Quase lá: Preconceito limita o acesso da população LGBTQIAP+ ao transporte público

População LGBTQIAP+ tem o direito básico de ir e vir cerceado por ameaças. Série do Correio mostra a violência a que a comunidade está sujeita no transporte público: foram 200 casos de violações registrados no país desde janeiro de 2020

 

Talita de Souza
 
Pedro Grigori
 
Aline Brito
postado em 23/07/2023 03:55 / Correio Braziliense

 

Anderson Viana sai montado para apresentar shows como a drag queen Bessha Loka. Ele pega dois ônibus e o metrô até chegar ao destino -  (crédito: Benjamin Figueredo/CB/D.A Press)
Anderson Viana sai montado para apresentar shows como a drag queen Bessha Loka. Ele pega dois ônibus e o metrô até chegar ao destino - (crédito: Benjamin Figueredo/CB/D.A Press)

A lace ruiva e a maquiagem extravagante chamam a atenção dos passageiros no vagão do metrô de Brasília. O top cropped com mangas bufantes, nas cores da bandeira LGBTQIAP , e a sombra nos olhos com o mesmo arco-íris dão o tom de quem é a drag queen Bessha Loka. Naquela noite de sexta-feira, como em muitas outras, ela enfrentou — literalmente — o transporte público para ir trabalhar.

Por trás da persona artística de Bessha Loka há o jovem gay Anderson Viana, 24 anos, que usa a integração entre ônibus e metrô para chegar aos compromissos profissionais e de lazer da drag. E o artista nunca passa despercebido: recebe olhares, elogios e provocações. "Olha lá o viadinho, já vai fazer palhaçada", "os pais dele devem ter desgosto disso" estão entre as mais comuns. "A mais marcante para mim foi uma vez que estava no ônibus e um homem começou a falar que se ele fosse a morte, ele me matava", recorda.

O Art 5º da Constituição Federal diz que todos são iguais perante a lei, e o inciso XV assegura o direito de ir e vir do brasileiro: "É livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens". No entanto, nem mesmo um dos direitos mais básicos de um cidadão é inteiramente assegurado para uma parcela da população.

Preconceito

No Brasil, ainda há pessoas que precisam se esconder ao subir em um ônibus; há casais que se sentem obrigados a sentar em cadeiras distantes dentro de um vagão de trem; e há até mesmo pessoas que são impedidas de entrar em um carro de aplicativo.

Um levantamento inédito feito pelo Correio Braziliense a partir de dados do Ministério dos Direitos Humanos identificou o registro de 200 casos de violações dos direitos humanos contra membros da comunidade LGBTQIAP em ônibus e metrôs entre janeiro de 2020 e junho de 2023. Os números foram obtidos a partir de denúncias recebidas pela Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos, por meio do Disque 100, Disque 180 ou do aplicativo oficial da pasta.

Os dados, no entanto, representam apenas um vislumbre da real situação que a comunidade enfrenta. Uma pesquisa do Instituto Locomotiva diz que 49% dos LGBT já sofreram algum tipo de preconceito dentro de um transporte público, mas apenas 1% destes denunciou o ocorrido.

A partir deste domingo (23/7), o Correio publica a série de reportagens Viagem cancelada: o preconceito que limita o ir e vir da comunidade, que mostra a batalha dos LGBTQIAPN para se locomover em segurança.

A rotina de uma drag

Em 7 de julho deste ano, última sexta-feira antes da Parada do Orgulho LGBT de Brasília, a reportagem do Correio acompanhou a ida ao trabalho da drag queen Bessha Loka. Percorremos 16,5km durante uma hora e meia para entender como a sociedade enxerga a diversidade no transporte público.

Era noite quando nos encontramos com Anderson Viana, já montado como Bessha Loka. Ao lado da figura de 1,75m, caminhamos cerca de 10 minutos até uma parada de ônibus em Samambaia Sul, onde esperamos por um circular até o metrô. "Gostosa!", gritou um homem que passava de carro.

Ao entrar no ônibus, Bessha cumprimenta o motorista com um "boa noite", mas ele vira o rosto e não a responde. Ela senta em uma cadeira enquanto confere o look pré-pronto para o trabalho. Os lábios marcados com um batom marrom escuro, brincos grandes e redondos e um colar igualmente chamativo. Vestida em um moletom preto e uma sandália Havaiana, que seriam trocados por uma meia-calça branca e um salto alto assim que ela chegasse ao Vale Lounge Bar, no Guará.

Desde o momento em que pisou no veículo até sair dele, Bessha foi analisada por cada passageiro. Na estação de metrô, embarcamos em um trem com destino à Central e nos sentamos do outro lado do vagão, onde pudemos observá-la de longe. Dentro do metrô, as pessoas parecem menos incomodadas com a presença da drag queen, mas continuam surpresas por vê-la ali.

Uma mulher se senta ao lado da drag e elogia a maquiagem dela. "Linda", diz a passageira. Saímos do metrô na Estação Guará e caminhamos até uma parada de ônibus, onde entramos em um circular para o Guará 2 — a última integração até o destino final. No veículo, outra mulher elogia a maquiagem da drag queen, enquanto um homem solta um "linda" ao passar perto dela.

 

Drag queen Bessha Loka pega dois ônibus e um metrô para chegar ao trabalho
Drag queen Bessha Loka pega dois ônibus e um metrô para chegar ao trabalho(foto: Benjamin Figueredo/CB/D.A Press)

 

Vulnerável

"Posso estar montada parecendo uma palhaça, mas estou vulnerável ao assédio. Eu fico com mais medo de sair montada quando estou bem 'mulherzona'. Fico com medo do que pode acontecer na rua ou dentro do transporte público. Já tive que bater de frente com um homem que estava sendo ridículo comigo", relata.

Ao descer do ônibus, a drag escuta o murmuro de um passageiro. "Esses baitolas…", diz o homem. Caminhamos por mais cinco minutos até a boate, enquanto ela desabafa sobre o ocorrido. "No começo eu ficava triste e com medo desse tipo de situação, mas hoje eu penso que tenho minha família que me apoia, meus amigos que me amam, por que vou dar ouvidos a esses preconceituosos que são ninguém na minha vida?"

Ter feito o trajeto acompanhada da reportagem pode ter ajudado a inibir os ataques, avalia a drag. "Geralmente eu ouço bem mais ofensas e percebo mais olhares maldosos", garante. "Para essas pessoas, nós somos menos que um objeto: somos nada", desabafa Bessha Loka, antes de abandonar o tom triste e vestir a persona de artista para o show da noite.

Violência naturalizada

Na semana seguinte, o Correio esteve no gabinete 24 da Câmara Legislativa do DF, onde trabalha o primeiro parlamentar assumidamente gay da capital. O deputado distrital Fábio Félix (PSol) é membro da Comissão de Transporte e Mobilidade Urbana e presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da Casa, e classifica a hostilidade no transporte público como um problema de "estrutura social de opressão e preconceito, patrocinada por alguns setores fundamentalistas ultra conservadores e odiosos da sociedade". "Eles tentam desumanizar a população LGBTQIAP e naturalizar essas condutas de violência", diz.

"Desde o transporte público até os lugares de elite, essas pessoas que negam a nossa existência e que não aceitam nossa cidadania e os nossos direitos estão em todos os territórios da cidade", constata Fábio. No entanto, cenários como o transporte público propiciam momentos de vulnerabilidade, devido, por exemplo, à falta de acesso a saídas rápidas ou de autoridades de segurança enquanto se está em movimento.

O Brasil não faz parte do grupo de 73 países em que a relação homossexual é considerada crime, no entanto, registra mais mortes violentas entre essa população. De acordo com o último relatório do Grupo Gay da Bahia, 256 mortes violentas de membros da comunidade LGBT ocorreram no país em 2022.

O número significa um óbito a cada 34 horas. Quase metade dos crimes tem como alvos jovens entre 13 e 29 anos. Mais de 3% dos assassinatos ocorreram em rodovias ou estradas, e não há registro de homicídios dentro de veículos de transporte público.

Susana Xavier, professora e membro do Conselho de Direitos Humanos da Universidade de Brasília (UnB), diz que ainda não há ferramentas de controle do Estado, nem uma perspectiva de implantação de medidas para trazer um tratamento respeitoso à comunidade.

Para ela, que esteve à frente da Diretoria de Diversidade da UnB por cinco anos, os dados mostram que essa população não tem o direito à mobilidade plenamente respeitado. "A violência é resultado de um discurso de ódio praticado por referências religiosas e políticas, que acabam se aprofundando e fazendo eco em pessoas que já têm um histórico de fundamentalismo e não têm tanto senso crítico. Assim, acabam por reproduzir as violências", explica.

Medo de denunciar dificulta punição

O Distrito Federal foi responsável por 7,6% dos casos de LGBTfobia no transporte público entre janeiro de 2020 e junho 2023, de acordo com dados do Ministério dos Direitos Humanos. É a quarta unidade da Federação com maior registro de casos no canal de denúncia do governo federal, atrás apenas dos três estados mais populosos do país — Rio de Janeiro, que soma 43,5% dos registros; São Paulo (27,2%); e Minas Gerais (10,5%).

Não há informações se os casos de violações ocorridas no DF tornaram-se denúncias investigadas pela Justiça ou pela Segurança. O Correio questionou a Secretaria de Segurança Pública do DF sobre o número de ocorrências de LGBTfobia no transporte público, mas o dado não existe. O único número referente a esse crime é o geral: foram registrados 64 casos de homotransfobia no DF entre janeiro e dezembro de 2022.

De acordo com o levantamento do Correio, das 246 violações registradas pelo Ministério dos Direitos Humanos no transporte público nacional, apenas 63 foram formalizadas em denúncias a serem investigadas.

A pasta informou que as denúncias recebidas pelos canais de ouvidoria são analisadas e encaminhadas aos órgãos de proteção, defesa e responsabilização em direitos humanos. "Em geral, o encaminhamento é feito para a Polícia Civil e para o Ministério Público, buscando os Núcleos de Direitos Humanos desses órgãos. No caso de violação contra uma mulher trans, o encaminhamento é feito para a Delegacia da Mulher.

O abismo entre o número de casos e o montante de denúncias preocupa, afinal, a falta de registro formal impede uma possível investigação e penalização do agressor, além de dificultar que políticas públicas sejam criadas. Para o deputado distrital Fábio Félix, o que impede a comunidade de formalizar queixa é a escassez de delegacias especializadas. A única do DF funciona apenas em horário comercial, lembra o parlamentar, que diz ainda que a estrutura policial apresenta maior risco de situações vexatórias do que de acolhimento à vítima.

Os problemas de formação aparecem até mesmo no preenchimento dos dados. Durante o levantamento realizado pelo Correio no portal da Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos, muitos dos registros ignoravam informações importantes, como a identidade de gênero das vítimas, o que invisibiliza a comunidade trans dentro do banco de dados do governo federal.

Susana Xavier diz que é comum que as vítimas se sintam desrespeitadas na hora de realizar uma denúncia. "É um receio do desgaste e também por não ter ferramentas. Já tive conhecimento de vários LGBTs que foram a delegacias comuns e foram alvo de deboche", acrescenta a professora.

Para saber mais

Em 13 de junho de 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26 e, por maioria da Corte, reconheceu que houve omissão do Congresso Nacional por não editar lei que criminalize atos de homotransfobia. Com isso, a Corte votou pelo enquadramento da homofobia e da transfobia como tipo penal definido na Lei do Racismo (Lei nº 7.716/1989) até que o Congresso edite lei sobre a matéria. Com isso, a LGBTfobia passa a ser classificada como crime, com penas que podem variar de multa até reclusão de cinco anos.

 

lgbt
lgbt(foto: caio gomez e pacifico)

 

 

Conscientização deve se estender às empresas

Era tarde de 10 de abril de 2017 quando o servidor público Maurício Martins, à época com 24 anos, entrou em um ônibus da empresa Urbi Mobilidade no Pistão Sul, em Taguatinga, em direção ao Taguacenter.

Ativista da causa LGBTQIAP+, Maurício trabalha na organização das Paradas do Orgulho realizadas no Distrito Federal. Naquele dia, ele usava uma camiseta da Parada do Orgulho de Santa Maria. Ao entrar no transporte, ele se sentou em uma das cadeiras da frente, antes da catraca, e logo notou que se tornou o assunto da conversa entre o motorista e o cobrador do ônibus.

Os dois riam e soltavam frases ofensivas como "todo gay vai pro inferno" e "é uma vergonha". O tom vexatório das ofensas passou a ser acompanhado de um teor religioso. "Os gays só vão parar com essa safadeza quando a mão de Deus pesar sobre eles", soltou o cobrador.

Sozinho, Maurício ficou sem reação. "Por vários momentos, em conversa com o motorista, o cobrador dizia que pessoas LGBT estavam condenadas ao inferno, que não aceitaria um filho dele ser gay, que trataria 'na base da porrada'", conta Maurício.

A situação foi tornando-se cada vez mais agressiva. O cobrador e o motorista começaram a dizer que pessoas como Maurício "mereciam apanhar para criar vergonha na cara". "Foi quando mais me assustei. Passei a catraca e comecei a filmar, já que a filmagem seria a minha única defesa. Eles eram dois homens de porte médio para grande. Juntos, poderiam me causar um grande estrago", disse.

O cobrador começou, então, a fazer ataques diretos a Maurício. "Ele começou a dizer que a homossexualidade era uma doença, que não era obrigado a conviver com homossexuais, que era um problema mental e espiritual. Ele disse 'esse rapaz aí precisa é de tratamento, de psiquiatra pra poder virar homem'", relembra Maurício.

No momento do crime, havia mais pessoas dentro do ônibus, mas ninguém interveio. Acuado, Maurício puxou a corda do ônibus e decidiu descer. Enquanto deixava o veículo, escutou risadas e gritos dos rodoviários. "Vai mesmo, viadinho", finalizou o cobrador.

Marcas do trauma

Maurício conta que foi amparado por amigos e levado à 33ª Delegacia de Polícia (Santa Maria), onde registrou um boletim de ocorrência por injúria preconceituosa ligada à orientação sexual. "Entrei com uma ação contra a empresa Urbi Mobilidade, uma vez que os funcionários, na prática do exercício, cometeram esse crime", diz.

Casos como o de Maurício não são a exceção. De acordo com levantamento feito pelo Correio a partir dos dados do MDH, em 21% das ocorrências de violação contra LGBTs no transporte público o autor da agressão foi o prestador de serviço do ônibus ou do metrô.

Mesmo com as filmagens do episódio, os funcionários negaram que haviam cometido homofobia. Foram quatro audiências no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), até que a Urbi propôs o pagamento de uma indenização no valor de R$ 7 mil. O processo foi arquivado, mas nem os rodoviários nem a empresa assumiram a culpa.

O acordo trouxe alívio, mas não apagou o medo que morou dentro de Maurício por anos a partir daquele episódio. "Tive que fazer acompanhamento psicológico. Eu me sentia perseguido, uma vez que a gente anda de transporte público, e essa empresa presta serviço até hoje no DF. Ficava com medo de retaliações por causa do processo e do boletim de ocorrência, o que me fez desenvolver síndrome do pânico", explica.

A reportagem tentou contato com a Urbi Mobilidade, mas não obteve retorno até a publicação desta matéria.

Felicidade cerceada pelo preconceito

Alguns fatores aumentam o nível de periculosidade nos vagões e nos trajetos de ônibus para pessoas LGBTQIAP+. Um deles é exercer livremente a identidade, seja por meio de roupas, seja de trejeitos ou pela demonstração de afeto.

Para a professora da UnB Susana Xavier, o medo de demonstrar afeto é uma das maiores violências contra as pessoas LGBTQIAP+ ao se locomover pela cidade. A especialista afirma que não ter direito de ser quem se é significa uma castração da felicidade, o que impede uma vida saudável, e que isso passou a ser "uma forma de repressão naturalizada e até bem aceita". "Se você não tem o direito de estar e de ser, com liberdade, pela cidade, você não vive livremente", pontua.

O Brasil está longe do ideal de respeito à diversidade no transporte público, e as violências cometidas contra a comunidade devem ser combatidas em diferentes frentes, afirmam os especialistas. Susana Xavier avalia ser urgente o Estado, "independentemente de ideologia política", entrar na luta para combater as violências.

A professora também acredita que as empresas que fornecem os meios de transporte devem focar na formação dos colaboradores. "Campanhas aleatórias não resolvem o problema, a questão é uma formação dos trabalhadores e trabalhadoras, para que haja a visão da pluralidade e da diversidade, com cobrança de desempenho e com levantamento da satisfação do passageiro para monitoramento", desenha Susana.

 

 07/03/2023 Credito: Ed Alves/CB/DA.Press. Cidades. CB Poder recebe o Deputado Distrital Fábio Felix.
Deputado distrital Fábio Félix vai convocar reunião com a Semob(foto: Ed Alves/CB/DA.Press)

 

Ações em curso

A Secretaria de Transporte e Mobilidade do DF (Semob-DF) realiza campanhas de esclarecimento sobre desrespeito e discriminação contra mulheres, idosos, crianças e pessoas com deficiência, incluindo o combate a importunação sexual e assédio. No entanto, não há peças relacionadas à comunidade LGBTQIAP+. Questionada pelo Correio, a pasta informou que poderá incluir o tema nas próximas campanhas.

A Semob não tem competência para fiscalizar ou investigar episódios de homotransfobia dentro do transporte público. Segundo a pasta, em casos de denúncia dentro dos veículos, os motoristas são orientados a acionar a polícia ou conduzir o transporte até a delegacia mais próxima.

Depois do levantamento feito pelo Correio, o deputado Fábio Félix disse que vai "apresentar alguns projetos de indicação ao Governo do Distrito Federal e convidar a Secretaria de Mobilidade para uma reunião".

"Vamos exigir medidas. Tanto exigir que haja formação dos profissionais do transporte público geral — rodoviário e metroviário — e cobrar, também, algumas diretrizes para cada empresa. A gente pode até ter um projeto de lei que trata sobre essa questão", afirmou o deputado.

 

 

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