Estamos lidando com forças que são “naturalmente poderosas”. Seja olhando para as elites econômicas que estão presentes nessas formações (grandes corporações, por exemplo); seja olhando para o campo religioso, a começar pela Igreja Católica, que foi e continua sendo uma instituição milenarmente poderosa, e também pelas forças religiosas evangélicas. Claro, o cristianismo evangélico é muito mais disperso e muito mais heterogêneo com igrejas maiores e menores, mas há forças muito poderosas, particularmente nos Estados Unidos, mas também no Brasil. Além disso, os setores evangélicos têm muito poder midiático.

 

america latina

 

Entrevista com Sonia Corrêa
Por Revista Sur

O texto a seguir é resultado de uma entrevista que Sonia Corrêa gentilmente concedeu à Revista Sur no começo de dezembro de 2022. Em meio a uma agenda cheia de trabalho de pesquisa e incidência nacional e internacional em direitos humanos, no campo das políticas de gênero e sexualidade, Sonia, com a precisão e profundidade de análise que a caracterizam, nos falou por duas horas (via Zoom) sobre as tramas ultraconservadoras que nos trouxeram ao atual momento no Brasil e no mundo.

Em detalhe, ela traçou um fio lógico, mas não sempre evidente, de articulação global que envolve governos, movimentos religiosos e seculares, setores econômicos e midiáticos numa complexa rede de conexões políticas que desembocam numa ultradireita feroz. Apesar de sua longevidade, essa ultradireita apresenta importantes inovações não apenas na sua estratégia de mobilização, mas também, e mais preocupante ainda, numa outra forma de disputa no campo dos direitos humanos; uma disputa que é de ordem epistemológica, hermenêutica e gramatical.

Um dos pontos-chave do percurso histórico-político da reconfiguração do movimento transnacional conservador trazido por Sonia Corrêa é o lugar nodal que nele ocupa a América Latina, mas particularmente o Brasil, onde alguns personagens-chave do governo Bolsonaro tiveram papel preponderante na construção e fortalecimento destas conexões internacionais de longa data.

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Revista Sur • O que explicaria o alcance e a força do movimento transnacional conservador?

Sonia Corrêa • Uma primeira resposta óbvia: o poder e a força das formações da ultradireita e do ultraconservadorismo religioso vêm do poder dos atores nelas envolvidos. Estamos lidando com forças que são “naturalmente poderosas”. Seja olhando para as elites econômicas que estão presentes nessas formações (grandes corporações, por exemplo); seja olhando para o campo religioso, a começar pela Igreja Católica, que foi e continua sendo uma instituição milenarmente poderosa, e também pelas forças religiosas evangélicas. Claro, o cristianismo evangélico é muito mais disperso e muito mais heterogêneo com igrejas maiores e menores, mas há forças muito poderosas, particularmente nos Estados Unidos, mas também no Brasil. Além disso, os setores evangélicos têm muito poder midiático.

Então, o que explica a força do movimento conservador é o seu próprio poder. Um poder que eles querem preservar, seja pela via da política enquanto tal, seja recorrendo à política moral, com a imposição de normas de conduta. O seu alcance em parte deriva do poder originário das forças que o movem, mas há outro elemento a considerar – seu alcance histórico, ou seja, sua longevidade. A dinâmica das mobilizações ultraconservadoras e de ultradireita no presente é tão intensa que, com frequência, as análises perdem de vista essa dimensão.

S.C. • Na América Latina em geral, e no Brasil, em particular, tendem a prevalecer narrativas que enfatizam o surgimento súbito, a erupção surpreendente das forças de extrema-direita que imaginávamos recolhidas às suas tumbas, que supúnhamos erradicadas pelo processo de redemocratização, que, no caso do cone Sul, foi uma democratização de alta intensidade, pois implicou o fim de ditaduras militares. Essas ditaduras comungavam de ideologias que não são exatamente iguais, mas que têm traços comuns com os discursos e pautas mobilizados por essas forças hoje. Éric Fassin tem descrito o Brasil como um laboratório em que fascismo, ultraneoliberalismo, racismo e ideologia antigênero se entrelaçaram.2 Mas ele aponta para um laboratório anterior, o Chile, pois a racionalidade neoliberal foi testada no Chile de [Augusto] Pinochet antes de ser aplicada aos Estados Unidos e à Inglaterra, nos governos [Ronald] Reagan e [Margareth] Thatcher, respectivamente. E a ditadura chilena tinha uma associação visceral com o ultraconservadorismo católico, que era muito poderoso, mesmo quando parte da Igreja tenha denunciado violações de direitos humanos. A Corte Suprema de Pinochet suprimiu a lei do aborto terapêutico para salvar a vida das mulheres pouco antes da transição. No contexto dos acordos posteriores, a Concertação firmou um pacto com a Igreja de não alterar essa definição legal. A ruptura desse pacto só aconteceria em 2016 quando [Michelle] Bachelet apresentou no Congresso uma proposta de reforma que permitia o aborto nos casos de estupro, risco de vida e má-formação fetal.

É importante enfatizar essas trajetórias históricas porque na América Latina vivemos uma espécie de vertigem democrática, como diz Rita Segato; fomos levadas/os a pensar que essas forças do reacionarismo e do ultraconservadorismo tinham se recolhido aos seus cantos escuros e lá ficariam, porque a democratização as teria domesticado. Mas não é assim, como escreveu [Michel] Foucault muito tempo atrás, a tentação totalitária está sempre assombrando as democracias liberais. Esta “vertigem democrática” que vivemos entre os anos 1980 e 2010 impediu de perceber que, enquanto nos democratizávamos, forças reacionárias e ultraconservadoras, tanto do campo secular quanto no religioso (católico e evangélico), estavam num franco processo de reconfiguração e reorganização na Europa e nos Estados Unidos, mais especialmente nos Estados Unidos.

S.C. • Essa reconfiguração se deu na Europa de uma maneira mais intelectual. Não existiu, até recentemente, uma mobilização política tão evidente como nos Estados Unidos,3 onde essa mobilização desde sempre foi política. Começou nos anos 1970 a partir de uma estratégia de líderes do Partido Republicano para recuperar credibilidade e poder político num contexto de crise: Watergate, a renúncia de [Richard] Nixon e os efeitos da Guerra do Vietnã. Essa estratégia usou como mote a necessidade de reagir à secularização e ao liberalismo excessivo da sociedade norte-americana; e se desdobraria no chamado Movimento da Maioria Moral, dirigido e coordenado pelo pastor Jerry Falwell, que reunia pastores midiáticos, atores eclesiais e sociais ultracatólicos, mas também setores seculares poderosos, CEOs e think tanks como a Heritage Foundation e o International Policy Forum. Essa foi uma mobilização ultraconservadora, mas decididamente ecumênica. Não surpreende que a decisão da Suprema Corte no Caso Roe vs. Wade de 1973, que estabeleceu o direito constitucional das mulheres ao aborto com base no princípio de privacidade, tenha sido um dos primeiros alvos dessa mobilização. Historicamente, desde o século 19 a Igreja Católica se opunha ao aborto, mas só a partir do anos 1970 as igrejas protestantes e evangélicas se alinharam a essa posição.4

A decisão de 1973 foi derrogada em 24 de junho de 2022, no julgamento do caso Dobbs [vs. Jackson Women’s Health Organization], tornando o aborto praticamente ilegal em boa parte dos estados americanos. Esse retrocesso dramático foi o resultado de um investimento feito durante quase 50 anos por essas forças ultraconservadoras (e cada vez melhor reorganizadas) para restringir a autonomia sexual e reprodutiva das mulheres e pessoas que gestam. Essa é a ilustração mais contundente que posso oferecer sobre a longevidade dessa reorganização e seus efeitos deletérios.5

02

Da reação estática à “revolução conservadora”

A trajetória que levou à derrogação de Roe vs. Wade também ilustra a dinâmica que autoras e autores europeus têm denominado como giro gramsciano da direita.6 Uma direita que deixa de ser estática e reacionária, na defesa da ordem e das instituições, para se converter num motor de mobilização política que passa a disputar valores, concepções políticas e o senso comum em torno de muitas questões, mas começando por aquelas relacionadas a gênero e sexualidade. Uma direita que abre uma disputa com o feminismo e o emergente movimento LGBTQIA+ em torno de novas perspectivas sobre o desejo e a identidade sexual, direito ao aborto e formas de família. Nos Estados Unidos, essas disputas se desdobrariam mais tarde com relação às lutas antirracistas, às disputas ambientais e à defesa das pessoas migrantes.

Essas “ameaças” seriam listadas sob a categoria acusatória “marxismo cultural” que começou a circular com muita intensidade depois da implosão dos regimes socialistas na Rússia e na Europa do Leste, deixando a ultradireita americana e mundial sem seu inimigo principal. Essa circulação foi, sem dúvida, facilitada pela digitalização da política. Porém, o traço mais importante do chamado giro gramsciano da direita foi a relativização de estratégias verticais e geopolíticas em prol de disputas ferozes por corações e mentes para alijar e neutralizar “os inimigos internos” da ordem política e social, ou mesmo, segundo alguns autores, da civilização ocidental.

Outra estratégia da ultradireita foi adensar e diversificar a ocupação de espaços políticos institucionais. Nos EUA, essa “nova velha direita” se reorganizou de maneira absolutamente sistemática,7 adotou estratégias persistentes para ocupar o Judiciário, conseguindo a nomeação de juízes para os circuitos regionais da justiça federal americana e influenciando os governos republicanos de Reagan, [George] Bush, [George] Bush Filho e [Donald] Trump, conseguindo alterar radicalmente a composição da Suprema Corte. Alteração que explica a decisão Dobbs de 2022. Também foi feito um investimento brutal em produção acadêmica conservadora, sobretudo jurídica.8

Alianças conservadoras transnacionais

Os Estados Unidos dos anos 1970 foram como um campo de testes da reorganização ultraconservadora. Mas atores e atrizes da cena americana certamente estavam em comunicação com o campo ultraconservador europeu, sobretudo no Reino Unido de Margareth Thatcher (entre 1979 e 1990). Stuart Hall, num texto clássico dos anos 1980 sobre a era Thatcher, já qualificava o que estava acontecendo na Inglaterra como uma “revolução conservadora”.9

Certamente, existiam outras conexões com a Europa, sobretudo através de canais ultracatólicos, cujas bases sempre foram poderosas na Itália, na França e também na Alemanha. Mas ideias viajavam também pelos circuitos do próprio Vaticano.10 Em 1985, [Joseph Aloisius] Ratzinger manifestava grande inquietação frente às teorias feministas sobre sexualidade, afirmando que elas ameaçavam, potencialmente, a própria concepção de humanidade.11 Mas é preciso dizer que o campo ultraconservador secular também se reorganizou na Europa a partir dos anos 1970, orbitando especialmente em torno do Grupo de Estudos da Civilização Europeia (Groupement de Recherche et d’Études pour la Civilisation Européenne – GRECE, no original em francês) coordenado por Alain de Benoist, cuja produção certamente chegou ao EUA e a outros contextos.

Importante, contudo, é observar que o Brasil e a América Latina também estavam no mapa dessa reorganização. Trago algumas ilustrações: Benjamin Cowan, em seu livro Moral majorities across the Americas: Brazil, the United States, and the creation of the religious right (Maiorias morais em todas as Américas: O Brasil, os Estados Unidos e a criação do direito religioso, em tradução livre), examina, entre outras conexões, as relações entre Paul Weyrich e Plinio Corrêa de Oliveira, o fundador da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP). Weyrich12 foi fundador da The Heritage Foundation, um dos think tanks conservadores norte-americanos surgidos nos anos 1970, assim como da Conferência de Ação Política Conservadora (Conservative Political Action Conference – CPAC, no original em inglês), que é mais conhecido no Brasil, pois realizou três reuniões no país durante o governo Bolsonaro.

Weyrich também criou e dirigiu o International Policy Forum com ampla atuação transnacional, inclusive no Brasil, onde esteve várias vezes e ficou muito amigo de Plinio Corrêa de Oliveira, sendo inclusive disseminador de Revolução e Contrarrevolução, considerada a obra-prima de Plínio nos Estados Unidos. Weyrich também tinha uma parceria sólida com William Lind, que mais tarde ficaria conhecido como o inventor do “marxismo cultural”, muito embora não tenha senão compilado e divulgado ideias inventadas por outros.13 Para iluminar um pouco mais essas tramas do passado com luzes do presente, a Ordo Iuris, instituto polonês dedicado à elaboração jurídico-política conservadora, foi criado pela “Tradição, Família e Propriedade” europeia, ramo da antiga TFP brasileira (e não o contrário), que é dirigida por brasileiros que vivem na Europa e mantém conexões com o Instituto Plinio Corrêa de Oliveira (IPCO).14

Outra figura dessa mesma trama é o argentino Alejandro Chafuen, que vive nos Estados Unidos há muito tempo e é mais jovem que Plinio e Weyrich. Ele dirigiu a Atlas Network (Atlas Economic Research Foundation), que também disseminou pautas do chamado conservadorismo moral articulado à defesa das políticas ultraneoliberais. A Atlas teve e continua tendo uma forte atuação e influência nos países de língua espanhola.15

Muito significativo nesse rastreamento também é o livro Women of the Right (Mulheres da direita, em tradução livre), de 2012.16 No capítulo “Transnational Connections Among Right-Wing Women: Brazil, Chile, and the United States” (Conexões transnacionais entre as mulheres de direita: Brasil, Chile e Estados Unidos, em tradução livre), Margaret Power analisa uma visita de mulheres brasileiras aos EUA em outubro e novembro de 1964, as quais haviam organizado as Marchas da Família com Deus pela Liberdade contra o governo João Goulart. Nesse périplo patrocinado pelo Departamento de Estado, essas mulheres compartilharam sua bem-sucedida experiência política com ativistas e lideranças femininas do campo ultraconservador, inclusive Phyllis Schaeffler, figura amplamente conhecida como a voz mais antifeminista e anticomunista do seu tempo.

Esse breve resgate confirma que Cowan17 tem razão ao afirmar que o pensamento ultracatólico brasileiro e outras conexões com a América Latina devem ser contabilizados na gestação e maturação da “revolução conservadora cristã” nos EUA; fantasmagorias e modalidades de atuação política que nos assombram no presente e que começaram a germinar muito tempo atrás.

O que há de novo para contabilizar na cena atual é, por um lado, a globalização e digitalização da política após 1990 que intensificou essas trocas transnacionais, multiplicando geometricamente suas teias de conexão; e embora esta nova realidade comunicacional tenha sido positiva para o campo progressista da sociedade civil em todo o mundo, foi crucial para as forças ultraconservadoras que hoje pilotam o juggernaut da informação e das guerras digitais. Por outro lado, e já mencionado, o abandono da posição estática em defesa da ordem e em direção a um engajamento com a disputa pelo senso comum e pelos conceitos, o giro gramsciano, que faz com que essa direita se torne, como diz Pablo Stefanoni, una derecha callejera,18 uma direita que vai para as ruas.

O “fantasma do gênero”

É muito significativo que “o problema de gênero” tenha surgido exatamente no momento da transição para a globalização e a intensificação comunicacional, no Vaticano e nas Nações Unidas; ou seja, uma arena transnacional por excelência. Até pouco tempo atrás, não tínhamos captado bem o sentido dessa coincidência. Interpretamos a vigorosa reação do Vaticano ao gênero em 1995, na passagem do Cairo para Beijing, como um episódio “geneticamente” vinculado à reação ultraconservadora do catolicismo em relação aos ganhos e às transformações epistêmicas no campo dos direitos das mulheres, da sexualidade e da reprodução.19 Sem dúvida se tratava disso, mas esse momento inaugural da política antigênero deve ser lido como um capítulo singular e muito relevante da trajetória de reconfiguração do campo ultraconservador e da ultradireita.

Como observo no artigo “A política do gênero” já referenciado,20 em Beijing, o Vaticano não manifestou a mesma fúria com relação ao gênero como havia feito em Nova York seis meses antes, mas essa fúria renasceria nos processos de Revisão +5 (1999-2000). Entre um momento e outro, inicia-se um trabalho intelectual sistemático para sedimentar o caráter acusatório de “ideologia de gênero”.21 A linguagem foi usada pela primeira vez no campo ultraconservador numa das entrevistas com Ratzinger publicada em 1997.22 Em seguida, foi retomada pelo monsenhor Michel Schooyans no livro L’Évangile face au désordre mondial (O Evangelho diante da desordem global, em tradução livre), no mesmo ano,23 e logo depois, num documento de 1998 elaborado pelos bispos peruanos.24 Embora o termo não seja usado por Dale O’Leary em seu livro The gender agenda (A agenda de gênero, em tradução livre) (1997), o conteúdo substantivo é o mesmo. Esses três textos seminais associam gênero ou “ideologia de gênero” com marxismo.

O passo seguinte seria a transposição dessa elaboração para dentro do Vaticano, onde se produziriam documentos teológicos referenciais sobre a “ameaça do gênero”. Os mais relevantes são o Lexicon – Conselho Pontifício para a Família (2003) e a Carta aos bispos da Igreja Católica sobre a colaboração do homem e da mulher na igreja e no mundo (2004).25 Um ano depois desta carta, Ratzinger seria consagrado Papa e, na homilia papal de Natal de 2008, pela primeira vez, estabeleceria uma relação entre os “efeitos da ideologia de gênero” e a destruição da “ecologia do homem”.26 Visão esta que seria reiterada na Assembleia Geral da ONU de 2009 quando o Papa associou gênero à destruição das florestas.

Em 2013, irrompem na Europa e na América Latina mobilizações sociais amplas que configuraram, em maior ou menor grau, um cenário de “o povo contra o gênero”. Na Europa, o ícone dessa nova era foi a organização La Manif Pour Tous27 em Paris, que lançou ao mundo a estética de “meninas vestem rosa” e “meninos vestem azul”. No mesmo ano, dois bastiões da política antigênero foram criados: a plataforma digital Citizen Go, na Espanha, e o instituto Ordo Iuris, na Polônia.

Na América Latina, num primeiro momento as ofensivas foram setoriais. Em 2013 – como já havia acontecido no ano anterior no Paraguai – atacou-se “gênero” e “ideologia” no Plano Nacional de Educação (PNE) brasileiro. E uma resolução sobre orientação sexual, identidade de gênero e direitos humanos foi objeto de uma polêmica virulenta na Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos. Embora essas ofensivas no campo da educação não tenham tido maior visibilidade imediata, seus efeitos seriam desastrosos, com efeitos deletérios sobre a política educacional e o ambiente escolar.28

A partir daí, essas mobilizações se multiplicaram na região, com maior ou menor intensidade a depender dos contextos. Sublinho três características ou aspectos. Embora as ofensivas antigênero tenham como alvo questões atacadas desde sempre pelo campo conservador, elas não devem ser lidas como “mais do mesmo”. Entre outras razões, porque já são não exclusiva ou predominantemente religiosas, ou não podem ser explicadas apenas como backlash ou “efeitos dos fundamentalismos”; são movidas por formações heterogêneas e interseccionais. Como tenho dito, são hidras de muitas cabeças que se movem em direções variadas e bebem em fontes ideológicas contraditórias, o que dificulta sua leitura.29

Além disso, na América Latina, a associação entre gênero e marxismo é muito robusta. Por aqui, se o espantalho do “gênero” ativa pânicos morais em relação a desordens sexuais (em especial, a pedofilia), o fantasma do marxismo tem revolvido camadas profundas de anticomunismos e repúdio ao igualitarismo que considerávamos debeladas. Finalmente, esses ciclones têm se colado a dinâmicas eleitorais de alta intensidade, produzindo tormentas perfeitas para levar a ultradireita ao poder. O Brasil é o exemplo mais emblemático e dramático, entre outras razões, porque isso transportou a ideologia de gênero para a política de estado.30

O que acabo de descrever é um “tipo ideal” da política antigênero de estilo gramsciano: mobilizações sociais amplas e heterogêneas contra o “gênero” ou a “ideologia de gênero” que, muitas vezes, se acoplam a dinâmicas político-eleitorais. Entretanto, nem sempre as coisas se passam assim, nem mesmo na América Latina. No Paraguai e na Guatemala, governos conservadores que não contaram com mobilizações antigênero para serem eleitos absorveram e legitimaram suas posições, convertendo-as em políticas públicas.

Tampouco houve mobilizações antigênero como na dinâmica que elegeu Trump em 2016 (embora houvesse um elevado grau de misoginia, racismo e LGBTQIA+fobia); mas os ataques ao “gênero” na forma de restrições aos direitos das pessoas trans irromperam rapidamente e, desde então, escalaram de maneira vertiginosa. Quando Putin chegou ao poder em 2003, as ofensivas antigênero do presente ainda estavam em gestação. Poucos anos mais tarde, Putin, em aliança com o líder da Igreja Ortodoxa, adotou discursos e políticas francamente homofóbicas para, em seguida, se converter num energético porta-voz global da ideologia antigênero e, segundo vários estudos, financiador de guerras ao gênero na Europa.31

É muito importante compreender esses diferenciais e nuances. As políticas antigênero estão nas Américas, na Europa, no mundo pós-soviético, na África, na Ásia (Taiwan e talvez Coreia), na Oceania (Austrália e, segundo parece, Nova Zelândia), mas não se manifestam do mesmo modo em toda parte.

03

Sur • Voltando ao Brasil, como situar o país no mapa desta reconfiguração?

S.C. • Cursos longos de nossa história política explicam o ultraconservadorismo inercial da sociedade que seria incitado pelas ofensivas da última década. Mas antes de resgatar essas velhas trilhas, é preciso dizer que, no Brasil, assim como na América Latina em geral, a instalação das guerras ao gênero foi favorecida pela interseção de três tendências sistêmicas de longo prazo.

A primeira delas corresponde à trajetória de redemocratização que marcou a paisagem regional nas últimas quatro décadas e, sobretudo, aos déficits dos regimes democráticos que daí emergiram; em especial, os resíduos de autoritarismo social e institucional e a persistência da violência relacionada à economia do tráfico e da guerra às drogas (especialmente relevante no Brasil). A segunda foi a penetração contínua da racionalidade neoliberal inaugurada pelo Chile de Pinochet e seus impactos múltiplos: desigualdade e precariedade social, erosão da esfera política e reconfiguração das subjetividades. Finalmente, é preciso considerar a politização crescente do ultraconservadorismo religioso. A restauração da ortodoxia no Vaticano teve impactos ferozes sobre as correntes progressistas católicas e sedimentou a infraestrutura ortodoxa na qual as ofensivas de hoje se ancoram. Mas, também, a partir dos anos 1980, assistimos à expansão vertiginosa do evangelismo fundamentalista que terminaria arrastando outras denominações para o campo dogmático. E, como se sabe, a teologia da prosperidade mobilizada por parte do segmento evangélico carregou águas para os moinhos da neoliberalização da vida social.32

Voltando na história, nos anos 1930, o Brasil foi palco de um movimento fascista amplo que tinha muitos laços transnacionais, como a Ação Integralista Brasileira (AIB).33 A despeito do nacionalismo exacerbado, o Integralismo estava conectado com a Europa, onde tinha laços fortes com o Salazarismo e o fascismo italiano e muitos outros países.34 O Integralismo foi um fascismo de tipo “clerical”. Não apenas Plínio Salgado e Gustavo Barroso eram católicos fervorosos, mas sua narrativa ideológica se ancorava em concepções cristãs (católicas) de integridade e hierarquia social; vários clérigos foram membros da AIB.35 Caldeira Netto sublinha que a AIB também contou com a participação de protestantes e kardecistas, ou seja, tinha um traço ecumênico não tão visível à primeira vista.

A resiliência do sentimento anticomunismo no Brasil é também de longo curso. Remonta à Primeira República, escala no Estado Novo e seria persistentemente acionada durante a Guerra

Fria, especialmente no âmbito militar e nas classes médias, até desaguar no golpe de 1964. Como tem sido mapeado por vários pesquisadores, as trocas entre o Brasil e os EUA continuaram após 1985 no campo de estudos estratégicos e militares e abriram canais através dos quais as teses e novas fórmulas da “revolução conservadora” iniciada nos anos 1970 circularam com bastante intensidade.36

Nos circuitos militares brasileiros, o espantalho do “marxismo cultural”, posteriormente associado ao “gênero”, começou a circular muito cedo. Isso não deve ser interpretado como mera transposição de discursos gringos para o Brasil, mas como o aggiornamento das visões radicalmente anticomunistas nos meios militares. Não era muito difícil persuadir esses setores da existência de inimigos internos, pois essa doutrina estava bem estabelecida entre nós desde os tempos de Golbery do Couto e Silva.37 E como observa Cowan em sua entrevista para a Revista Fapesp, na ditadura já era feita essa associação entre comunismo e “esbórnia sexual”, mas isso não proliferou.38 Já nas condições político-culturais dos anos 2010, o inimigo interno ganhou muitas caras: feministas, ativistas LGBTQIA+, movimentos antirracistas e antiproibicionistas, esquadrão de personagens “abomináveis ameaçando o cidadão de bem”.

Como mostra a Camila Rocha,39 na segunda metade dos anos 2000, o Brasil seria incorporado à teia na qual eram, desde muito, produzidos e disseminados textos clássicos e argumentos renovados de defesa do neoliberalismo, mas também do libertarianismo de direita. Nesse tempo surgem novos institutos liberais, como o Millennium e os movimentos liberais de mobilização popular, como o Movimento Brasil Livre (MBL), o Vem pra Rua e o Estudantes Livres. Essa movimentação reativou vozes liberais ostracizadas no processo de democratização e colocou em circulação discursos valorizando a meritocracia e o empreendedorismo, e vilipendiando políticas de transferência de renda e de ação afirmativa.

Nessas interseções complexas há que se contabilizar a contribuição das correntes perenialistas ou tradicionalistas de que Olavo de Carvalho foi porta-voz, propagando, desde muito cedo, códigos ideológicos da “revolução conservadora” em curso nos EUA e na Europa. Nesse breve balanço, o mais importante talvez seja perguntar-se como e por que essa narrativa ideológica, espiritualista e escatológica se tornou tão influente social e politicamente para determinar, com mão firme, o destino da política externa brasileira até 2021.40

Não é tarefa fácil recuperar com precisão como essas trilhas de longo curso confluíram com dinâmicas recentes da política nacional. Mas não é temerário sugerir que essas interseções se teceram paulatinamente desde a segunda metade dos anos 2000 para ganhar corpo com a crise de legitimidade dos governos petistas que se iniciou em 2013, desdobrando-se no impeachment de Dilma [Rousseff] e o que se seguiu. Bolsonaro anunciou que ia se candidatar a presidente em 2014 e, na minha interpretação, abriu sua campanha com o ignóbil discurso da votação do impeachment em 2016. Suspeito que foi nessa conjuntura complexa e turva que Bolsonaro encarnou esse papel de líder da reconfiguração do neoconservadorismo e da ultradireita no Brasil. É muito significativo que imediatamente depois da cena do impeachment ele tenha ido à Israel justamente para se rebatizar.41 Israel, que não só era governado pelo ultradireitista [Benjamin] Netanyahu, como é desde sempre um hub de conexões com o ultraconservadorismo e as direitas americana e britânica. Essa viagem, a meu ver, significou, ao mesmo tempo, encarnação (como líder) e transnacionalização.

Na sequência, vem 2017, quando o espantalho antigênero escapa do campo da educação para assombrar outros territórios, como as artes visuais e cênicas, como no ataque ao Queer Museum. No final do ano, a Citizen Go fez uma campanha contra a presença de Judith Butler no Brasil e, num protesto em São Paulo, sua efígie como “bruxa” foi queimada, evocando os autos da fé inquisitoriais: esse foi um ataque contra a teoria e a produção do conhecimento em gênero. Em nosso estudo de 2020,42 interpretamos esse episódio como um piloto da eleição presidencial de 2018, quando o ciclone antigênero mudou de escala, antes de ser transportado para a gramática do estado a partir de 2019.

04

O Brasil como nodo de articulação das forças de ultradireita do presente

Considerando o que já mencionei, não é nada surpreendente que os dois chefes de Estado mais relevantes presentes na posse do Bolsonaro em 2018 tenham sido o Netanyahu e o [Viktor] Orbán. Ou seja, não é que o Brasil se tornaria um hub de articulação das forças transnacionais de ultradireita essas conexões já estavam se tecendo antes da eleição. Antes da posse, Eduardo Bolsonaro organizou a Cúpula Conservadora de Foz, que contou com a presença de José Antonio Kast, além de outras figuras da ultradireita regional.43

A partir daí, a transnacionalização se intensificava a olhos vistos, não só porque Bolsonaro e seus filhos estiveram com Donald Trump e Steve Bannon mais de uma vez nos EUA, mas também porque o Brasil se tornou um ponto obrigatório de passagem de personagens ultraconservadores e da extrema-direita. Desde 2019, o CEPAC fez três reuniões no país e tivemos uma visita de membros do partido espanhol VOX. Em 2021, Beatrix von Storch,44 líder do Alternative für Deutschland(AfD), o partido da ultradireita alemã, se reuniu com Bolsonaro;45 e uma dupla de ativistas alemães anti-vacinas, que seriam posteriormente presos, estiveram com Damares Alves e também com Bolsonaro.46 Em 2022, Katalin Novák, nova presidente da Hungria, esteve no Brasil, e também recebemos duas visitas de Valerie Huber, que havia sido enviada especial do governo Trump para assuntos de saúde.

A defesa da pauta ultraconservadora e o fortalecimento de novas conexões também foram flagrantes na política externa.47 O Brasil participou com muita desenvoltura em duas plataformas criadas pelo governo Trump: a Aliança Internacional para Liberdade Religiosa48 e o chamado Consenso de Genebra, um clube de estados conservadores que defendem um único modelo de família e se posicionam radicalmente contra os direitos reprodutivos e o aborto. Com a derrota de Trump, o Brasil se tornou coordenador dessa plataforma até novembro de 2022, quando, já prevendo a saída do Brasil após a eleição de Lula – o que aconteceu em janeiro de 2023 –, o bastão foi passado à Hungria numa cerimônia em Brasília.

Ernesto Araújo, durante seus dois anos como chanceler, certamente fez importantes conexões internacionais usando recursos do Estado que precisariam ser melhor mapeadas. Desde que deixou o Ministério das Relações Exteriores em 2021, Angela Gandra, Secretária Nacional da Família, ganhou proeminência como chanceler-sombra para assuntos conservadores, certamente inspirada no papel que Katalin Novák desempenhou quando era Ministra da Família da Hungria.49

Grande parte da agenda de Gandra50 foi dedicada a conseguir novas adesões ao Consenso de Genebra, as quais não foram muito bem-sucedidas. Resumiu-se à Guatemala, pois a Colômbia, que aderiu em abril de 2022, se retirou tão logo Gustavo Petro foi eleito presidente. Importante mencionar que nessas missões também foram estabelecidas relações mais próximas com os países do Golfo Pérsico,51 em torno da agenda conservadora sobre a família e o lugar das mulheres na sociedade.

05

Sur • Qual é o impacto desta articulação transnacional para o trabalho de proteção e defesa dos direitos humanos?

S.C. • Essa é uma questão muito importante sobre a qual tenho refletido, embora não tenha conseguido me aprofundar tanto quanto gostaria.52 Desde que as forças ultra-conservadoras começaram a ganhar vigor na América Latina, inventou-se a nomenclatura “anti-direitos” para defini-las, ou seja, uma estratégia de inversão semântica para desmascarar a falácia de suas autodefinições como “pró-vida” , “pró-família”, “pró-crianças”.

Essa nomenclatura teve adesão imediata e ganhou o mundo. Ela é muito atraente, pois facilita a identificação do problema ao afirmar que essas forças ameaçam nossos direitos, ganhos com muito esforço no curso da redemocratização regional. E, devo dizer, não é totalmente equivocada, pois as forças ultraconservadoras atacam abertamente o que definem como “novos direitos” e que são, em geral, os direitos relativos a gênero, sexualidade e reprodução. Contudo, penso que, como descrição do nosso problema, o termo “antidireitos” é problemático, pois dele escapam coisas nada triviais.

No Ocidente, a Igreja Católica foi historicamente fonte inequívoca de pensamento jurídico. Basta lembrar que, até o século XIX, em Portugal e na Espanha, assim como nos territórios colonizados, a lei civil e a lei canônica estavam imbricadas. Há não poucas conexões genealógicas entre concepções iluministas de direitos humanos e premissas jurídicas do cristianismo.

Trazendo as lentes para o contemporâneo, o ultraconservadorismo norte-americano fez investimento brutal na produção de “conhecimento” ou pensamento ultraconservador no campo jurídico legal, mas também na formação de profissionais da lei em litígio estratégico em direitos humanos. Isso se espelha na derrogação de Roe vs. Wade, mas também no documento produzido pela Commission on Unalienable Rights,53 criado pelo governo Trump e que foi lançado em julho de 2022. Sua elaboração foi coordenada por Mary Ann Glendon, legal scholar ultraconservadora de Harvard que chefiou a delegação do Vaticano na Conferência de Beijing e depois foi embaixadora do Governo Bush no Vaticano.

Esse texto é uma obra mestra do chamado originalismo norte-americano, uma reinterpretação do direito à luz da “tradição jurídica original” dos pais fundadores dos Estados Unidos que, segundo o campo conservador, deve ser preservada enquanto tal. Uma concepção onde não cabem “novos direitos”. Várias publicações nos EUA abordaram os problemas do originalismo manifesto na decisão Dobbs, entre elas, um artigo de Noah Feldman, legal scholar progressista,54 para quem essa decisão abandona e vilifica a epistemologia interpretativa do constitucionalismo contemporâneo, o qual concebe as constituições como referências jurídico-legais que podem e devem ser continuamente alargadas a partir de re-interpretações baseadas nos princípios de igualdade e liberdade. Ou seja, uma moldura expansiva de interpretação constitucionalista que também é aplicada à jurisprudência dos direitos humanos, tal como se desenvolveu, desde a Segunda Guerra Mundial, sobretudo a partir da Conferência Internacional de Viena, em 1993.

Foi esse alargamento interpretativo que permitiu, ao longo dos anos 1990, que uma série de situações de violações, de necessidades de proteção e prevenção fossem incorporadas às premissas fundamentais de direitos humanos que não estavam lá antes. É possível verificar isso no campo da aplicação dos direitos humanos ao racismo e à desigualdade racial.55 A interrogação do binarismo sexual gravado nos instrumentos de direitos humanos é outro exemplo, pois abriu espaço para o reconhecimento de violações com base em orientação sexual e identidade de gênero; a Opinião Consultiva 24 da Corte Interamericana de Direitos Humanos é uma ilustração exemplar.

No campo dos direitos humanos, o objetivo dessas forças é conter e, se possível, abolir essa lógica interpretativa. Ou seja, retornar a uma lógica jurisprudencial literal: os direitos humanos são legítimos desde que correspondam às definições das declarações e convenções tal como aprovadas. Isso significa que essas forças não são “antidireitos”, mas sim que têm uma determinada concepção de direitos humanos e constitucionais que não só difere, mas repudia a epistemologia aberta que mencionei.

Dito de outro modo, há uma disputa (bastante feroz) no campo de direitos humanos. Ela se manifesta claramente no terreno da epistemologia interpretativa, mas também num outro traço da concepção ultraconservadora de “direitos”, que é o apego à hierarquização e a aversão à liberdade ou autonomia como princípio fundante de direitos humanos. Muitas das prerrogativas do campo progressista, como expressão legítima de autonomia, são vistas pelo ultraconservadorismo como justificativa de tutela ou mesmo de caridade. Essa torção ficou muito evidente na reconfiguração da política de direitos humanos do governo Bolsonaro.56

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Sur • Quais são os principais desafios que o movimento de direitos humanos, principalmente o movimento feminista e LGBTQIA+ enfrentam em relação à agenda deste movimento conservador?

S.C. • Um primeiro desafio é situar nossas análises e estratégias de ativismo no marco dessa temporalidade longa que é característica das forças ultraconservadoras, sendo exemplo disso a Igreja Católica. É difícil para o campo progressista entender e se ajustar a essa longevidade; nosso imaginário político é povoado por desejos de transformações rápidas, pela ideia da revolução. Sempre foi assim, mas foi agravado pela aceleração decorrente da digitalização da vida e da política. O que aconteceu ontem já não importa, um assunto que sumiu do Twitter deixou de ser relevante. Essa percepção e modo de agir e reagir está a contrapelo das estratégias de longuíssimo prazo desenhadas e implementadas pelo ultraconservadorismo. Inclusive porque, na superfície, essas forças também estão usando o jogo da “infoxicação” e aceleração.

Precisamos refinar nossas habilidades de “paciência histórica”, para usar um termo antigo. Digamos que o horizonte é conseguir uma mudança legislativa em relação ao aborto; você projeta três anos, mas a Igreja Católica e as demais forças que orbitam em torno da oposição ao aborto fazem seus cálculos num marco de 30 a 50 anos. Esse foi o timing das ações que levaram à derrocada de Roe vs. Wade. Mas há um problema adicional: sustentar lutas e processos de longo prazo requer recursos sustentáveis no tempo. Quem vai sustentá-los no campo progressista? Como superar a brutal desigualdade que existe em termos de tempo disponível, infraestrutura institucional e recursos financeiros que existem entre nós e eles? Não há respostas fáceis para essa questão.

Sur • Finalmente, como fazer frente à “revolução conservadora”?

S.C. • O primeiro a fazer é reconhecer que ela está em curso, ganhou muito terreno e as forças que as movem não vão arrefecer no curto prazo. E nesse mesmo registro, reconhecer que sua complexidade e longevidade requer novas lentes ou, ao menos, lentes ajustadas de leitura. De maneira mais específica, reconhecer que a gramática dos direitos humanos e sua epistemologia interpretativa estão em disputa. Isso se dá tanto no campo constitucional, quanto no campo dos direitos humanos.

É fundamental que todas as pessoas e movimentos engajados com os debates sobre constitucionalismo democrático e direitos humanos tenham clareza disso. O que está em jogo é, de fato, uma disputa em torno da concepção epistemológica do que são direitos fundamentais e, sobretudo, quanto à interpretação das normas existentes, de ser literal ou transformativa. Essa disputa está muito mais evidente nos Estados Unidos porque o originalismo ganhou robustez e legitimidade e penetrou a institucionalidade jurídico-legal, como se viu no caso da decisão Dobbs. Embora as ramificações dessas disputas estejam por toda parte, no Brasil mal começamos a discutir as implicações dessa contenda, mesmo quando alguns dos personagens emblemáticos do campo ultraconservador que chegou ao poder em 2018 estejam muito bem alinhados com essas regressivas de interpretação (sejam originalistas ou neotomistas).57

Acho que essa é a fronteira, ou melhor dizendo, a trincheira conflagrada que temos à frente. É preciso transmitir informações mais amplas para o campo dos direitos humanos sobre o significado dessa guerra epistemológica. A perspectiva de interpretação alargada dos direitos humanos não estava dada quando a Declaração foi adotada em 1948, foi resultado do longo e árduo trabalho em direitos humanos como pauta política transnacional e do constitucionalismo democrático do pós-guerra. É esta perspectiva que está sob ataque agora e que precisa ser defendida.

Sonia Corrêa

Entrevista conduzida por Maryuri Mora Grisales em dezembro de 2022.
Original em português.

 

fonte:  Sonia Corrêa, “É importante entender o alcance histórico, a longevidade da mobilização conservadora”, SUR 32 (2022), acesso 7 Fev. 2023, https://sur.conectas.org/e-importante-entender-o-alcance-historico-a-longevidade-da-mobilizacao-conservadora/

 

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A Revista Sur foi criada em 2004 como um veículo para aprofundar e fortalecer os vínculos entre acadêmicos e ativistas do Sul Global dedicados aos direitos humanos. Em seu início, a Revista teve como objetivo ampliar as vozes e a participação desses atores nas organizações internacionais e universidades.

Desde então, foram publicados mais de 350 artigos de 50 países. 75% das autorias são do Sul Global. Os artigos têm discutido questões tão diversas quanto saúde e acesso a tratamento, justiça de transição, mecanismos regionais e o direito à informação, para citar apenas alguns.

Cada vez mais, a Revista Sur tornou-se uma ferramenta prática para o trabalho de seus leitores, oferecendo informações às pessoas e organizações que trabalham para defender os direitos humanos, disponibilizando valiosas pesquisas, reflexões significativas e estudos de caso relevantes que combinam rigor acadêmico e interesse prático.

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