Quase lá: É preciso reagir contra a PEC 9/2023 (por Céli Pinto)

Seria estranho esperar que um bando de homens brancos, ricos e autodeclarados heterossexuais agissem de forma diferente

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Foto: Marina Ramos/Câmara dos Deputados
 
 

Céli Pinto (*) - SUL21

A notícia do projeto de emenda constitucional que anistia os partidos que não cumpriram as cláusulas referentes às cotas para mulheres, negros e negras (percentual de candidatos e recursos) nas últimas eleições não me surpreende. Mesmo que leve assinatura do líder do PT, não me surpreende. Por que agiriam diferente?

O Brasil ocupa um lugar no mínimo indecente no ranking mundial de participação de mulheres no parlamento.  Dados do dia 1º de abril, da União Interparlamentar, apontam que o país é o 131º em termos de representação de mulheres no parlamento, tomando o universo de 181 países. Considerando o continente americano como um todo (sul/centro/norte), somente o Haiti está em posição pior. E todos sabemos as precárias condições em que vive aquele país.

Portanto, a questão é mais profunda em uma Câmara de Deputados onde apenas 17,7%  são mulheres, 20% se autodeclararam pardos (e há pardos de ocasião) e 5,26% são negros,  a maioria é composta de homens brancos de meia idade, a maior parte tem nível superior (ao redor de 70%), muitos com fortunas pessoais, quase todos autodeclarados heterossexuais. 

As razões pelas quais esses números são tão vergonhosos são as mesmas que explicam a popularidade da PEC que ultrapassa qualquer prurido ideológico ou ético entre os partidos que a assinaram, cujo teor é “anistia todos os partidos que não cumpriram as cotas de gênero e de raça até agora, além de livrá-los por irregularidades nas contas anuais.”  (FSP, 16/05/2023, p. A4)   

Duas razões me parecem explicar, pelo menos grosso modo, esta realidade. A primeira delas é estrutural e se refere ao pacto racial-patriarcal em que se assenta a sociedade brasileira. Mulheres, brancas e negras, homens  negros  têm lutado, ao longo das últimas décadas, nos movimentos feministas e negros, por participação política, por inclusão no mercado de trabalho, para não serem vítimas de violência cotidiana, muitas vezes mortal. Temos sofrido derrotas?

A resposta não é simples. Tanto as mulheres brancas e negras como os homens negros têm hoje muito mais visibilidade do que já tiveram, têm conseguido aprovar leis a  seu favor, têm tornado pública a violência que sofrem, por seu gênero ou por sua cor. Neste sentido, obtivemos  vitórias, mas mulheres brancas e negras, os homens negros pouco chegam às casas legislativas, ganham menos que homens brancos que executam o mesmo trabalho, são vítimas de violência de toda ordem. Mais mulheres brancas ou negras, cis ou trans, são mortas; mais homens e mulheres negros são presos, humilhados ou mortos. 

Por que, apesar das lutas de décadas e de algumas vitórias, esta maioria de brasileiros continua discriminada de todas as formas? Por que os lideres de partidos de todas as cores ideológicas têm a pachorra de propor e ter certeza da vitória de uma PEC indecente e ilegal como esta?  Parece-me que um dos limites mais estruturais é que estamos lutando para nos integrar numa sociedade racista e patriarcal pensando, ingenuamente, que é uma questão de cultura, de costumes. Não, não se trata disto. O racismo e o patriarcado são bases das relações de poder que constituem a sociedade mais do que nunca, em especial neste momento de capitalismo ultraneoliberal em crise. Até mesmo os partidos de esquerda se mexem dentro deste quadrado, mas não o enfrentam. Cada vez mais, nesta quadra da história, ideologias de extrema direita racistas e patriarcais conseguem legitimidade e ganham espaços. E o que faz a esquerda ou a centro esquerda? Sem projeto de uma nova sociedade, muitas vezes reforçam os velhos preconceitos e colocam a culpa nas vítimas. Por isso é líder do Partido dos Trabalhadores assina tranquilamente uma PEC como esta. 

Há ainda outro fator, menos estrutural, mas decorrente do primeiro: os partidos afirmam que não encontram mulheres brancas e negras e homens negros para se candidatarem. Possivelmente seja verdade, como também é verdade que os partidos, não fazem nenhum esforço no sentido de dar condições equânimes para que mulheres brancas e negras e homens negros concorram aos cargos eletivos.  

Com tudo que disse até aqui, seria estranho esperar que um bando de homens brancos, ricos e autodeclarados heterossexuais agissem de forma diferente. Então, para minimizar este escândalo, é necessário obrigar os partidos a agirem de forma diferente, mas com listas abertas definidas pelas oligarquias partidárias nunca conseguiremos isto. Precisamos todos, nós mulheres brancas, nós homens negros, nós mulheres negras, nos envolver numa luta muito consciente para uma  reforma do sistema eleitoral, adotando listas partidárias fechadas, organizadas de forma paritária entre homens e mulheres, brancos e negros, a partir de uma votação democrática entre os filiados dos partidos.

Sim, leitora e leitor. Possivelmente vocês estejam pensando que “isto é uma utopia sem sentido”. Não é, é apenas uma reforma. Se acharmos que as desigualdades se reproduzirão ad nauseam porque enfrentá-las seria utopia, não haverá mudança. A revolução francesa não teria sido feita, nem as muitas outras revoluções realmente populares que povoaram o planeta desde o século XIX.  Está na hora de a esquerda sair debaixo da cama.

(*) Professora Emérita da UFRGS; Cientista Política; Professora convidada do PPG de História da UFRGS

 

fonte: https://sul21.com.br/opiniao/2023/05/e-preciso-reagir-contra-a-pec-9-2023-por-celi-pinto/


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