Quase lá: Crescimento e protagonismo feminino marcam edição de Encontro Continental de Harvard na USP

Crescimento e protagonismo feminino marcam edição de Encontro Continental de Harvard na USP

Evento do Instituto de Pesquisas Afro-Latino-Americanas chega à USP com sua maior edição

Texto: Guilherme Ribeiro e Maria Julia Trombini*

Arte: Joyce Tenório**

Jornal da USP - Publicado: 12/07/2024
 
 Encontro Estudos Afro Latinos 24

“Os estudos afro-atino-americanos são importantes subsídios para a construção de políticas públicas, e podem contribuir de forma direta para a garantia e ampliação de direitos”, diz Patricia Oliveira de Carvalho, advogada e participante do evento – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

 

O Encontro Continental de Estudos Afro-Latino-Americanos do Alari (Afro-Latin American Research Institute), instituto de pesquisa da Universidade de Harvard (EUA), chegou à USP em sua terceira edição. O encontro na Faculdade de Direito (FD) da USP reuniu, entre os dias 10 e 12 de julho,  uma ampla comunidade de artistas, ativistas, acadêmicos e pesquisadores de diversas universidades do mundo todo para discutir uma gama de temas relacionados ao campo de estudo afro-latino-americano.

Esta foi a  primeira vez que o evento aconteceu longe de Harvard, e a FD  foi a escolhida para sediar o 3° Encontro Continental de Estudos Afro-Latino-Americanos do Alari 2024. O encontro do Alari chegou à USP por meio de uma colaboração entre as duas universidades e o comitê de organização, mediado pela professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, Márcia Lima, atual secretária do Ministério da Igualdade Racial, que compôs a organização das duas edições anteriores. 

Rogério Monteiro, do comitê executivo do evento, comentou sobre a decisão de trazer o encontro para a USP. “A organização do Alari notou que nos primeiros eventos, a maioria dos participantes não era dos Estados Unidos, mas sim da América Latina. Assim, chegaram à conclusão de que deviam fazer esse encontro circular. Após essa edição que aconteceu na USP, a previsão é de que o evento se desloque por outros países”, afirmou o diretor do Departamento de Mulheres, Relações Étnico Raciais e Diversidades da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP) da USP.

Ele também destacou a importância do encontro para  pesquisadores e pesquisadoras das temáticas etnico-raciais brasileiras e latino-americanas. Também para a comunidade de negros e negras na cidade de São Paulo. “Quem andou pelos corredores da Faculdade de Direito pôde perceber a diversidade do público, de dentro e fora da universidade, de acadêmicos negros e negras, discutindo uma série de temas, em uma perspectiva interdisciplinar. A universidade ganhou muito ao acolher e apoiar o evento”, elogiou.

ALARI

Criado em 2013, o Instituto de Pesquisas Afro-Latino-Americanas, localizado no Centro Hutchins de Pesquisas Africanas e Afro-Americanas da Universidade de Harvard, é a primeira instituição de pesquisa dos Estados Unidos a focar nesta área de estudos. 

Com foco nas histórias, culturas e experiências de pessoas de ascendência africana na América Latina, esta esfera multidisciplinar inclui o estudo de pessoas de ascendência africana na América Latina, suas culturas, histórias e contribuições, bem como a pesquisa mais ampla das sociedades em que essas pessoas vivem. O campo originou-se em paralelo a uma onda de movimentos sociopolíticos e culturais racialmente definidos que transformaram o modo como os latino-americanos pensam sobre sua região, cultura e história.

Visando expandir a pesquisa e o ensino sobre este campo acadêmico em ascensão, o Alari  estimula e patrocina pesquisas a respeito da experiência afro-latino-americana, oferecendo um fórum em que acadêmicos, pesquisadores e ativistas possam debater e trocar conhecimento.

O Encontro Continental, que estreou em 2019 na própria universidade, é uma das iniciativas da instituição para alcançar este objetivo. O workshop de teses Mark Claster Mamolen e o Grupo de Estudos em Escravidão Comparada são outros projetos do instituto que se destacam.  

Na primeira edição, que aconteceu em dezembro de 2019 na Universidade de Harvard, em Cambridge, nos Estados Unidos, a Conferência recebeu 572 inscrições prévias para painéis e trabalhos individuais. Dos inscritos, 200 palestrantes estiveram presentes para compartilhar seus trabalhos e debater sobre os assuntos. Com um intervalo causado pela pandemia de covid-19 o encontro voltou a acontecer no final de 2022 também na sede da universidade, e reuniu mais de 260 estudiosos e ativistas para discutir pesquisas e iniciativas sobre justiça racial e inclusão.

Com a chegada do evento ao Brasil, o crescimento foi exponencial. De 260 palestrantes que estiveram presentes na edição anterior, o terceiro encontro recebeu cerca de 1.700 pessoas incluindo ouvintes, painelistas, moderadores e coordenadores, das 1.935 inscrições prévias.

A expansão é um dado significativo, não só para o evento em si, mas também para demonstrar a realidade dos pesquisadores. Das inscrições, 66% dos candidatos se identificaram como pessoas negras, 67% como mulheres e 51% como mulheres negras, ou seja, são quase 1.300 mulheres e cerca de 980 mulheres negras que se inscreveram previamente para participar do evento. 

Patricia Oliveira de Carvalho, advogada e mestre em Direitos Humanos pela FD, celebrou os dados de perfil do evento: “É um indício do protagonismo das mulheres nas pesquisas deste campo. Podemos relacionar isso aos índices que temos aqui no Brasil, em que mulheres são a maioria na graduação, e nos títulos de mestrado e doutorado, e também do crescimento de pessoas negras na universidade, graças à política de cotas”.

Patricia Oliveira de Carvalho - Foto: Currículo LattesPatricia Oliveira de Carvalho - Foto: Currículo Lattes

O encontro

Este congresso é recorde de público dentro da Faculdade de Direito quando falamos deste tipo de evento”, observou Celso Campilongo, diretor da FD, em texto de Kaco Bovi. - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
 

Durante os três dias do evento,  o Largo de São Francisco, no centro da capital paulista, ficou ainda mais movimentado. A terceira edição do Alari contou com um total de 241 painéis, 29 mesas redondas além de 24 livros e 14 filmes apresentados. A conferência também ofereceu uma feira culinária com o comércio de comidas típicas de diferentes países da américa latina.

Luciana Dadico - Foto: Cecília Bastos/USP ImagensLuciana Dadico - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

O evento reuniu pesquisas e produções acadêmicas de diversas universidades, nacionais e estrangeiras, organizadas sob diferentes recortes temáticos, como saúde e ecologia, memória e patrimônio, cultura, educação, violência e experiências de gênero. Todos os debates eram abertos ao público, sem necessidade de registro prévio.  

“Esse evento é  uma oportunidade fantástica para apresentarmos nossos trabalhos e discutirmos essas questões absolutamente relevantes. É fundamental o diálogo que a universidade estabelece com a sociedade, que queremos que seja cada vez mais ativo, para que a gente possa se fertilizar mutuamente”, disse Luciana Dadico, professora na Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT).

Ela veio a São Paulo acompanhar um grupo de orientandos que expuseram pesquisas e trabalhos produzidos no Laboratório de Pesquisa em Interseccionalidades das Relações Sociais e Estudos Culturais da UFMT, do qual Luciana é líder. “Nós nos dividimos. Cada um está participando de uma atividade, mas depois a gente se reúne e troca essas experiências sobre o que cada um assistiu. Já tivemos contato com professores da USP, da Universidade Federal da Bahia, dos EUA e da Colômbia. Estamos tentando acompanhar os temas de interesse da nossa área e efetuar essas trocas dentro do nosso grupo”, contou a professora.

Pesquisadores do próprio Alari também participaram das atividades, como é o caso de Noga Marmor. Ela é doutoranda no departamento de História de Harvard e contou que conheceu e juntou-se ao grupo de estudos após trabalhar com o professor Alejandro de La Fuente, diretor do Alari. 

“Eu considero o Alari como minha casa acadêmica, mas não-acadêmica também, porque foi lá que eu conheci a maioria dos meus colegas de faculdade. É um lugar bem interessante, pois é um centro interdisciplinar, que conecta as pessoas que se interessam pela história afrodescendente latinoamericana”, descreveu  Noga

A historiadora desenvolve estudos sobre as pessoas escravizadas pela Coroa Espanhola durante o século 18  e explica sobre a importância dos estudos que se dedicam a explorar características particulares da história sócio-política latinoamericana e da difusão desse conhecimento para além do próprio continente. 

“Os europeus não conhecem essas histórias. Por exemplo, poucos espanhóis sabem que o rei da Espanha era dono de pessoas escravizadas. Muitos não sabem que tinha escravidão na Europa e acham que era algo só das Américas. É muito importante divulgar essas histórias na Europa e no mundo todo.  Eles talvez não vejam como parte da História deles. Já é tempo de se discutir isso. No Brasil, há muito interesse nesses estudos, diferente de outros países. Acredito que com mais educação, o interesse vai consequentemente aumentar também”, argumentou  Noga.

Noga Marmor - Foto: Cecília Bastos/USP ImagensNoga Marmor - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Painéis, mesas, trabalhos e debates

O primeiro dia de evento contou com uma cerimônia de abertura no final da tarde que reuniu figuras importantes do debate racial. Nomes como Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial; Silvio Almeida, ministro dos Direitos Humanos; Francia Márquez, vice-presidente da Colômbia; e as ministras colombianas Aurora Vergara e Yesenia Olaya, participaram remotamente do debate de abertura sobre Políticas Públicas e Inclusão.

Francielle Elisabet Nogueira Lima - Foto: Cecília Bastos/USP ImagensFrancielle Elisabet Nogueira Lima - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Durante os três dias de apresentações e discussões, mais uma vez o destaque feminino, com um total de 159 propostas dentro do campo dos estudos de gênero e feminismo. Feminismos negros, desigualdade de genero, feminilidade e espiritualidade, foram  alguns exemplos dos temas discutidos.

Francielle Nogueira Lima, doutoranda da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), trouxe o seu trabalho sobre justiça reprodutiva para o painel temático sobre acesso ao aborto legal e comentou sobre a relação de seu tema com a proposta do evento. “Esse impedimento do acesso ao aborto legal é algo que atinge ainda mais diretamente mulheres racializadas. Pesquisas que quantificam e qualificam dados podem orientar políticas públicas e outras ações de interesse a esse público”, disse.

O evento também cedeu espaço para discussões fora do âmbito da pesquisa e mais próximas da realidade diária que se enfrenta no Brasil e no mundo. Um exemplo foi a mesa redonda que debateu a violência policial, que foi articulada pelo movimento independente Mães de Maio, coletivo formado por uma rede de mães, familiares e amigos de vítimas da violência do Estado. 

Quem discursou na mesa foi Débora Maria da Silva, mãe de Edson Santos, assassinado nos ataques no litoral paulista em maio de 2006. Débora é fundadora e coordenadora do movimento e pesquisadora do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Em seu discurso, ela  reiterou que as universidades devem ser locais de luta e de resistência antirracista, e que temas como estes não devem ficar apenas na sala de aula, mas também serem colocados em prática dentro da comunidade. 

“O Estado trata as pessoas negras e periféricas como inimigos, então nós devemos fazer o nosso papel de levar conscientização, conhecimento e educação política para essas pessoas. Precisamos reintegrá-las à sociedade”, afirmou Débora em entrevista ao Jornal da USP. “O racismo é mundial e estrutural, então eventos como esse precisam acolher as pessoas da quebrada para mostrar que elas também podem ocupar esses espaços”, completou.

Débora Maria da Silva na mesa redonda do movimento Mães de Maio - Foto: Guilherme Ribeiro

Palestrantes do evento também aproveitaram o tempo fora de seus painéis para contemplar o trabalho de seus colegas e participar de debates além de seus próprios temas. Como foi o caso de Rosane Pereira Marques, doutoranda do programa de educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), que durante o painel apresentado por Noga Marmor esteve como ouvinte e aproveitou para fazer perguntas, como “O que te move como pesquisador?”.

Respondendo a própria pergunta: “O que move ser um pesquisador negro é a vontade de dividir e repassar nossas experiências e conhecimentos para a comunidade. E é como fala Angela Davies ‘Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela’, e é isso que vemos aqui”, pontuou a pesquisadora.

"Em eventos como esse nós vemos que a pesquisa brasileira não deve nada para a pesquisa internacional, aqui se produz muito conhecimento e de muita qualidade”

 
...