A proposta legislativa ignora completamente a realidade das crianças e mulheres que enfrentam situações de estupro e que têm o direito de não serem submetidas a uma nova violência, sendo obrigadas a gestar e parir. Embora a prática de relações sexuais ou atos libidinosos com menores de 14 anos configure estupro de vulnerável independentemente do consentimento da vítima, dados do Sistema Único de Saúde demonstram que 12 mil meninas de 8 a 14 anos estavam grávidas em 2023.
NOTA PÚBLICA DO CONANDA CONTRÁRIA AO PROJETO DE LEI 1904/2024
O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA, instância máxima de formulação, deliberação e controle das políticas públicas para a infância e a adolescência na esfera federal, criado pela Lei nº 8.242 de 1991, é o órgão responsável por tornar efetivos os direitos, princípios e diretrizes contidos no Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069 de 1990.
Pela presente nota, vem expressar profunda contrariedade ao Projeto de Lei 1904/2024, em pauta na Câmara dos Deputados, que busca equiparar o aborto a crime de homicídio em determinados casos, inclusive afastando a excludente de punibilidade prevista na hipótese de aborto no caso de gravidez resultante de estupro, garantido pelo Código Penal brasileiro desde 1940.
Em junho de 2024, a Câmara dos Deputados aprovou o Requerimento de Urgência do Projeto de Lei 1904/2024, o qual representa um retrocesso aos direitos de crianças e adolescentes, aos direitos reprodutivos e à proteção das vítimas de violência sexual, violando a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente e diversas normas internacionais das quais o Brasil é signatário.
É imprescindível lembrar que, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2022, 8 em cada 10 vítimas de violência sexual eram crianças e adolescentes e 61,4% das vítimas de estupro tinham no máximo 13 anos. Ainda, os dados demonstram que 2022 foi um ano em que cresceram os índices de todas as formas de criminalidade marcadas pela violência de gênero que atingem centenas de milhares de mulheres e meninas em todo o país. Com 56.820 vítimas, houve um incremento de 8,6% nos casos de estupro de vulnerável. Ou seja, trata-se de um cenário que deveria atrair a atenção do Congresso no sentido de ampliação da proteção, e não de punir e restringir os direitos de mulheres e, especialmente, de crianças e adolescentes, detentoras da garantia de seus direitos com absoluta prioridade, conforme preconizado pelo artigo 227 da Constituição Federal, em evidente violação ao princípio da vedação ao retrocesso social.
A proposta legislativa ignora completamente a realidade das crianças e mulheres que enfrentam situações de estupro e que têm o direito de não serem submetidas a uma nova violência, sendo obrigadas a gestar e parir. Embora a prática de relações sexuais ou atos libidinosos com menores de 14 anos configure estupro de vulnerável independentemente do consentimento da vítima, dados do Sistema Único de Saúde demonstram que 12 mil meninas de 8 a 14 anos estavam grávidas em 2023.
Infelizmente, milhares de crianças e adolescentes, majoritariamente negras, dão à luz todos os anos, apesar de terem o direito ao aborto legal. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2022, 56,8% das vítimas de estupro e estupro de vulnerável eram pretas ou pardas, evidenciando também um aumento desse indicador com relação aos anos anteriores. As consequências para crianças, adolescentes e mulheres negras, maiores vítimas de violência sexual, aniquilam subjetividades e destroem vidas, devido aos profundos traumas e que, agora, ainda correm o risco de serem obrigadas a dar continuidade a uma gestação indesejada e imposta pela violência.
Crianças e adolescentes são as que mais sofrem abusos, violências obstétricas e tem suas vidas e existências ceifadas tanto pela violência dos abusadores, como pela violência institucional a qual são submetidas posteriormente. Erradicar a violência contra crianças, adolescentes e mulheres é um compromisso do CONANDA e, para tanto, é necessário o enfrentamento ao machismo e ao racismo e garantir direitos desta população que é historicamente vulnerabilizada e violentada em nosso país, tendo suas vidas e saúdes diretamente impactadas com a violência e com Projetos de Lei, como no caso em tela, que ainda tem o condão de gerar uma ampla insegurança jurídica.
A gestação, como a concretização de uma situação de estupro e a obrigatoriedade do prosseguimento da gravidez é uma nova violência, um processo de revitimização agora imposto pelo Estado brasileiro, e que pode ser comparado com situações de tortura. Apenas a inviolabilidade dos corpos das crianças e adolescentes permitirá o seu pleno desenvolvimento físico, social, psíquico e emocional, o que significa que é preciso interromper qualquer tipo de violências e de imposição que impeça crianças de sonhar e de construir projetos de vida, violando direitos fundamentais à vida, à dignidade humana e à proteção contra toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade, opressão, tortura e tratamento cruel ou degradante.
Defende-se que a normativa referente ao abortamento legal seja integralmente efetivada na prática com a oferta do procedimento em serviços públicos de forma acessível, protegida e segura, observando-se as garantias fundamentais previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, com promoção de medidas de acolhimento e atendimento humanizado e especializado, com os mais amplos cuidados relativos à saúde física e mental de crianças e adolescentes.
Por fim, destaca-se que, com a alteração proposta, a pena prevista para mulheres e meninas vítimas de estupro se tornará maior (de seis a vinte anos de reclusão) do que a pena prevista para o crime de estupro de vulnerável (de oito a quinze anos de reclusão), o que significa uma criminalização majorada contra as vítimas, não sendo observada pelos legisladores a proporcionalidade entre as penas e delitos previstos no Código Penal, bem como a revitimização de mulheres e crianças vítimas de estupro.
Diante do exposto, o CONANDA posiciona-se contrário ao Projeto de Lei 1904/2024, que impõe sofrimento, tortura e coloca em risco a saúde, a integridade física e mental e a dignidade de milhares de crianças e adolescentes que são cotidianamente violentadas sexualmente em nosso país.
Criança não é mãe!
MARINA DE POL PONIWAS
Presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente - Conanda