A metáfora da Guerra Justa não foi apenas retórica nas redes de ultradireita. Ela permitiu enxergar a realidade a partir da chave Bem X Mal, e dispensar, assim, qualquer análise crítica. Para desarmar esta armadilha não basta a eleição de Lula

 

 

Por Gabriel Bayarri Toscano | Tradução: Maurício Ayer

O clima estava mais agressivo do que em 2018, as pessoas estavam revoltadas, sentiram mais a perda. “Exigimos a intervenção militar no parlamento!” gritou uma mulher. “Fora PT corrupto! Não queremos um ladrão!”, exclamaram dois homens. “Houve fraude, é tudo uma conspiração do comunismo! Não queremos comer cachorro como na Venezuela!”, vociferou um homem usando uma bandeira como capa. “Não vamos permitir que eles doutrinem nossos filhos! Intervenção já!”, berrou uma mulher abraçada à filha. Ao fundo, ouvia-se nos alto-falantes o lema do bolsonarismo: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos!”.

A partir desse dia, milhares de bolsonaristas acamparam em frente a dezenas de quartéis militares, pedindo intervenção militar. Esses protestos atingiram seu apogeu no domingo, 8 de janeiro, em Brasília, quando manifestantes, com a cumplicidade da Polícia Militar do Distrito Federal, assaltaram as sedes dos poderes executivo, legislativo e judiciário. Rapidamente o presidente decretou a intervenção na segurança pública do DF, recuperando o controle, mas a tentativa de golpe deixou imagens chocantes que evocavam as da invasão do Capitólio dos Estados Unidos no ano anterior. O evento serviu como uma demonstração material da retórica violenta que se consolidou durante as últimas campanhas eleitorais.

A campanha bolsonarista de 2021 foi dominada, como em 2018, por inúmeros memes, imagens e vídeos curtos e direcionados do TikTok que viralizaram nas redes sociais nesse período. As mensagens da campanha pareciam expressar um processo de dissonância cognitiva, distorcendo qualquer evidência da realidade. Algumas das principais mensagens e situações que marcaram a agenda da campanha eram inimagináveis ​​há alguns anos: manifestações pró-intervenção militar; ideias de fraude eleitoral ou conspirações comunistas; negação da ciência e da mudança climática; suposta corrupção com sanduíches de mortadela; deputados lançando granadas contra a Polícia Federal, ou perseguindo adversários armados após discussões de rua. Assim como nas eleições anteriores, também presenciamos a circulação de notícias falsas como supostas mamadeiras com bicos em forma de pênis distribuídas em escolas públicas, “kit gay” para doutrinar crianças e visões evocadas de um futuro governo Lula imaginário em que todos seriam obrigados a comer cachorro. Vimos Batman e o Capitão América andando pela rua, Hitler como uma figura de esquerda, orações em massa, viagens batismais à Jordânia, suposta maçonaria, pedidos de SOS a alienígenas ou saudações à bandeira romana. A maioria dessas mensagens visava construir uma imagem desumanizadora, imoral e escatológica do rival político de Bolsonaro, Lula da Silva.

Durante as eleições, ao lado do descrédito generalizado do processo democrático, essas produções de realidade paralela ganharam corpo no espaço público, por meio de manifestações em frente a quartéis militares e, finalmente, com a tentativa de golpe de Estado. O evento do dia 8 de janeiro foi crucial, demonstrando que o fracasso eleitoral de Bolsonaro não seria interpretado por seus partidários como ocorrido dentro dos parâmetros da democracia liberal, mas sim moldado pelo autoritarismo histórico. Em outras palavras, os “cidadãos de bem” – ou pessoas com direitos, em oposição aos indivíduos supostamente desprovidos deles – se viam como tendo o direito superior de exigir a intervenção armada. Esse acontecimento normalizou um discurso agressivo em que a democracia poderia ser atacada abertamente, discurso que vem sendo reproduzido com intensidades variadas em todo o país. Foi um evento que demonstrou o poder das bolhas de informação, dos algoritmos segmentados e de como o próprio modelo de negócios do capitalismo digital era uma fonte de radicalização política – uma radicalização que foi implantada na cabeça de outras pessoas que não estavam sob a liderança direta de Bolsonaro.

Para entender por que essa agressividade foi justificada na arena política, é importante recorrer a um elemento muitas vezes pouco estudado: o pensamento metafórico. O linguista George Lakoff explica que “frames” são estruturas mentais que moldam a forma como vemos o mundo e nossas justificativas. Esses quadros moldam e ordenam nosso conhecimento, sistemas de crenças, valores e ações por meio da linguagem. No atual contexto político brasileiro, o uso da linguagem no projeto bolsonarista oferece uma experiência de abstração e interiorização do mundo. A construção das molduras desse novo mundo do universo violento do golpe bolsonarista pode ser explicada pela metáfora estruturante de uma “Guerra Justa”.

A implicação de que a política envolvia guerra também validou a ideia de uma Guerra Justa como uma metáfora fundamental, tanto que ambos os lados da batalha política empregaram o conceito. A insinuação de que o Brasil estava em estado de guerra anulava a cooperação e o compromisso que as atividades parlamentares regulares, como acordos e legislações, exigem. Também legitimou o uso das diversas formas de violência que a construção de uma polarização entre “Nós” e “Eles” facilita. O bolsonarismo não precisou recorrer ao diálogo, pois seu adversário eleitoral já havia sido classificado como inimigo, e as opiniões de Lula poderiam ser anuladas por ataque e desumanização.

A metáfora constrói um antagonismo: de um lado, o herói, o representante de “Deus” e a restauração da ordem; e do outro, o “Mal”, o vilão, a imagem do diabo, imoral e perverso. Este é o fundamento da metáfora da Guerra Justa utilizada na campanha de Bolsonaro, embora nomes diferentes tenham sido usados ​​para mobilizar diferentes tramas: a polícia e o exército como heróis e traficantes (como vilões); Bolsonaro (herói) e Lula-PT (vilão); moralidade conservadora (herói) e imoralidade esquerdista depravada (vilão); a privatização (herói) e o Estado (vilão); Redes Sociais (herói) e imprensa tradicional (vilão); o povo (herói) e o corrupto/STF/esquerda (vilão); a Verdade carregada por Bolsonaro (herói) e as mentiras espúrias de Lula (vilão).

A forte dicotomia que se articula por meio desse pensamento metafórico permite que os apoiadores de Bolsonaro deleguem suas próprias crenças às notícias nas redes sociais, por meio das quais recebem informações sem mediação crítica e reforçando suas ideias pré-concebidas. Assim, justificam-se os diferentes processos de descontextualização, fake news ou divulgação de fragmentos de notícias sem necessidade de verificação empírica dos fatos, pois serão enquadrados em algo maior, numa Guerra Justa cuja mensagem cristã é a missão de salvar o Brasil das garras do mal. Além disso, enquadrar a disputa política como uma guerra justifica e normaliza o uso da linguagem belicosa e da violência política.

Os processos de pensamento humano são amplamente metafóricos, e os sistemas conceituais humanos são estruturados e definidos metaforicamente. Isso acontece de modo inconsciente na maioria das vezes. No entanto, por vezes elaborados sistemas de pensamento metafórico são desenvolvidos para fins estratégicos, como ocorre com o bolsonarismo e a Guerra Justa. Diante dessa visão de mundo metafórica abrangente, o PT e o restante da coalizão liderada por Lula tentou articular a contra-metáfora de uma Guerra Justa entre ditadura e democracia, em que as representações de valores progressistas estavam ligadas à liberdade, em oposição à repressão e à violência ligadas ao bolsonarismo, que na metáfora é sinônimo de ditadura.

Apesar da vitória apertada de Lula – mais apertada do que o esperado –, os próximos anos deverão apresentar uma situação de polarização parlamentar e social sem precedentes. A tentativa de golpe pode ser apenas mais um caso do processo de radicalização política que vem ocorrendo há anos. Do campo progressista, há uma necessidade urgente de estruturas conceituais coerentes para definir valores e sentimentos em disputa por meio da linguagem, bem como para regular as câmaras de eco informacionais que causam e perpetuam a polarização política.

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