Quase lá: A questão do aborto, o STF e a CNBB. Artigo de Ivone Gebara

Infelizmente o poder no mundo católico institucional e em outros espaços se mantem a partir do medo dos corpos femininos justificada a partir de uma abstração masculina de Deus

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"Não se trata mais de convocar novos Concílios para tomar decisões de ordem mundial e menos assembleias nacionais para declarar sua opção pelos pobres. Trata-se de sair às ruas, sem vestes e sem títulos, aproximar-se das crianças violadas, das mães que choram diante da fome e do desabrigo, da falta de cuidados médicos numa nação que produz miséria material e espiritual para milhares de seus membros apesar dos esforços de muitos".

O artigo é de Ivone Gebara, religiosa pertencente à Congregação das Irmãs de Nossa Senhora, filósofa e teóloga, que lecionou durante quase 17 anos no Instituto Teológico do Recife – ITER e que dedicou-se a escrever e a ministrar cursos e palestras, em diversos países do mundo, sobre hermenêuticas feministas, novas referências éticas e antropológicas e os fundamentos filosóficos e teológicos do discurso religioso.

Eis o artigo. 

Nesses tempos de mares conturbados não há calmaria, não há possibilidade de se esconder dos conflitos, de não cair nos abismos das acusações e divisões sobretudo frente a certos problemas que a vida insiste em nos apresentar. O diálogo, a compreensão mútua, a solidariedade real, o amor ao próximo correm o risco de se tornarem palavras vazias sobretudo na boca dos que se julgam seus representantes.

Perdoem-me os leitores na insistência sobre o mesmo tema que abordei há semanas. Novos capítulos dessa velha história aconteceram, novas divisões se deram inclusive no interior da CNBB. Discórdias, opiniões diversas se manifestaram mostrando a complexidade e as fraturas da chamada unidade institucional. Além disso, o grito público das organizações de mulheres de todo país afirmando que ‘criança não é mãe e estuprador não é pai’ ressoam em nós convidando-nos à reflexão desde nossas entranhas.

Senhores bispos e magistrados, me doem as entranhas femininas quando me lembro de Leonor, 16 anos, usuária de drogas engravidada na rua. Não lhe permitiram interromper a gestação em tempo hábil e na hora do parto levaram-na a uma maternidade e depois lhe roubaram o bebê recém-nascido para a adoção sem permitir que ela o visse. Passaram-se já três anos e ela ronda a cidade, as delegacias, os hospitais para descobrir onde está o filho e como poderia recuperá-lo. Sua dor é do tamanho de seu mundo!

Depois lembro-me de Mocinha, 13 anos, estuprada pelo padrasto, não lhe permitiram a interrupção legal da gravidez... Morreu com seu bebê. E ainda me lembro de Anita, 5 filhos, desempregada que numa noite de aventura engravidou do sexto filho... Conseguiu interromper a gravidez e acometida de hemorragia sem controle foi levada ao hospital e maltratada pelo corpo médico acusada de assassina. Ah! sim ainda me lembro de Angélica filha de um eminente advogado que engravidou sem querer, mas tudo se resolveu em surdina pois o pai e a mãe providenciaram uma clínica de primeira linha e nada se soube do acontecido.

Quem são os ‘assassinos’ em nosso louco e perverso mundo? Quem são os que atentam contra a vida destruindo povos inteiros em busca de lucro fácil e barato? Que responsabilidade têm as religiões e as Igrejas nessas mortes premeditadas pela exploração de minérios? No entanto os bem situados socialmente se arvoram a ser os defensores da vida apenas quando se trata de mulheres pobres e meninas vítimas indefesas que a estupidez humana levou a situações insustentáveis.

Os senhores e senhoras que folheiam a Bíblia e livros de Direito não se dão conta da dor alheia, não convivem diretamente com a dor das calçadas e periferias, não sentem a vida em corpo de mulher. Apenas folheiam papéis, dão bênçãos mas não sustentam os corpos ensanguentados, não os tocam, não os amparam em seus braços, não sentem seu cheiro, suas lágrimas e lamentos. O que os leva de fato a agir dessa maneira tão fria e legalista?

Querem regular os corpos das mulheres em nome do bem que julgam ser o melhor caminho para a vida humana. Querem obedecer a textos escritos, a palavras de ordem quer sejam declaradas divinas, quer sejam do magistério jurídico ou eclesiástico. Mas o que é mesmo o bem? De fato é o que os senhores consideram bem e não o que nós mulheres consideramos o bem frente a certas dificuldades e limitações da vida. Quem tem a razão? Seria sua razão fria ou nossos corpos feridos?

Não seria melhor sair dessa disputa dualista que não leva a lugar nenhum? Não seria melhor sair desses argumentos absolutamente irrelevantes de quando começa a vida? Vida! O que é a vida?

Só conhecemos o bem às apalpadelas, isto é, o conhecemos julgando conhecê-lo ou apenas tentando fazer o que nos parece ser o melhor no momento da dor, da agressão, da infâmia sobre nossos corpos. Nessa linha mais uma vez os senhores escorregaram num legalismo ou em um juridismo de ocasião. Aplicar ideias sobre a dura realidade dos corpos e em especial das mulheres, usar argumentos e permissões legais de pouco conhecimento público para vencer disputas sobre realidades dolorosas parece merecer críticas pois se distanciam daquilo que se sente, do que se vive no cotidiano de muitas mulheres e homens. Nessa linha, os jornais publicaram que a CNBB pediu ao Supremo Tribunal Federal para anular o voto da ministra Rosa Weber, pronunciado em 2023 antes de sua aposentadoria. Seu voto era favorável ao aborto até a 12ª semana de gestação visto que queria favorecer a situação de milhares de mulheres, meninas, adolescentes e jovens em período de fertilidade em nosso país agredidas por homens irresponsáveis e violentos.

Infelizmente a oficialidade da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) parece não estar a par de sua trágica situação e moveu-se nos bastidores dos poderes judiciários da república para anular o voto da ministra através de uma competente jurisprudência de ocasião favorecendo grupos elitistas do país que têm uma luta política aberta contra os direitos e a emancipação das mulheres do jugo patriarcal. Esqueceu-se de seu lugar próprio e de sua função social de acolhida e misericórdia. Sua fixação no controle dos corpos femininos é um desarranjo de seu velho mundo cultural religioso como se nossos corpos fossem o último bastião de manutenção de sua dominação e da vontade divina de um deus à sua imagem e semelhança.

Espanta-me a pouca análise crítica que esses eminentes senhores têm da complexa realidade humana. Falam de realidade, mas movem-se nas ideias abstratas e na inconsistência de suas teorias religiosas frente a realidade da destruição de nossos corpos. Espanta-me como não permitem que a sagrada dúvida assole suas convicções e suas visões patriarcais do mundo.

Embora saibamos que não são afeitos às teorias feministas sobre gênero não é fácil admitir que também não percebam que seu modo hierárquico patriarcal de vida valoriza e legitima a dominação e o controle sobre as pessoas. E mais, que a religião cristã em sua pregação sobre a vontade de Deus e sobre a obediência a ela desenvolveu a valorização das hierarquias masculinas em detrimento das mulheres, provocou as guerras ‘santas’ que não são apenas do passado, mas expandem-se no presente nas atitudes que os senhores têm mantido em relação às mulheres e aos marginalizados pela diferença. Basta constatar a sua tentativa de interferência descabida nos votos e nas decisões do Supremo Tribunal Federal alegada como constitucional. Os senhores como ‘amicus curiae’ se utilizam desse artificio jurídico para continuar sua incansável misoginia, às vezes disfarçada em valorização da vida em geral e em especial da vida das mulheres segundo o modelo que sua tradição lhes impõem.

Infelizmente o poder no mundo católico institucional e em outros espaços se mantem a partir do medo dos corpos femininos justificada a partir de uma abstração masculina de Deus, confirmada por um dogmatismo cristológico personalista que exclui as mulheres de real representatividade. Temem que os muitos corpos de Eva possam ameaçar sua instável segurança.

Não se trata mais de convocar novos Concílios para tomar decisões de ordem mundial e menos assembleias nacionais para declarar sua opção pelos pobres. Trata-se de sair às ruas, sem vestes e sem títulos, aproximar-se das crianças violadas, das mães que choram diante da fome e do desabrigo, da falta de cuidados médicos numa nação que produz miséria material e espiritual para milhares de seus membros apesar dos esforços de muitos.

Além disso, a interferência dos senhores no STF parece descabida e até desrespeitosa de uma mulher da qualidade da juíza Rosa Weber. Como se atrevem a solicitar a anulação de seu voto? Que juristas os incentivam de fazê-lo inventando toda sorte de argumentos para fazer valer suas ideias que escondem suas verdadeiras intenções?

Os senhores parecem valorizar mais suas ideias a fim de controlar a vida dos que pensam de forma diferente, negar-lhes o direito a ser artesãs das leis que regem seus corpos especialmente quando se trata dos corpos femininos.

Tenho esperança de que o STF não acate um pedido tão desrespeitoso do momento atual como o feito pelos senhores. Sem dúvida, mais uma vez vão argumentar que estão defendendo a vida. Porém, essa defesa da vida é apenas um artificio de pensamento, não toca a realidade das vidas de fato violadas, não toca as feridas das meninas expostas à morte numa população carente de tantas necessidades.

Não se pode escolher o bem ideal segundo a pregação dos senhores. Na realidade, qualquer escolha inclui o seu oposto. Essa é nossa condição no momento. Por isso caminhamos às apalpadelas na tentativa que nossos passos não nos deixem cair e não resvalemos com as pedras do caminho que estão atirando sobre nós.

Quando estarão dispostos a sair de suas concepções hierárquicas? Quando cessarão de identificar o Evangelho a suas leis perfeitas, a seus báculos e mitras, as suas pregações para um mundo idealizado? Quando deixarão de se considerar os condutores da verdade? Quando deixarão de identificar suas ações às de Jesus através de suas interpretações estáticas muitas vezes atravessadas de vontade de poder e reconhecimento?

É desolador ver algumas políticas atuais da CNBB de hoje tão concentradas na acusação dos corpos das mulheres e nas proibições que lhes endereçam. É lamentável ver as religiões servas das políticas as mais reacionárias e excludentes!

Mais uma vez, o que move suas ações? O que move seus corações? Os senhores são poucos, apenas um punhado de homens célibes frente a uma quantidade imensa de mulheres que se manifestam pelo país todo, pelo continente e pelo mundo exigindo o respeito a seus corpos e a seus direitos. Por que não as escutam? Por que seus clamores não causam efeito sobre os senhores? Por que nos temem?

Parecem de fato temer-nos. Parecem meninos medrosos que precisam de suas armas legais ou de suas fantasias religiosas para afirmarem-se como superiores e abafar qualquer manifestação em contrário a seu poder estabelecido em nome de seu deus... A que senhores os senhores obedecem?

Sem querer ou querendo muitos dos senhores aliam-se aos poderosos e seguem conspirando para que nos apedrejem, para que sejamos crucificadas, para que nos calem, para que nos matem. Os senhores não sabem o que fazem... Ou sabem?

Na calada da noite entregam as mulheres para seus algozes, buscam testemunhas contra elas e não hesitam em gritar: ‘crucifiquem-nas, crucifiquem-nas’!

Mas, apesar de vocês agora é outro dia... Anunciamos nossa ressurreição com as ressuscitadas/os. Somos parte das que não temem ir aos túmulos, de entrar, de sentir os odores das dores, de espantar-se, de chorar e sair nos organizando sempre mais para que a vida que nos habita seja respeitada e amada.

Vejam: nós estamos ressuscitando... Movemos a pedra... As trevas começam a dissipar-se...

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fonte: https://www.ihu.unisinos.br/641389-a-questao-do-aborto-o-stf-e-a-cnbb-artigo-de-ivone-gebara

 


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