Quase lá: Construção coletiva da autonomia feminina

Pesquisadoras do IFCH analisam como operam três redes feministas de economia solidária

Jornal da Unicamp


Para entender a conquista da autonomia, não basta enxergá-la como algo individual, fruto somente do mérito pessoal. Especialmente no caso das mulheres, o exercício da autonomia faz-se garantir de forma coletiva, envolvendo diversos atores e questões sociais. Pelo seu caráter multidimensional, as políticas públicas devem ser capazes de abranger toda essa complexidade. Essa é a conclusão de uma tese de doutorado defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, em acordo de cotutela com a Universidade de Paris e com financiamento do Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento (IRD, na sigla em francês), da França.

“O conceito de autonomia está no centro do debate da construção de políticas públicas para as mulheres”, afirmou Bárbara Castro, orientadora do doutorado e professora da Unicamp. Nesse contexto, a pesquisadora Beatriz Schwenck, autora da tese, analisou três redes feministas de economia solidária que operam conforme a noção substantiva da economia – proposto pelo sociólogo húngaro Karl Polanyi, esse conceito representa a relação de dependência do ser humano com a natureza e com os outros indivíduos. A escolha se justifica pela característica de autogestão dessas redes, cujo trabalho é coletivo e associativo, seguindo uma lógica de cooperação e solidariedade. Trata-se de redes feministas porque inserem no debate econômico questões específicas à experiência das mulheres, como, por exemplo, papéis socialmente impostos.

As três redes analisadas contam com a assessoria de organizações não governamentais vinculadas ao Movimento Marcha Mundial de Mulheres. São elas: a Associação de Mulheres na Economia Solidária do Estado de São Paulo (Amesol) – rede informal feminina da Região Metropolitana de São Paulo –, a Rede Xique Xique – composta por homens e mulheres no Estado do Rio Grande do Norte –, e a Rede de Economia Solidária e Feminista (Resf) – que tem abrangência nacional e sede em Porto Alegre (RS).

Schwenck acompanhou reuniões e feiras organizadas pelas redes, por meio da metodologia de observação participante, e realizou 30 entrevistas com homens e mulheres desses movimentos. Percebeu que as redes são responsáveis não apenas por gerar renda e trabalho, mas também por prover bem-estar. No Rio Grande do Norte, há o exemplo de mulheres que trabalharam por muito tempo em uma horta coletiva com foco no autoconsumo, acompanhadas dos filhos. “As agricultoras tiravam dali o alimento, o cuidado das crianças, as amizades e o bem-estar construído nesse espaço, e tudo isso faz parte do que entendemos por ‘economia’.”

Essas redes coletivas, ainda, contribuem para a tomada de consciência das participantes sobre o fato de que os problemas – a falta de dinheiro, a violência, a dificuldade de mobilidade urbana, a dificuldade de acesso à terra etc. – não são somente individuais. “Ao se politizar as desigualdades, vai-se criando um repertório de reivindicações que mobilizam outras formas de agir e de demandar a transformação dessa estrutura desigual”, pontuou Schwenck. Em alguns casos, esse processo alterou, inclusive, os diálogos familiares sobre a divisão sexual do trabalho e dos cuidados, uma das causas de sobrecarga das mulheres.


A orientadora Bárbara Castro (à esq.) e a pesquisadora Beatriz Schwenck: análise multiescalar e multidimensional de coletivos feministas

Potencialidades e limites

A pandemia de covid-19 evidenciou a importância das redes para a sobrevivência de seus integrantes, por exemplo, com a distribuição de cestas básicas, mas também deixou claros os seus limites de atuação – situações em que a ausência do Estado comprometeu o exercício da autonomia por parte dessas redes. “O caso de São Paulo exemplifica o quanto o desmonte das políticas públicas direcionadas à economia solidária afetou duramente as mulheres do contexto urbano, que realizavam trabalhos mais artesanais e relacionados à alimentação – essas redes implodiram com a pandemia”, destacou Castro.

A tese argumenta que a relação entre o Estado e os movimentos sociais oscilou na história recente brasileira, com períodos de embate e períodos de colaboração – como a criação e estruturação da Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes) e da Secretaria de Política para as Mulheres (SPM), entre os anos de 2003 e 2016. “Falamos, durante muitos anos, sobre o quanto a autonomia econômica não pode ser desvinculada das políticas de combate à violência contra a mulher. Esse é um dos exemplos de como a autonomia foi trabalhada na SPM. E agora está sendo retomado o debate sobre a Política Nacional de Cuidados”, disse Castro.

As pesquisadoras consideram que o país vive um momento de reconstrução de políticas sociais e de repactuação de valores. “As organizações feministas da economia solidária têm uma plataforma de reivindicações bem consolidada e essa visão de autonomia precisa ser considerada para a difícil missão de mobilizar o Estado a fim de garantir as políticas de geração de trabalho e renda e as condições de bem-viver dessas mulheres”, afirmou Schwenck.

Abordagem multidimensional

A então doutoranda baseou-se na epistemologia e metodologia da pesquisa-ação feminista, que alia a construção de conhecimento à transformação da realidade. “Criei espaços em que as mulheres pudessem compartilhar comigo esse processo.” O desafio foi realizar uma análise multiescalar – pensando as interlocuções entre o Estado, os movimentos sociais, as redes de economia solidária feminista e as mulheres – e também multidimensional, investigando dimensões como as questões econômicas, a divisão sexual do trabalho, a violência e as relações de gênero, raciais e de classe. “Com isso, a pesquisa levou a sério um princípio muitas vezes subestimado da sociologia que é justamente o deslocamento do nível da análise do individual para o coletivo”, pontuou Castro.

Para examinar esse grande volume de dados, Schwenck utilizou um software de análise qualitativa chamado N-Vivo, uma contribuição das duas temporadas de seis meses que passou na França, quando trabalhou no Centro de Estudos em Ciências Sociais sobre os Mundos Africanos, Asiáticos e Americanos (Cessma, na sigla em francês), sob a orientação da coorientadora da pesquisa, Isabelle Hillenkamp. “Trata-se de uma ferramenta pouco utilizada na sociologia no Brasil, mas que me ajudou a tratar com carinho o material: as entrevistas, minhas vivências e as participações nos eventos das redes”, explicou. Castro destacou o papel fundamental da cotutela para o estabelecimento de parcerias acadêmicas duradouras e para o enriquecimento do trabalho. A internacionalização, segundo a docente, promove um ambiente de aprendizado mútuo, contribuindo também para inserir uma perspectiva latino-americana em um espaço francês.


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fonte: https://www.jornal.unicamp.br/edicao/708/construcao-coletiva-da-autonomia-feminina/#gsc.tab=0

 


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