Hinga era uma teóloga e um ser humano que encarnou os paradoxos centrados no Espírito. Proveniente de uma sociedade colonizada, o Quênia, onde as mulheres foram reduzidas a notas de rodapé nos anais da história, ela ousou sonhar e imaginar novas formas de fazer uma teologia transformadora.

O comentário é de SimonMary Asese Aihiokhai, professor adjunto de Teologia Sistemática na Universidade de Portland, nos Estados Unidos. O artigo foi publicado em National Catholic Reporter, 19-04-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

A vocação de um teólogo não é tornar-se o policial doutrinal da tradição eclesial a que pertence. Ao invés disso, no centro da vocação de um teólogo está uma orientação guiada pelo Espírito às dificuldades de quem vive nas periferias da sociedade.

Essa orientação permite ao teólogo chamar a atenção para tais situações de maneira persistente, permitindo que a conversão ocorra no coração de quem cria e se beneficia dessas periferias.

Teresia Mbari Hinga, falecida no dia 31 de março passado, definitivamente era o tipo de teóloga que descrevi acima. Na verdade, ela era mais do que isso.

A teóloga feminista queniana Teresia Mbari Hinga (Foto: Pauline Kenly/NCR)

 

Eu a conheci em 2007, quando comecei meus estudos de doutorado em Teologia Sistemática. Ao longo dos anos, compartilhamos muitos espaços como teólogos do continente africano, trabalhando em instituições nos Estados Unidos. O que tornou Hinga uma teóloga reconhecida foi sua capacidade de ser uma observadora perspicaz dos sistemas sociais que privam indivíduos, sociedades e culturas de seus direitos.

No coração da imaginação teológica de Hinga estava um apelo persistente à academia, à Igreja e ao mundo a levarem a sério o poder transformador da conversão.

Para ela, a conversão não era simplesmente um ritual do coração. Era também a adoção de ações concretas que trouxessem uma nova forma de existir para quem perdeu sua própria humanidade autêntica, por meio do uso do poder para marginalizar as vítimas.

Na visão de Hinga, o teólogo que se permite ser o agente que o Espírito usa para desencadear esse processo de existência faz isso por estar sintonizado com os sinais dos tempos. Tal teólogo entende que não pode se considerar digno do Espírito, a menos que se permita tornar-se um paradoxo existencial diante da lógica e dos sistemas do mal que definem o mundo.

Ser um paradoxo existencial é transcender a cultura e as fronteiras criadas por quem encarna uma orientação tribalista na Igreja e na sociedade. É também uma convocação do Espírito para que habite nas brechas da Igreja e da sociedade, a fim de se ter uma visão mais clara do que está ocorrendo nos centros da Igreja e da sociedade, para que possam ser criticados de modo a permitir novas formas de estar nesses espaços.

Hinga era uma teóloga e um ser humano que encarnou os paradoxos centrados no Espírito. Proveniente de uma sociedade colonizada, o Quênia, onde as mulheres foram reduzidas a notas de rodapé nos anais da história, devido ao poder duradouro do trauma colonial, e sendo uma voz profética em uma Igreja e um mundo que luta para centrar as vozes das mulheres na formação de seus imaginários coletivos, Hinga ousou sonhar e imaginar novas formas de fazer uma teologia transformadora.

Chamar Hinga de teóloga feminista africana é reduzir sua perspicácia ao domínio da teologia colonial. Ela sempre foi uma teóloga global. Em seu livro mais recente, “African, Christian, Feminist: The Enduring Search for What Matters”, de 2017, Hinga lembrou ao mundo a relevância de abraçar uma forma de fazer teologia que seja radicalmente anamnética – isto é, que traga à tona as ricas memórias do passado, do presente e do futuro imaginativo e centrado no Espírito da África.

A teologia se enraíza na memória coletiva de um povo. Esse enraizamento permite ao teólogo interrogar as realidades atuais que a sociedade enfrenta, a fim de sonhar com um futuro melhor, que seja concreto e ao mesmo imaginário. De fato, todas as teologias tratam de abraçar um imaginário saudável.

Nessa obra, Hinga, que era professora adjunta de Estudos Religiosos na Universidade de Santa Clara, na Califórnia, resgata as memórias esquecidas da práxis teológica africana que a matriz colonial ocidental tentou reduzir ao domínio do fetiche.

Por meio da perspicácia e das habilidades criativas de Hinga, a história de Kimpa Vita (Dona Beatrice), que foi caluniada e assassinada pelos imperialistas e missionários portugueses no antigo Reino do Congo durante o auge do comércio transatlântico de escravos, é contada mediante uma metodologia decolonial.

Ao contar a história de Kimpa Vita de uma forma que liberta seu legado do complô perturbador iniciado pelos benfeitores do legado da escravidão e do imperialismo na ÁfricaHinga centra a primazia do feminino na cultura, na tradição cosmofilosófica e nas expressões eclesiais africanas.

Um trauma duradouro provocado pelo colonialismo ocidental é a produção deliberada de memórias fragmentadas. Quando alguns estudiosos falam das tradições culturais da África no contexto atual como um apelo a seu passado, eles tendem a resgatar um passado idolátrico construído intencionalmente pelos agentes coloniais, que instauram sistemas de produção do conhecimento destinados a apagar as realidades em arco-íris que definem a herança do continente.

Para enfrentar esse persistente complô colonial de apagamento, Hinga, junto com outras teólogas africanas, fundou The Circle of Concerned African Women Theologians [Círculo de Teólogas Africanas Conscientes, em tradução livre] (muitas vezes conhecido simplesmente como “The Circle”) em 1989. The Circle é uma testemunha profética da natureza igualitária da produção de conhecimento e do sustento da vida para todos, tanto na África quanto além, pelas mulheres africanas.

Sendo uma voz de vida para todos, quando o HIV/Aids se tornou o fardo do mundo, Hinga usou seus estudos para abordar a questão: que esperança o mundo pode ter à luz da cultura da morte que está diante de todos?

Em 2008, junto com outros estudiosos, Hinga editou a antologia “Women, Religion and HIV/AIDS in Africa: Responding to Ethical and Theological Challenges”. Nessa obra, Hinga e outros investigaram profundamente as questões sistêmicas em jogo que tornam as sociedades africanas e as instituições eclesiais incapazes de oferecer uma resposta pragmática e duradoura à pandemia do HIV/Aids. Seu trabalho é perspicaz, porque ajudou a jogar luz sobre a estratégia de tornar a África a culpada pela disseminação da doença e de abordar a falsa noção de que os africanos adotam uma visão moral corrompida.

Foi a partir da rica herança da sabedoria moral africana que Hinga mostrou como tanto a Igreja quanto a sociedade podem responder pragmaticamente à crise do HIV/Aids.

Assim como a vida é constituída e moldada por múltiplos fatores em jogo no mundo, as contribuições intelectuais de Hinga não se limitaram a um foco estreito, como tende a ocorrer em alguns estudiosos. Seus férteis interesses intelectuais e de justiça social a levaram a levar a sério as crises ambientais que a África e outros enfrentam.

Entre suas muitas obras que abordam as questões em jogo estava uma antologia editada e publicada em 2021: “Valuing Lives, Healing Earth: Religion, Gender, and Life on Earth”. À medida que os estudos sobre ecofeminismo africano continuam a crescer, as contribuições de Hinga para essa disciplina se destacam. Ela bebeu da consciência econômica, ecológica, antropológica, espiritual e filosófica africana para articular um caminho a seguir para cuidar da casa comum da humanidade – a Terra.

Como ela compartilhou com alguns de seus admiradores em 2013 em uma conferência realizada no Hekima University College em NairóbiQuênia, “um teólogo deve ser incansável na busca da justiça ecológica para todos”.

Ela via sua ação como ser humano, mulher e africana destinada a ser uma fonte de vida para todos os que vivem nas periferias do mundo. Mesmo que os envolvidos sejam não humanos, eles merecem viver uma vida abundante do modo que Deus deseja.

Uma virada para o feminino é um abraço da vida para todos na consciência africana. Consequentemente, quando lemos as contribuições e os legados de Hinga para a academia, a Igreja e a sociedade, tanto no Norte quanto no Sul globais, percebemos que se abraça a centralização do motivo da vida abundante e o papel do feminino em garantir o florescimento de todos os seres.

Nesse sentido, Hinga usou sua voz para iniciar novas conversas que ampliaram o círculo da vida para todos. Ela escreveu, ministrou aulas e deu entrevistas, conferências e palestras em todo o mundo sobre temas que ajudaram a jogar luz sobre a situação dos pobres, onde quer que eles se encontrem.

Se fosse preciso descrever Hinga e seu legado, seria preciso dizer que ela foi uma estudiosa corajosa que ousou pensar. A melhor forma de honrar seu legado é abraçar a virtude da coragem e ousar pensar, desafiando quem gostaria de preservar o status quo que beneficia alguns e apaga outros, seja na academia, na Igreja ou na sociedade em geral.

Por fim, Hinga será lembrada como um ser humano alegre, hospitaleiro, gentil e sábio. Como estudante de pós-graduação e acadêmico em início de carreira, Hinga me acolheu sob suas asas matriarcais e, como uma sábia mulher africana, ensinou-me a me apoiar em minha própria capacidade de ação como um aliado do movimento das mulheres pela paz e pela justiça no mundo.

Como se diz na África, uma árvore iroko cai para dar à luz novas árvores que sustentarão toda a vida na Mãe TerraHinga morreu no dia 31 de março. Mas suas intuições criativas e sua sabedoria continuarão enriquecendo os estudos florescentes que ocorrem hoje na África e além.

 

fonte: https://www.ihu.unisinos.br/628164-teresia-mbari-hinga-uma-teologa-africana-feminista-que-ousou-pensar


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