no Maranhão, foi reconhecida recentemente como a primeira romancista brasileira. O livro Úrsula, de sua autoria, foi considerado o primeiro romance abolicionista do Brasil.

A pesquisadora lembra ainda da escritora mineira Carolina Maria de Jesus, que migrou para São Paulo e foi morar em uma favela na zona norte paulistana. Ela é autora do livro Quarto de despejo: o diário de uma favelada (1960). É destaque da literatura negra. A obra conta sua lida cotidiana e pesada (era empregada doméstica e catadora de material reciclável) para criar sozinha seus três filhos. Carolina disse certa vez: “Assim como as palavras, as pessoas que as escrevem não podem ser apagadas. Não, senhor. Ninguém vai apagar as palavras que eu escrevi…”

Mariana diz que, além da palavra escrita que está mais bem consolidada na academia, “a poesia brasileira também ecoa através da oralidade na voz de diversas mulheres e homens de várias regiões do País”. E foi neste contexto que Chica Barrosa se situou. “Sua produção se insere no universo da cantoria e do improviso poético, uma rica tradição que teve origem no século 19 na região que hoje chamamos de Nordeste do Brasil”, conclui.

Ilustrações de violeiros (as) repentistas em capas de folhetos de cordel em 
técnica de xilogravura –  Imagem: cedida pela pesquisadora

 

Repente

 

O repente é uma poesia cantada diante do público com acompanhamento de um instrumento, no caso de Chica Barrosa, uma viola, mas podia ser pandeiro, tambor, rabeca ou ganzá.

Segundo Mariana, o nome é repente porque acontece de repente: é uma poesia improvisada a partir de regras e de determinadas formas fixas que estruturam as métricas dos versos que precisam ser dominadas pelos poetas. Realizado como prática coletiva diante de um público, o repente podia assumir também a forma de desafio quando dois poetas se enfrentam por meio de criação poética cantada e improvisada.

Ouça o podcast IEB sobre Chica Barrosa

Mais informações: e-mail Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo., com Mariana do Nascimento Ananias; e-mail Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo., com Paulo Teixeira Iumatti

 

fonte: https://jornal.usp.br/ciencias/ciencias-humanas/chica-barrosa-a-violeira-negra-no-sertao-oitocentista-que-subverteu-a-ordem-social-de-sua-epoca/

 


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