STF está diante de uma “verdade inconveniente”. Espoliação das terras indígenas não é apenas longeva, tem episódios recentes de assassinatos, cárcere privado e escravização. No caso dos Xokleng, um resgate histórico evidencia a barbárie

Povos Indígenas protestam na Esplanada dos Ministérios contra o marco temporal: PL aprovado na Câmara: Foto: Joedson Alves / Agência Brasil – 30/05/2023)

Por Paloma GomesRafael Modesto e Nicolas Nascimento, no Congresso em Foco

“O corpo é que nem bananeira, corta macio. Cortavam-se as orelhas. Cada par tinha preço. Às vezes, para mostrar, a gente trazia algumas mulheres e crianças. Tinha que matar todos”
(Depoimento de um “bugreiro” sobre a violência contra o povo Xokleng, 1972)

Na véspera de um julgamento histórico a ser realizado no Supremo Tribunal Federal (STF), o Recurso Extraordinário em Repercussão Geral – RE-RG 1017365 (Tema 1031), previsto para ser retomado neste dia 7 de junho, pouco se diz sobre as atrocidades praticadas contra os povos indígenas durante a história da apropriação das suas terras – que, apesar de longa, é permeada de eventos trágicos recentes e se desdobra ainda nos dias de hoje.

Talvez seja uma “verdade inconveniente” para os que defendem o chamado Marco Temporal das Terras Indígenas tratar desse capítulo triste da nossa história assim, em plena Suprema Corte, uma vez que seria revelado um lado obscuro, desumano, atroz contra os verdadeiros povos originários brasileiros.

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O Relatório Figueiredo, produto da CPI do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), instaurada em 1967, demonstra que a violência que vitimou os povos indígenas no Brasil foi parte de um projeto político nacional sistêmico, com maior impacto no período de 1964 a 1968, em plena ditadura civil/militar no Brasil.

A prática de espoliação do patrimônio fundiário indígena, no decorrer do século passado, se deu com a ajuda direta do SPI, em especial quando o órgão era vinculado ao Ministério da Agricultura. Os resultados: devastadores!

Os crimes mais comuns revelados foram o esbulho possessório, a apropriação da renda e o trabalho escravo indígena. Em caso de “rebeldia”, ocorria a prática de crimes físicos contra os indígenas, como estupros, cárcere privado e castigos como o esmagamento do tornozelo pelo “tronco”, amputações, crucificações e mortes.

No caso do povo Xokleng, que é parte no processo cujo desfecho fixará a tese no Tema 1031 no Supremo, não foi diferente. Há registros de que um acordo envolvendo o SPI teria sido celebrado em 20 de setembro de 1914, quando ficaram reservados cerca de 37 mil hectares de terras aos Xokleng. Contudo, esse acordo deixou de ser respeitado, e parte significativa das terras foi desmembrada compulsoriamente. Assim, em 1926, de 37 mil hectares, a área passou a medir apenas 20 mil. Essa redução foi associada a um conjunto de atos de extrema violência, segundo o que nos relata o povo Xokleng.

Nas décadas seguintes, o território sofreu uma outra redução compulsória, sobrando aos Xokleng somente 14 mil hectares, conforme consta em laudo pericial antropológico:

Em 1952 este mesmo tipo de pressão gerou a desanexação de 6 mil hectares da Terra Indígena – as áreas da Barra da Prata, Rio Bruno e Rio Denecke –, considerando a existência, então, de madeireiros e agricultores “intrusa” naquela região. Isso ocorreu através de acordo firmado entre o governo federal, através da 7ª Inspetoria do Serviço de Proteção aos Índios – SPI e o governo estadual de Santa Catarina, através da Diretoria de Terras e Colonização de Santa Catarina – DTC/SC, que alterou os limites descritos no Decreto de 15 de 1926, reduzindo a extensão da Terra Indígena para 14.048,88 hectares.

Não bastasse isso, em 1970, os Xokleng foram atingidos com a construção da Barragem Norte, que vem gerando impactos cada vez mais negativos na vida do povo e no território tradicional.

O estudioso do povo Xokleng Silvio Coelho dos Santos descreveu o período dos sucessivos esbulhos da seguinte forma: “(…) vivendo nas encostas do planalto e nos vales litorâneos, viram suas terras serem gradativamente ocupadas pelos brancos. Nesse processo, sofreram as consequências de decisões políticas e econômicas, em regra executadas a fio de facão e a tiros de escopeta por experimentados caçadores de índios, os bugreiros”. Acrescenta o estudioso:

Os Xokleng despertaram o interesse dos imigrantes, desde o primeiro momento. Vistos como motivo de insegurança pelos colonos e obstáculo ao “progresso”, pelas empresas de colonização, centraram um debate que levou o governo a criar o Serviço de Proteção aos Índios, em 1910. Alvos das atenções do novo Serviço, vivenciaram nos primeiros anos de convívio na reserva de Ibirama a perda de dois terços da população originalmente contatada (SANTOS, 1997, pg. 09).

Conclui o mesmo autor, com o depoimento colhido a um “bugreiro”, no ano de 1972, o que demonstra a radicalidade contra o povo Xokleng:

Segundo um depoimento que obtive do bugreiro Ireno Pinheiro, em 1972, na localidade de Santa Rosa de Lima, afugentavam-se os índios “… pela boca da arma. O assalto se dava ao amanhecer. Primeiro, disparava-se uns tiros. Depois passava-se o resto no fio do facão. O corpo é que nem bananeira, corta macio. Cortavam-se as orelhas. Cada par tinha preço. Às vezes, para mostrar, a gente trazia algumas mulheres e crianças. Tinha que matar todos. Senão, algum sobrevivente fazia vingança. Quando foram acabando, o governo deixou de pagar a gente. A tropa já não tinha como manter as despesas. As companhias de colonização e os colonos pagavam menos. As tropas foram terminando. Ficaram só uns poucos homens, que iam em dois ou três pro mato, caçando e matando esses índios extraviados. Getúlio Vargas já era governo, quando eu fiz uma batida. Usei Winchester. Os índios tavam acampados num grotão. Gastei 24 tiros. Meu companheiro, não sei. Eu atirava bem (grifos nossos).

Isso demonstra que houve violenta expulsão das comunidades indígenas e a entrega das suas terras para os colonizadores, com a ação direta do estado de Santa Catarina e do SPI.

Como se vê, o território dos Xokleng, demarcado em 1914 – em tamanho menor ao que historicamente ocupavam – foi sendo esbulhado e entregue a particulares. Mais recentemente, já no início do século XXI, foi iniciado o procedimento demarcatório em acordo com a atual Constituição.

Assim, após a realização de complexo procedimento administrativo e com base em laudo antropológico, o Ministério da Justiça, por meio da Portaria nº 1182/2003, declarou de posse permanente dos grupos indígenas Xokleng, Kaingang e Guarani a Terra indígena Ibirama-La Klãnõ, com superfície aproximada de 37.108 hectares.

É justamente a questão do deslocamento compulsório sob o jugo da violência que será apreciada pelo STF neste dia 7 de junho, por ocasião do julgamento da ACO 1100 e do RE-RG 1017365 (Tema 1031). Ambos os casos, no mérito, tratam do território do povo Xokleng, o segundo deles com repercussão geral.

A Corte, portanto, terá a chance de pacificar a interpretação do estatuto constitucional indígena e viabilizar concreta aplicação da vontade do constituinte de 1988, não só para os Xokleng, mas a todos os povos do nosso país. Terá a oportunidade de impedir que os crimes de caçadas humanas, como aqui narrados, sejam anistiados ou mesmo validados. E, ainda, terá o ensejo de superar a ignorância, o preconceito e o racismo que desumaniza os povos originários e sua cultura e que destrói o meio ambiente com projetos “insustentavelmente” ultrapassados.

Paloma Gomes é advogada do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Rafael Modesto Nicolas Nascimento também são advogados que atuam na assessoria jurídica do CIMI.

fonte: https://outraspalavras.net/outrasmidias/marco-temporal-hora-de-romper-o-ciclo-das-atrocidades/

 

Para lideranças indígenas e apoiadores da causa, aprovação do marco temporal representa genocídio dos povos e territórios

No segundo dia de acampamento, em Brasília, lideranças indígenas, representantes de órgãos públicos e advogados debatem tese do marco temporal 

Povo Xokleng participa de marcha contra o marco temporal, em Brasília. Foto: Mita Xipaya/Coiab

POR ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DO CIMI

No segundo dia do Acampamento da Mobilização Nacional Contra o Marco Temporal – 6 de junho, véspera da retomada do julgamento do caso de repercussão geral sobre direitos originários –, cerca de duas mil lideranças indígenas acompanharam, na tenda principal do acampamento, debates sobre questões territoriais, garantia de direitos e proposições que tramitam nos Poderes Executivo, Judiciário e Legislativo.

A programação contou com a realização de plenária, seminário, análise de conjuntura e um ato em apoio aos ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas. O Seminário sobre Direito Territorial e Inconstitucionalidade do Marco Temporal abriu as atividades do dia.

Participaram da ocasião lideranças indígenas; assessores jurídicos de organizações que atuam junto aos povos originários; Eliana Torelly, integrante da 6ª Câmara  – Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal (MPF); André Carneiro Leão, Defensor Público Federal e presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH); Joenia Wapichana, presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai); e a deputada federal Célia Xakriabá (PSOL/MG).

Presente no palco da tenda principal, Cristiane Baré, assessora jurídica da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), afirmou que a tese do marco temporal, se aprovada, “vai mexer com toda a nossa vida, com os territórios de todo o Brasil”.

“O marco temporal é uma tese política que vem para barrar as questões de demarcações dos nossos territórios, uma tese trazida pela bancada ruralista, pelo agronegócio, pelos fazendeiros para tentar legalizar a entrada nos territórios indígenas, uma tese de genocídio para as populações indígenas”, disse Cristiane. 

“Uma tese de genocídio para as populações indígenas”

Em frente à sede da Advocacia Geral da União, em Brasília, lideranças indígenas pedem a revogação do Parecer 001/2017 da AGU | junho de 2023. Foto: Marcos Willian/Assessoria de Comunicação do Cimi

A assessora da Coiab reforçou, ainda, a importância de “rechaçar a tese inconstitucional do marco temporal pela vida do nosso povo, do nosso território”. “O território, para nós, não é algo abstrato. Nós somos o território, nós somos as florestas, nós somos o bioma. Um não vive sem o outro. Os seres que vivem nesse território também são seres de importância. É a nossa cosmovisão. Para nós, os rios têm vida, a floresta tem vida, e são esses seres que a gente tem que proteger”, finalizou.

“Nós somos o território, nós somos as florestas, nós somos o bioma”

Mais de cinco mil indígenas participaram da marcha do Acampamento Terra Livre 2023, no dia 26 de abril, em Brasília (DF), em manifestação em defesa dos direitos indígenas e contra a tese do marco temporal. Foto: Maiara Dourado/Cimi

O Projeto de Lei (PL) 490/2007  – agora no Senado Federal sob a numeração PL 2903/2023 – também foi pautado no seminário. A proposição legislativa foi aprovada na última semana, por 283 votos a 155, pela Câmara dos Deputados. O PL tem como finalidade inviabilizar, na prática, a demarcação dos territórios indígenas por meio da aplicação do marco temporal. 

Contudo, sua gravidade “vai muito além do marco temporal”, afirmou Eliana Torelly, procuradora da 6ª Câmara do MPF, que enfatizou a necessidade do movimento indígena “ficar bastante vigilante”.

Para ela, o projeto aprovado na Câmara não só limita direitos originários por meio do marco temporal, como também retira uma série de outros direitos constitucionalmente garantidos. “O PL transforma o processo de demarcação de terras indígenas em um processo muito complicado”, argumenta.

“O PL transforma o processo de demarcação de terras indígenas em um processo muito complicado”

Marcha realizada no dia 30 de maio contra o Projeto de Lei (PL) 490. Foto: Maiara Dourado

“A aprovação desse projeto do Senado vai ser algo muito perigoso para os processos de demarcação de terras indígenas. Não é coincidência que tão próxima tenha sido a votação do PL 490 e, agora, na pauta o marco temporal no STF”, disse a procuradora.

A ameaça investida contra o povo Tapayuna, do Mato Grosso, no período da ditadura militar, foi um dos exemplos dos perigos impostos pelo marco temporal. Para Renan Sotto Mayor, Defensor Público Federal que acompanha o caso que envolve o direito territorial deste povo,“o argumento [do marco temporal] é político, não jurídico. Não faz sentido usar esse marco temporal”.

“O povo Tapayuna, do Mato Grosso, na ditadura militar, foi removido de seu território e colocado compulsoriamente no parque do Xingu. O Estado brasileiro praticou um crime, diversos indígenas morreram, houve quase um etnocídio durante a ditadura militar e o povo Tapayuna e diversos outros povos sofreram”, explicou.

“Em 1988, o povo Tapayuna não estava no território deles. Hoje tramita no Mato Grosso uma ação possessória para demarcar o território Tapayuna. Se a tese do marco temporal for aprovada, o povo Tapayuna sequer vai poder estar em seu território,um território que foi retirado pelo Estado na ditadura militar”, completou.

 

Análise de conjuntura

Na parte da tarde, Alessandra Korap, liderança indígena do povo Munduruku; Eloy Terena, secretário-executivo do Ministério dos Povos Indígenas (MPI); Paulino Montejo, assessor político da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib); e Kleber Karipuna, coordenador executivo da Apib, analisaram as principais medidas que tratam da pauta indígena e que ameaçam seus direitos territoriais. 

A Medida Provisória (MP) 1154, o PL 490/2007, a MP da Mata Atlântica e o projeto da Ferrogrão foram destacados como as ações mais preocupantes para os povos indígenas. Na ocasião, os membros da plenária lembraram da importância de manter a mobilização junto ao Senado em razão do PL 490, que aguarda análise da Casa, mas sobretudo, no STF, que julgará o fundamento jurídico da tese do marco temporal. 

Para Alessandra Korap, “a briga é com os deputados, com os senadores, com os prefeitos, vereadores, porque são eles que têm a caneta e estão assinando a nossa morte. São eles que estão assinando para nós sermos expulsos do nosso território”, explica. 

“São eles que têm a caneta e estão assinando a nossa morte”

O dia foi encerrado com um ato em apoio aos Ministérios do Meio Ambiente (MMA) e dos Povos Indígenas (MPI), que com a aprovação da MP 1154, tiveram suas atribuições reduzidas. A medida, aprovada na semana anterior, retirou do MPI a prerrogativa das demarcações das terras e do MMA, a gestão do Cadastro Ambiental Rural (CAR) e dos recursos hídricos.

fonte: https://cimi.org.br/2023/06/aprovacao-do-marco-temporal-representa-genocidio-dos-povos-e-territorios/


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