As contradições e tensões em torno do trabalho produtivo e o trabalho de cuidados das mulheres foi tema da atividade político-cultural do SOS Corpo, que marcou ainda o lançamento da publicação “Trabalhadoras Domésticas: Conflito na Luta por Direitos”, da pesquisadora e educadora Rivane Arantes.
|Texto: Fran Ribeiro | Fotos: Lara Buitron | Comunicação SOS Corpo
No último 16 de maio, o SOS Corpo realizou mais uma edição da Ação Cultural Feminista, atividade política-cultural promovida pelo Instituto, que pretende incentivar o debate público sobre questões latentes do cotidiano da cidade e da vida das mulheres. Com o tema Trabalho e Cuidado, a ACF teve Sessão Feminista com o filme Dupla Jornada (1988), seguido de debate com Betânia Ávila e Rivane Arantes, educadoras e pesquisadoras do SOS Corpo que dedicam suas pesquisas a essa temática. A atividade marcou ainda o lançamento do livro físico “Trabalhadoras Domésticas: Conflito na Luta por Direitos”, de autoria de Rivane Arantes, pelas Edições SOS Corpo.
O documentário “Dupla Jornada”, dirigido por Angela Freitas, foi uma realização do SOS Corpo em parceria com a TV Viva. O filme, de 1988, veio diretamente do nosso acervo de memória, que foi recém digitalizado e que em breve será disponibilizado para consulta em nosso site. Ele apresenta o encontro de mulheres trabalhadoras da cana, produtoras rurais, tecelãs e artesãs, com o objetivo de debater trabalho dentro e fora de casa. Além do encontro, o documentário também entrevista algumas das mulheres e suas famílias para melhor investigar a relação do trabalho doméstico dentro da casa das trabalhadoras.
Betânia Ávila, uma das fundadoras do SOS Corpo falou sobre o filme e a sensação de revê-lo na Ação Cultural. “Foi muito gratificante ver, me trouxe outras memórias, me fez recordar das primeiras atividades da gente, que era o teatro e as questões relativas ao trabalho que vinham no teatro e que vieram como inspiração no filme. E é um documentário muito democrático, pois elas são as sujeitas do filme, porque são elas as sujeitas do encontro. É um documento de várias dimensões”, destacou a pesquisadora.
Além da força do encontro de mulheres tão diversas, que têm na vida cotidiana semelhanças e que são atravessadas pelas mesmas questões, o filme traz o registro de companheiras valorosas e de longa data do Instituto e explora, ainda, o uso de técnicas educativas como o desenho e o trabalho manual com massinhas de modelar, que as mulheres utilizaram para para representar suas experiências e vivências no mundo do trabalho produtivo e do trabalho reprodutivo em casa.
“O vídeo é lindo, forte, ele é um documentário do encontro de trabalhadoras do campo e da cidade, que colocam tanto as questões das condições de trabalho quanto questões das condições de vida, das desigualdades que elas sofrem, das questões importantes ali do que elas almejam como melhorias e como direitos do trabalho. Elas fazem uma crítica ao fato de trabalharem igual aos homens e receberem um salário menor, sobre a dureza do trabalho, os desejos de terem outras profissões. Colocam também em termos de denúncia e constatação, a partir das dificuldades do dia a dia, que elas estão no trabalho tanto para fazer uma renda, o que nós definimos como trabalho produtivo, e também pro trabalho doméstico de todo dia, que é o trabalho reprodutivo”, analisou Betânia Ávila.
O filme serviu como pano de fundo para o paralelo das realidades, de 1988 a 2024, as semelhanças e dificuldades do dia a dia enfrentadas pelas mulheres retratadas no filme e as milhões que vivem atualmente uma jornada extensiva e intermitente, do trabalho laboral às tarefas domésticas que as aguardam na volta do trabalho produtivo. A transição entre o conceito de dupla jornada para trabalho intermitente foi explorado no debate que se seguiu.
“No filme nós temos o conceito de dupla jornada. Que hoje, a partir das pesquisas, a partir do feminismo, a partir da definição do trabalho doméstico como um trabalho, da própria luta das trabalhadoras domésticas no Brasil, mas também das discussões feministas, como a experiência. Com o avanço das discussões e pesquisas, avaliamos que o conceito de dupla jornada não dá conta de analisar a relação das mulheres com o trabalho produtivo e reprodutivo. Nós temos tratado essa relação como uma jornada intensiva, extensiva e intermitente e, em muitos casos, uma jornada simultânea, já que as mulheres estão no trabalho produtivo e reprodutivo ao mesmo tempo”, destacou Betânia durante o debate.
A reflexão sobre a insuficiência do conceito de dupla jornada se dá, sobretudo, pela falsa impressão de que existe um momento em que a jornada do trabalho de cuidados começa e termina, o que não é verdade. A partir também dessa reflexão as debatedoras falaram sobre a jornada de trabalho doméstico 24 horas por dia, 7 dias da semana e como isso se estende para a relação das trabalhadoras domésticas e seus empregadores.
De acordo com Rivane Arantes, pesquisadora e educadora do SOS Corpo autora do livro “Trabalhadoras Domésticas: Conflito na Luta por Direitos”, lançado no evento, o trabalho doméstico é trabalho de cuidado e cuidado é trabalho. “Cuidar de criança, de idosos e da casa exige competências, dedicação, há gasto de energia física, tempo da vida das mulheres e na grande maioria das vezes, disponibilidade emocional”. E é justamente o trabalho doméstico de cuidados que não é valorizado e isso é visto pela precarização das condições de trabalho e da vida das trabalhadoras domésticas.
“As trabalhadoras domésticas cuidam, mas o Direito, o Estado, a família, as empresas e os homens são insensíveis ao cuidado. Quando o Direito e esses sujeitos não olham para o que acontece dentro de casa, faz parecer que o trabalho doméstico não é trabalho e não ‘cuida de quem cuida’, no sentido do reconhecimento dos direitos. O que temos é um Direito insensível ao cuidado. O mercado de trabalho doméstico e de cuidado emprega a mesma parcela da população, são as mulheres, sobretudo as mulheres negras, que fazem o trabalho de cuidados de idosos, crianças e pessoas com deficiência. Em geral, além de mulheres negras em sua maioria, são mulheres também mais velhas, que trabalham de forma informal e ganham menos de meio salário mínimo”, destacou a pesquisadora.
“O cuidado é fundamental para a sustentação da vida porque vivemos só quando estamos em relação, mas somos interdependentes em relação às pessoas e a natureza. O cuidado exige outra relação que não é de exploração e de esgotamento, o que significa que ele tem um potencial antirracista, antipatriarcal e anticapitalista”, finalizou Rivane.
fonte: https://soscorpo.org/?p=20069