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PROGRAMA INSTITUCIONAL 2023-2026 (em processo de elaboração)

Resgate da democracia com o ativismo feminista voltado à retomada e construção de direitos e espaços de autonomia com destaque na defesa e garantia dos direitos sexuais e produtivos e da justiça reprodutiva, cuidado e autocuidado entre ativistas, recriação e reinvenção de ambientes educativos livres, coletivos e abertos

 

 

Nosso Sonho

Uma sociedade onde as mulheres sejam respeitadas como sujeitos em sua integralidade, com seus direitos humanos garantidos e sua autonomia afirmada. Que sejam reconhecidas em sua capacidade de propor alternativas – pautadas em princípios de liberdade, justiça, reparação, autonomia, solidariedade, cuidado, bem viver – para uma sociedade livre da exploração do nosso corpo, do trabalho e dos bens comuns, livre das opressões patriarcais, racistas e capitalistas e de todas as formas de desigualdade e preconceito.

 

Nossa Missão

Contribuir para amplificar as vozes dos movimentos feministas no Brasil e na América Latina na luta por direitos e na construção de um projeto de sociedade libertária, justa, com igualdade de direitos, não hierárquica, livre de opressões, com respeito e garantia aos bens comuns e na promoção de diálogos interculturais com a conformação de ambientes educativos que potencializem a criatividade, a identidade, a espiritualidade, a sexualidade, que reconheçam a história de luta dos movimentos, coletivos e das pessoas respeitando suas escolhas e decisões sobre o próprio corpo e desejos.

 

Nossa estratégia

Contribuir para a sustentabilidade do ativismo feminista antirracista, fortalecendo as lutas e a ação política dos movimentos de mulheres por meio de processos contínuos de formação política; da promoção do autocuidado e cuidado coletivo entre ativistas reconhecendo essa ação como prioritária re-existência e à melhoria das condições subjetivas e objetivas de vida das mulheres em geral e das ativistas e defensoras de direitos; de ações de incidência política para a garantia de direitos e resistência para a efetivação de direitos; do estímulo à produção coletiva de conhecimento, promovendo a comunicação e articulação entre sujeitos e organizações feministas e de mulheres, respeitando os saberes diversos de ativistas, coletivos e comunidades (periféricas, indígenas, camponesas, trabalhadoras, ribeirinhas, quilombolas), da ancestralidade e das juventudes em seus territórios e nas inter-relações entre eles sem hierarquização ou dominação.

 

  1. Apresentação

 

O mundo vive momentos de grandes desafios, dificuldades e incertezas. As mudanças climáticas não são mais algo a se considerar para o futuro. E os alertas da ciência não estão sendo considerados.

Mesmo que desde o fim da Segunda Guerra Mundial, conflitos regionais e crises periódicas venham colocando o mundo em estado de medo constante. Umas regiões mais que outras. Em 2022, o início da campanha militar da Rússia contra a Ucrânia está simbolizando a possibilidade do início de um novo processo geopolítico, substituindo os recorrentes e constantes conflitos bélicos pontuais por processos de maior escala, inclusive com a possibilidade de uso de artefatos nucleares. De qualquer sorte, resolvendo-se ou não o conflito no leste da Europa, estabelecendo-se ou não uma falsa ou real entente provisória, o conflito afetará grandes porções das populações mais pobres do planeta com o aumento nos preços dos alimentos e a consequente insegurança alimentar.

No Brasil a fome veio antes da guerra. A esperança é que o novo governo minimize seu alcance com o estabelecimento de uma política ativa que seja mais completa que a transferência de renda para uma parcela da população.

Em todos esses cenários. Mudanças climáticas. Guerras. Fome. São as mulheres as mais afetadas. Sofrem por outras violências que nos são tão ou mais drásticas que os efeitos da guerra e a fome.

No Brasil, as violências são várias. Mulheres de comunidades periféricas e favelas, vivem o terror diário de não saberem se seus filhos voltarão no final do dia. As mortes são tantas que são reconhecidas como genocídio de jovens negros. As mulheres são as primeiras ameaçadas por milícias e grupos paramilitares nas aldeias indígenas, nos territórios de quilombos, nas áreas de acampamento e ocupação de sem-terra.

Essas realidades se entrecruzam com o reavivamento de políticas ultraconservadoras e fundamentalistas que têm em comum o combate aos direitos das mulheres, consideradas por eles como culpadas de uma suposta fragilização da família e dos valores de suas religiões. É a reação do patriarcado ao crescimento dos direitos humanos das mulheres.

Os ataques aos direitos humanos das mulheres têm se manifestado de forma cruel em 2022 contra meninas que foram violentadas e tiveram o processo de aborto legal bloqueado e manipulado, até mesmo por membras do Ministério Público e do Judiciário. A mobilização das feministas e a denúncia nos meios de comunicação acabaram por fazer garantir a interrupção da gravidez em alguns casos, mas alertou a todas que muitos outros casos podem existir, assim como se sabe que o número de abortos ou hospitalizações motivadas por abortos é muito maior que o registrado oficialmente.

É importante observar que desde 2019, quando pela primeira vez o Fórum Brasileiro de Segurança Pública conseguiu separar os dados do crime de estupro do crime de estupro de vulnerável, foi possível enxergar que 53,8% desta violência era contra meninas com menos de 13 anos. Esse número sobe para 57,9% em 2020 e 58,8% em 2021. De 2020 para 2021 observa-se um discreto aumento no número de registros de estupro, que passou de 14.744 para 14.921. Já no que tange ao estupro de vulnerável, este número sobe de 43.427 para 45.994, sendo que, destes, 35.735, ou seja, 61,3%, foram cometidos contra meninas menores de 13 anos (um total de 35.735 vítimas). Quanto à característica do criminoso, esta continua a mesma: homem (95,4%) e conhecido da vítima (82,5%), sendo que 40,8% eram pais ou padrastos; 37,2% irmãos, primos ou outro parente e 8,7% avós[1].

Abre-se, porém, um período de esperança (como simbolizou a personagem da campanha  do Cfemea voltada às mulheres que ainda não tinham decidido seu voto nas eleições de 2022). Lula venceu Bolsonaro. Conseguindo fazer frente a uma avassaladora campanha da extrema-direita de promoição do medo e que usou sem qualquer restrição a máquina pública, policial e militar para amedrontar e cooptar a população mais vulnerável com recursos orçamentários e outros dinheiros, o candidato da oposição acabou vencendo. Ganhou novamente as eleições Luiz Inácio Lula da Silva. Por meio de uma coligação que reuniu setores políticos e ideológicos muito heterogêneos.

Com o resultado dessas eleições presidenciais, o Cfemea entende que vivemos um novo momento. É tempo de refundação, revalidação de valores democráticos, libertários, justos, equânimes, de afirmação de projetos políticos radicalizados em princípios pelos quais tanto lutamos e desafiamos. Faz-se necessário fortalecer e propiciar espaços, momentos, intercâmbios para ações pensadas, elaboradas juntas com ativistas de diferentes movimentos, lugares e países para compartilhar, ouvir, aprender, refazer e agir diante dessa conjuntura política tão desafiadora.

No programa institucional anterior, essas palavras significavam que precisávamos nos preparar para a resistência. Agora, o sentido é outro. A exigência é outra. A reconstrução da democracia e dos direitos é um desafio que vai exigir muito da capacidade de mobilizar, de negociar, de produzir acordos, de contestar e resistir à cooptação.

A atualização do programa institucional do Cfemea tem o sentido de reafirmar a luta pelos direitos das mulheres e sustentar o ativismo feminista, impulsionando três linhas de ação, além do próprio fortalecimento institucional e da gestão colaborativa com responsabilidade: a) fomentar o autocuidado e o cuidado entre ativistas; b) fortalecer as lutas em defesa da democracia e dos direitos sexuais e reprodutivos, por autonomia e igualdade, por justiça reprodutiva; e, c) reafirmar a Universidade Livre Feminista como espaço viável de educação, cooperação, pesquisa, construção de conhecimento e difusão, articulada com um processo de comunicação ativa, movimentista e corajosa.

A primeira linha de ação do Cfemea diz respeito ao fortalecimento das redes de autocuidado e cuidado entre ativistas, reconhecendo também a importância de criar mecanismos de proteção das ativistas que lutam pelos direitos das mulheres. O cuidado entre ativistas é estratégico para a sustentabilidade das nossas lutas. 

Como principal resultado dessa linha almejamos que o autocuidado e cuidado entre ativistas, medidas de segurança e redes de solidariedade sejam incorporadas nas práticas das articulações feministas das quais somos parte, fortalecendo a capacidade de ação dos movimentos e ativistas.

A segunda linha trata do fortalecimento das lutas em defesa da democracia, pela garantia e aplicação dos direitos sexuais e reprodutivos, da justiça reprodutiva e por autonomia e igualdade que se impõem diante de um contexto político que continua a ameaçar várias conquistas feministas em termos de direitos e políticas públicas para as mulheres, exigindo, por isso mesmo, estratégias e sujeitos políticos coletivos.

Como principal resultado dessa linha está o fortalecimento das articulações e lutas feministas em ações nacionais e territoriais contra a ofensiva conservadora antidireitos, fascista, militarista e fundamentalista que ainda persiste no Brasil e em grandes parcelas do planeta.

A terceira linha tem como objetivo dar um salto qualitativo e quantitativo nos processos formativos de política feminista que fortaleçam as lutas dos movimentos de mulheres na resistência à perda de direitos e pela afirmação de novos direitos. O desafio é encontrar formas de mobilizar e trazer para a Universidade Livre Feminista não só as ativistas e membras de movimentos feministas consolidados, mas as jovens que não tiveram ainda contato com o feminismo e com as lutas por direitos, também as mulheres que foram isoladas e impedidas de se agrupar, as mulheres que nunca tiveram acesso à educação política e cidadã. O que a Universidade Livre Feminista representa de novidade, desde sua proposta inicial, é a vontade de ampliar o movimento e a ação feminista para além das fronteiras atuais, incorporando ao debate, ao coletivo e ao cuidado comum, parcelas que foram afastadas da luta por direitos, mas que continuam carregando a vontade de liberdade.

Para sustentação dessas linhas, unindo os fios, o Cfemea está reformulando sua forma de fazer comunicação. Será um processo muito mais ativista, mas movimentista e colaborativo. Reformulamos nosso portal neste final de 2022 e planejamos continuar sua transformação, com a proposta de transformar a comunicação do Cfemea mais ligada às linhas de ação e como ferramenta de colaboração, tanto engajando as ativistas da entidade, quanto aquelas que estão próximas e vão se aproximar. A comunicação, mais que uma forma de difundir o que foi feito, está sendo articulada como processo de formação política, criação de laços e ampliação do alcance das ideias e projetos.

Outro fio que transpassa o tecido das ações é a modernização da gestão administrativa e financeira do Cfemea. O que estamos iniciando é uma mudança de cultura organizacional, com a informatização dos processos, a adoção de plataformas informatizadas que auxiliam a gestão democrática, horizontal e transparente. Ao mesmo tempo, estamos adotando mecanismos formais de administração de contratos e contratações com critérios, saindo da informalidade e do voluntarismo.

O principal resultado dessa nova formulação é o fortalecimento do movimento feminista autônomo, crítico, criativo e antissistêmico. Nossa estratégia central: Contribuir para a sustentabilidade do ativismo feminista e antirracista, fortalecendo as lutas e a ação política dos movimentos de mulheres por meio de processos contínuos de formação política; da promoção do cuidado entre ativistas e de ações de incidência em defesa dos direitos humanos das mulheres; do estímulo à produção coletiva de conhecimento, promovendo a comunicação e articulação entre sujeitos e organizações feministas.

  1. Conjuntura política e social

Nos últimos anos, desde o golpe de 2016, quando uma conjunção de forças conservadoras, empresariais, militares, religiosas fundamentalistas e com fortes componentes internacionais se articularam com setores de direita e extrema-direita para produzir o impeachment da presidenta eleita e posterior prisão do mais forte candidato à presidência da República, o Brasil viveu momentos de retrocesso de direitos e ataques às condições de vida das populações mais vulneráveis.

Nesse período, grande parte da população trabalhadora acabou perdendo seus empregos e viu-se conduzida à condições de absurda precarização de trabalho, sem direitos e com renda reduzida a níveis miseráveis. Em 2020, mais da metade da força de trabalho do país estava desempregada e sub-ocupada[2], em 2022 a maioria das pessoas desempregadas são mulheres[3]. A superexploração do trabalho, acompanhada da fragilização das organizações sindicais e de defesa dos direitos, abriu caminho para o retorno da insegurança alimentar[4], em meio a um processo de rápida escalada da violência contra as mulheres, contra as populações periféricas e contra os movimentos camponeses, quilombolas e indígenas, com a ampliação dos territórios controlados por grupos paramilitares articulados a organizações do tráfico de drogas e com ligações com instituições do Estado no Poder Executivo, Poder Legislativo e até Poder Judiciário.

Em 2018, a vitória eleitoral da extrema-direita que recorrentemente cultuava a ditadura militar, a tortura e o extermínio como métodos políticos válidos e necessários, colocou o país em um tipo de articulação extremista internacional e o retirou dos palcos democráticos, também no que se refere  ao combate do que chamam de “ideologia de gênero”. O governo Bolsonaro tornou o Brasil uma ponta de lança importante do ultraconservadorismo familista no país e no âmbito global, atacando os direitos LGBTQIA+, as leis e políticas voltadas ao enfrentamento das desigualdades de gênero, bem como as questões relacionadas à sexualidade nos campos educacional e de saúde.  

O governo que se construiu nos últimos anos a partir da base de uma necropolítica fundada na liberdade total para a destruição do meio ambiente, invasão da mineração predatória em terras indígenas, privatização de biomas e territórios frágeis localizados em manguezais, nas margens de rios e igarapés, ampliou os lucros do agronegócio com base na monocultura que se reproduz a partir da concentração da renda e que gera fome internamente no país.

Essas condições se mesclaram com uma política negacionista durante uma das maiores pandemias da história, o que levou à morte de 680.000 pessoas no Brasil, 2/3 das quais poderiam estar vivas hoje, mortes que teriam sido evitadas se medidas sanitárias fossem adotadas e a vacinação não fosse impedida e adiada ao extremo pelo governo federal. Mais de 400.000 mulheres, homens, crianças, que têm nome, história, ligações de afeto, história e que teriam futuro.

Os ataques e retrocessos de ordem política, social e econômica atingiram fortemente as mulheres e mais explicitamente as mulheres negras e da periferia. Foram as mulheres as que estiveram à frente dos processos de mitigação das consequências da fome, do desemprego e aumento da miséria. Sobre suas costas é que se manifestaram as consequências das mortes de seus familiares, do empobrecimento de suas famílias, do crescimento da violência urbana e social, de cunho racista e com características de extermínio.

As mulheres compuseram a primeira linha de resistência em meio à fome, ao desemprego e contra a violência. Asseguraram a capilarização da solidariedade e do cuidado quando o distanciamento social se impunha e o poder público d defendia o lucro às custas das vidas e do sofrimento das grandes maiorias. De tamanha sobrecarga assumida pelas mulheres, notadamente as negras e periféricas, o resultado não poderia ser outro além da fragilização da saúde mental e das condições de existência daquelas que viram filhos, familiares, as pessoas de suas comunidades sendo mort@s pela pandemia ou executad@s por agentes do Estado (pena de morte sem julgamento) e milícias paramilitares. O mesmo processo se deu com as mulheres que passaram a conviver com a ameaça permanente e cotidiana de invasão de seus territórios (indígenas, quilombolas e camponeses), submetidas a um estado de medo e pavor imposto por policiais, jagunços (paramilitares contratados por empresários) e por associação entre eles (Estado e grupos milicianos).

De forma crônica, o resultado do crescimento do desemprego, do aumento vertiginoso da fome e o espraiamento da miséria nas famílias das periferias urbanas e rurais, também recaindo sobremaneira nas costas as mulheres têm produzido os mesmos efeitos sobre a saúde mental e a capacidade de resistência das mulheres, o que torna urgente e essencial a construção e manutenção de espaços e estratégias de proteção, autocuidado e cuidado coletivo entre ativistas, assim como de políticas e orçamento públicos que sustentem a infraestrutura social do cuidado

A política ultraneoliberal, que se utiliza dos corpos das mulheres para operar um sistema político autoritário/fascista, combinou mecanismos de superexploração econômica com o fortalecimento de grupos religiosos fundamentalistas e organizações criminosas[5]. As forças fundamentalistas/extremistas religiosas funcionam como base ideológica para o controle de corpos (das mulheres), mentes e corações, os grupos paramilitares e criminosos funcionam como instrumento de controle físico e territorial, como assessores da aplicação da lei penal.

Os ataques aos direitos humanos das mulheres se manifestaram de forma cruel contra meninas que foram violentadas e tiveram o processo de aborto legal bloqueado e manipulado, até mesmo por membras do Ministério Público e do Judiciário. A mobilização das feministas e a denúncia nos meios de comunicação acabaram por fazer garantir a interrupção da gravidez em alguns casos, mas alertou a todas que muitos outros casos podem existir, assim como se sabe que o número de abortos ou hospitalizações motivadas por abortos é muito maior que o registrado oficialmente[6].  

As eleições realizadas no último trimestre de 2022 acabaram por impor uma derrota histórica ao projeto de dominação que marcou o país desde 2016. Lula venceu Bolsonaro, em que pese a mobilização de um grande volume de recursos do Estado com a distribuição e antecipação de transferência de renda para as populações mais pobres, como parte de uma ação nitidamente voltada à “compra de votos”, o uso e a proliferação desenfreada de “fake news”, o uso da violência por parte dos agentes do Estado e de instituições do Estado, como as polícias rodoviária e federal, a ameaça recorrente de mobilização política das Forças Armadas (golpe de Estado defendido abertamente pelo presidente da República e seus auxiliares) para garantir a permanência de Bolsonaro e a presença de chefes de igrejas neopentecostais fundamentalistas exigindo que pastores e amedrontando fiéis com o fogo do inferno.

A vitória eleitoral de Lula trouxe ao cenário político e social brasileiro um conjunto de desafios novos. Permanece enraizada na sociedade e no aparato estatal um setor de extrema-direita violenta e articulada, que se manifesta na eleição de um conjunto expressivo de parlamentares que poderão ou não apoiar pontualmente o novo governo, provavelmente a um grande custo. O mais importante estado brasileiro, São Paulo, deu vitória e um governador que representa a política derrotada na presidência da República. As Forças Armadas não foram responsabilizadas pelas ações de garantia política do governo de extrema-direita que demandava um golpe de Estado. E, para não se afastar das igrejas fundamentalistas, o presidente eleito acenou com posicionamento contrário ao aborto[7].

A conjunção de forças partidárias, eleitorais e sociais, mobilizadas para conformar a frente eleitoral que acabou vencendo as eleições presidenciais reúne desde a esquerda até uma direita que se confunde com personalidades e grupos econômicos que financiaram a extrema-direita. Uma frente muito ampla, heterogênea e diversa, que não garantirá segurança ou estabilidade do novo governo, nem possibilita ter confiança que um programa político com base no resgate de direitos e dos fundamentos da Constituição de 1988 seja adotado pelo próximo governo.

O novo período governamental trará aos movimentos sociais, e em especial aos movimentos feministas, exigências novas e muito diferentes dos períodos anteriores, mais desafiantes até que o período de transição da ditadura militar para a democracia limitada, que caracterizou o período de 1984 a 1987.

As mulheres e movimentos sociais vão ser instadas a produzir capacidades de construir alternativas democráticas de fortalecimento da cidadania, com participação social e política em processos que garantam direitos e que possibilitem a formação de consciências que considerem essenciais a superação do racismo, do machismo, do patriarcado e do controle violento de corpos e mentes. A pauta fundamentalista contrária aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres permanece ativa e vai pressionar o governo e as instituições a retroceder na garantia dos direitos já consagrados, como o aborto legal, quer tensionando o assunto no Congresso Nacional, quer pressionando para que o orçamento e as políticas  públicas de atenção integral à saúde das mulheres sejam reduzidos ao máximo, desfiguradas por uma orientação neomaternalista, estrangulando os hospitais e sistemas de saúde que garantem o aborto legal e o atendimentoàs gestantes em processo de abortamento.

O enfrentamento a esses desafios vai marcar o Programa Institucional do Cfemea para o período de 2023 a 2026 em vários conjuntos de ações prioritárias que definimos como processos que se articulam de forma lógica, política e instrumental como um único processo de incidência, comunicativo, formativo e de ativismo, mesmo que apresentado como grupos de atividades com títulos específicos, são linhas que tecem, com cuidado, a mesma tapeçaria feminista:

a) ação de incidência política institucional com ênfase no acompanhamento do Congresso Nacional na defesa, garantia e ampliação dos direitos sexuais e reprodutivos, com justiça reprodutiva; e na articulação de coletivos, movimentos e organizações feministas e de direitos humanos - para a democratização da democracia pela participação ativa das mulheres, consideradas em sua diversidade e enfrentadas as desigualdades de direitos que as separam. O acompanhamento do Congresso Nacional será aperfeiçoado com o uso de instrumentos de informação e comunicação para o ativismo na luta antirracista e antipatriarcal. A partir de pesquisas realizadas pelo CFEMEA durante e após o processo eleitoral de 2022, criaremos uma base de dados sobre cada um e cada uma das parlamentares eleitas, com o aperfeiçoamento dos meios de comunicação para difusão de informações e análises orientadas prioritariamente às entidades, coletivos e movimentos de mulheres e feministas;

b) produção de conhecimentos, de análises e estudos que possibilitem a criação e consolidação de processos, metodologias e práticas de proteção, autocuidado e cuidado coletivo entre ativistas, difusão de práticas e ações de solidariedade e de compromisso com a vida das ativistas feministas e defensoras de direitos humanos;

c) fortalecimento da Universidade Livre Feminista como espaço de compartilhamento de saberes e conhecimentos construídos e em construção pelo feminismo, na forma de processos formativos e educativos e de abertura de territórios lógicos, conceituais, espirituais e instrumentais livres, bem como de valorização de propostas e perspectivas feministas várias e múltiplas, periféricas, agroecológicas, de diálogo intercultural, antipatriarcais, decoloniais, antirracistas, anticapacitistas, contra a ordem cis-heteronormativa, com a busca da participação e do intercâmbio com entidades e movimentos feministas de todo o país, da América Latina e do Caribe, e dos países de língua portuguesa e com entidades e instituições similares de outros países;

d) construção de propostas comunicativas que possibilitem a interação política, cultural e de esperança sem hierarquias e imposições ideológicas que possam mobilizar grandes parcelas de mulheres, feministas e defensoras de direitos, com o desenvolvimento de projetos que possibilitem o intercâmbio de comunicação e experiências com outras entidades, coletivos e movimentos feministas, procurando abrir meios e garantir instrumentos e ferramentas para que feministas, coletivos e movimentos possam se apropriar dos espaços virtuais e informatizados disponibilizados pelo Cfemea e pela Universidade Livre Feminista.

 

Breve Histórico dos Programas Institucionais do Cfemea

 

Criado em 1989, por um grupo de mulheres feministas que assumiram a luta pela regulamentação de novos direitos conquistados na Constituição Federal de 1988, o Cfemea apresentou, em 1992, o “Projeto Direitos da Mulher na Lei e na Vida” (1992-1994), definindo suas principais diretrizes de trabalho. Em 1995, o Projeto Direitos da Mulher na Lei e na Vida é transformado no “Programa Direitos da Mulher na Lei e na Vida – Implementação de Beijing’95 e Cairo’94”, que vai orientar as ações do Centro até 2003. Nesse primeiro período a atuação do Cfemea está voltada para uma ação direta no legislativo federal.

Em 2003, com o novo contexto político brasileiro marcado pela eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, o Cfemea elabora um novo programa institucional intitulado “Democracia, Cidadania e Igualdade de Gênero”, que orientará os trabalhos até 2013. Nesse segundo período, além das ações desenvolvidas junto ao Legislativo, o Centro passa a atuar fortemente também junto ao Executivo Federal.

Em 2014, destacaram-se como linhas fundamentais de nossa ação a formação na ação política e a dimensão política do autocuidado e do cuidado entre mulheres, como nos expressamos à época: "O trabalho combinado das duas linhas de ação (formação e cuidado entre ativistas), permitirá ao Cfemea avançar na sua estratégia central de fortalecer a sustentabilidade do ativismo. Laboratórios, experimentações e processos sistemáticos de formação política são indispensáveis, fundamentais para avançarmos estrategicamente." Já antevíamos o acirramento de uma conjuntura que iria impactar a vida das mulheres e ameaçar a democracia, por isso foram definidas novas linhas de atuação, numa mudança estratégica pautada pela conjuntura política que reconhecia os preparativos para o golpe de 2016 (a recusa de aceitar o resultado das eleições de 2014 e as pautas de caráter golpista de uma articulação entre setores da direita liberal com a extrema-direita no Congresso Nacional), com o Cfemea voltando-se mais diretamente para o fortalecimento e sustentabilidade do ativismo feminista.

O programa institucional apresentado em 2019, já em um contexto de perda sistemática de direitos e enfrentando pautas ultra-conservadoras, se apresentou como um instrumento de resistência “Mulheres em movimento por autonomia e igualdade: formação política, cuidado entre ativistas e incidência-resistência feminista”. Um programa institucional que reconhecia a conjuntura de crise política, institucional e social, mas que também reconhecia o papel de resistência do feminismo na luta política nacional e internacional. "Avaliamos que o Brasil está imerso numa crise profunda. As últimas eleições não deixaram margem de dúvida sobre a força do fascismo na sociedade e no sistema político. O Brasil é parte de um cenário regional e internacional onde o contra-ataque conservador tem se realinhado ao ultraneoliberalismo para barrar as mudanças radicais produzidas no campo da sexualidade, dos direitos humanos, dos direitos civis da população negra, das mulheres e LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e intersexo) ocorridas no século XX. E para desmontar estados nações – via Golpes políticos - para impor lucro sem fim sobre vidas humanas, dizimando populações que vivem em territórios de disputa de mega projetos de “desenvolvimento”, para exploração de mineradoras, territórios também para expansão agropecuária e de monoculturas que ainda prevalecem como modelos econômicos que vão na contramão de modelos sustentáveis, que causam impactos severos ao meio ambiente e às populações locais, verdadeiras guardiãs da natureza e dos direitos de suas comunidades."

Não havia, porém, como se prever que os desastres da conjuntura política iriam se somar e se amplificar com uma pandemia que acabou por tirar a vida de 680.000 pessoas no país. Mais mortal que o vírus, foi a política negacionista e ultra-neoliberal.

O novo programa institucional tem por eixos orientadores a Resgate da democracia com o ativismo feminista voltado à retomada e construção de direitos e espaços de autonomia, defesa e garantia dos direitos sexuais e reprodutivos e da justiça reprodutiva, do autocuidado e cuidado coletivo entre ativistas, fortalecimento dos movimentos, coletivos e das articulações feministas e de mulheres, recriação e reinvenção de ambientes educativos e formativos livres, coletivos e abertos, fortalecimento, modernização democratização institucional do Cfemea, transversalidade da comunicação feminista e melhor uso de tecnologias da informação e da comunicação. Este programa institucional coincide com o período de tempo da gestão do novo presidente da República, em um tempo de muitas incertezas e esperanças, de tensões que não se resolveram nas eleições e novas que vão surgir no cotidiano de uma articulação governamental repleta de contradições e interesses que não se combinam.

Caminhos percorridos

Um dos principais motivos da criaçãodo Cfemea, em 1989, foi o desejo de acompanhar a elaboração de leis que viessem a regulamentar as conquistas da Constituição de 1988. As cinco mulheres que fundaram o Centro integraram a equipe do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), entre os anos de 1985 e 1988, e acompanharam todo o trabalho da Assembleia Constituinte (1986-1988).

Até 1992 o trabalho do Cfemea era exclusivamente militante, contando com a participação de mulheres especialistas ou ativistas. Naquele ano, com o primeiro financiamento, o Centro passa a trabalhar de forma mais profissional acompanhando o legislativo federal. Em 1993, foi credenciado como entidade do movimento social representativa do movimento de mulheres para acompanhar os trabalhos legislativos junto à Câmara dos Deputados e, em 1994, junto ao Senado Federal.

Nesses 33 anos, tivemos avanços em diferentes campos, entre esses destacamos alguns exemplos importantes a seguir.

A mulher como trabalhadora foi beneficiada após a Constituinte, entre outras, pela Lei nº 8.861, de 25/03/94, que garantiu a licença-gestante às trabalhadoras urbanas, rurais e domésticas e o salário-maternidade às pequenas produtoras rurais e às trabalhadoras avulsas. Esta Lei foi aprovada depois de ampla mobilização da categoria. Com o veto presidencial ao artigo 1º, que alterava a CLT, a regulamentação da licença-gestante proposta no projeto limitou-se à previdência social.

No mesmo ano tivemos a Lei nº 8.921, de 25/07/1994, concedendo licença à trabalhadora em caso de aborto espontâneo. Outra lei muito importante para as mulheres trabalhadoras, que foi muito articulada no movimento e pela sua autora, a Deputada Benedita da Silva, foi a Lei nº 9.029/95, de 13/04/95, que proibiu a exigência de atestados de gravidez e esterilização, e outras práticas discriminatórias, para a admissão no emprego ou de permanência da Relação Jurídica de Trabalho.

Se até o final da década de 80, só se reconhecia e se garantia proteção a um tipo de família, de lá para cá, as questões relacionadas às leis, as decisões judiciais, as políticas e os serviços públicos mudaram muito e já reconhecem a existência de várias formas de família. O reconhecimento da união estável, ainda em 1996, tirou da total desproteção do concubinato milhões de mulheres brasileiras. Na década seguinte, as decisões judiciais relacionadas às famílias homoafetivas avançaram, cada dia mais, para assegurar o direito à herança, sucessão e adoção.

Para enfrentar o racismo, que torna ainda mais dura a luta das mulheres por igualdade, todo o debate, a mobilização social e a pressão política em favor das quotas raciais e ações afirmativas foi altamente relevante, evidenciou as injustiças e conquistou acordos internacionais, como o Plano de Ação da Conferência Mundial contra o Racismo, de 2001 e leis e normas inéditas na história do nosso país.

Com relação ao avanço da mulher na política, acompanhamos até 1995 a tramitação do projeto de lei da deputada federal Marta Suplicy que se transformou na Lei 9.100, de 29/09/1995, que previa uma cota de 20% para mulheres como candidatas nos partidos políticos. Posteriormente a Lei 9.504, de 30/09/1997, elevou esta cota para 25%, para as eleições de 1998, e 30%, a partir das eleições seguintes em eleições proporcionais (Câmara dos Deputados, Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais) para o sexo minoritário (na prática, para as mulheres).

A área penal foi contemplada com várias legislações, das quais destacamos a Lei nº 8.930/94, de 06/09/94, que inclui o estupro no rol dos crimes hediondos; a Lei 10.224/2001 que diz ser o assédio sexual um tipo de crime; a Lei 10.714/2003 que cria o disque-denúncia, como um instrumento para coibir a violência contra a mulher; e, a Lei 11.106/2005 que excluiu os termos “mulher honesta” e “mulher virgem” do nosso Código Penal.

Do ponto de vista do enfrentamento da violência contra as mulheres, tivemos avanços relevantes. Desde o reconhecimento na Constituição de que o Estado deveria assegurar proteção contra a violência doméstica até a promulgação da Lei Maria da Penha houve mudanças substantivas em relação às responsabilidades do poder público no enfrentamento da violência contra as mulheres. Uma evidência inequívoca neste sentido são todos os serviços e milhares de servidores públicos, municipais, estaduais e federais, trabalhando em delegacias da mulher, centros integrados de referência para as mulheres, juizados especiais, por força dessa Lei.

A maior conquista na área penal foi, sem dúvida, a promulgação da Lei nº 11.340/2006, de combate à violência doméstica, Lei Maria da Penha. Depois de vários anos de discussão com o movimento de mulheres, a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) entrou na articulação e o Executivo apresentou o projeto ao Congresso Nacional. No Congresso, o Projeto de Lei foi objeto de várias audiências públicas em todo o território nacional, com a participação massiva do movimento de mulheres. O processo de articulação dessa legislação representou um exemplo de envolvimento da cidadania na construção de uma lei vinda dos movimentos de mulheres, com amplo diálogo, realização de campanhas, elaboração de textos e artigos para sua aprovação.

Sabemos que o perigo do retrocesso hoje paira no ar, como um possível “tufão” sobre o sonho de ver a legislação sobre o aborto ser mais flexível para as mulheres. Neste sentido já tivemos avanços, não em termos legislativos, mas por Decisão do Supremo Tribunal Federal - ADPF 54/ DF - Distrito Federal, que julgou no sentido de não ser considerado crime a interrupção da gestação de feto com anencefalia.

Nesse campo, a luta articulada dos movimentos feministas para impedir a ação conservadora de representantes religiosos fundamentalistas que permanentemente tentam reverter a legislação hoje em vigência no país e criminalizar ainda mais as mulheres pela prática do aborto tem sido incansável e permanente, demonstrando aqui um campo de disputa política onde podemos ver como o patriarcado se articula para controlar nossos projetos de vida, impedindo que sejamos cidadãs plenas para gozar outros direitos sociais, trabalhistas e políticos.

A conquista de direitos não é processo que tem se desenvolvido de maneira linear e progressiva. As ameaças aos direitos das mulheres, da população negra, indígena, das/os trabalhadoras/es foram e continuam sendo ferozes e, agora, ainda mais ameaçadoras. Aprendemos muito sobre o enfrentamento das velhas estruturas sociais e suas instituições profundamente retrógradas, autoritárias, patrimonialistas. E essas lições aprendidas são preciosas para enfrentar a conjuntura política atual – qualitativamente diferente da que experimentamos a partir dos anos 1990.

Os interesses do capital prevaleceram na Reforma da Previdência e, entre outros resultados negativos, aprovaram o fator previdenciário e ampliaram o limite mínimo de idade para aposentadorias, que atingiu as mulheres trabalhadoras de maneira absolutamente injusta.

O governo Bolsonaro deu passos ainda mais fortes na aliança entre Religião e Estado, com representantes religiosos neopentecostais fanáticos em suas estruturas administrativas (a exemplo da Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, a pastora Damares Alves), fazendo a frágil laicidade impressa em nossa Constituição Federal de nada valer mais.

Como vemos, muitas conquistas foram alcançadas em termos legislativos, entretanto sabemos que, na prática, nem a metade está sendo cumprida e implementada. Foi com essa preocupação que o Cfemea passou a monitorar o ciclo orçamentário da União; com o sonho levar o que está escrito nas leis, para a vida das mulheres. A intenção era garantir que as leis virassem políticas públicas, com recursos e ações estratégicas determinadas.

Tendo como referência os debates internacionais e os Planos de Ação de Beijing e Cairo (na década de 1990), o Cfemea iniciou uma articulação intra-movimento feminista para a construção de uma estratégia de formulação do Orçamento Mulher. Tal proposta articulava: conhecimento das peças orçamentárias públicas; convencimento de organizações e movimentos de mulheres da importância de se debruçar sobre o ciclo orçamentário, debatendo e construindo propostas durante as conferências de políticas para as mulheres para a institucionalização do Orçamento Mulher; diálogo prioritário com gestoras e servidoras públicas com sensibilização para a temática; e por meio da articulação no Fórum Brasil de Orçamento, junto a outras organizações da Sociedade Civil que fazem esse tipo de controle social.

A estratégia de incidência política feminista - desenvolvida pelo Cfemea desde 1992 - foi fundamental para subsidiar a ação dos movimentos de mulheres no monitoramento do processo democrático de instituição e garantia de direitos, enfrentando as estruturas de dominação, exploração e violência que excluem as mulheres. Ficamos com muitos aprendizados a respeito do enfrentamento das velhas estruturas sociais e suas instituições profundamente retrógradas, autoritárias, patrimonialistas.

Aprendizados e perspectivas futuras

As experiências dessas décadas de protagonismo e de iniciativas desbravadoras produziram capacidades que foram aprendidas e incorporadas por várias organizações da sociedade civil e coletivos que foram sendo criados recentemente.

A compreensão da importância do orçamento para a vida das mulheres e para a viabilização de políticas públicas voltadas às mulheres é muito maior hoje em organizações sociais e sindicais que representam interesses das mulheres camponesas, das mulheres indígenas e das periferias urbanas.

O monitoramento da ação legislativa e a incidência política fazendo pressão sobre parlamentares para se aprovar novas leis ou resistir à ação contra direitos conquistados é pauta permanente em grande parte das principais organizações feministas e de mulheres.

Não ser novidade não retira a importância do trabalho do Cfemea. É sinal de sucesso. Reforça a responsabilidade e pressiona o Centro para que avance, que ressignifique o monitoramento e a incidência e que produza inovações. Um exemplo poderá ser a criação de instrumentos tecnológicos de acompanhamento da ação parlamentar, baseados em pesquisas e informações sobre declarações, atos, votos proferidos e projetos apresentados. Pode significar um aporte importante para o ativismo feminista, mas desde logo irá orientar a ação do Cfemea no Congresso Nacional, na formulação de estratégias de diálogo e pressão política.

Nesse sentido, logo após as eleições gerais de 2022, o Cfemea tomou três iniciativas que consideramos importantes e que irão ajudar a marcar o próximo período da incidência parlamentar do Centro. Foi realizada uma pesquisa coordenada por três professoras da Universidade de Brasília e uma da Universidade Estadual de Maringá com o intuito de verificar, a partir do resultado das eleições e a formação das bancadas, “O que esperar do Congresso para a Luta das Mulheres”. Além da composição partidária do novo Congresso Nacional, a pesquisa responde a várias questões importantes para orientar a ação dos movimentos e organizações de direitos humanos e em especial as feministas. Planejamos usar essa pesquisa como a base inicial de um banco de dados que, por sua vez, se oriente a constituir uma ferramenta computacional com informações de quem é quem no Congresso. Um aplicativo que auxilie os movimentos feministas a saber com quem poderemos contar, quem tem alguma abertura para diálogo sobre este ou aquele tema, quais são os parlamentares adversários das propostas feministas e quais as relações e interesses deles(as). E também nos ajude a aprofundar estratégias de ação dentro do Congresso Nacional.

Em outra ação significativa no processo das eleições de 2022, o Cfemea deu prioridade ao diálogo com mulheres que estavam indecisas com respeito ao seu voto. Uma forma de influir para tentar evitar que as mulheres fossem pressionadas a votar segundo orientações de chefes religiosos, de maridos ou patrões. Esse foi o sentido inicial da campanha Meu Voto Vale Muito: incentivar o voto feminino em candidaturas comprometidas com a defesa da democracia e dos direitos das mulheres nas eleições de 2022 por meio de campanha publicitária e difusão de ideias simples e diretas e com rápida compreensão visual (imagens e vídeos) usando as redes sociais como Whatsapp, Instagram e Facebook, foi criado um portal na internet (landing page – www.meuvotovalemuito.com.br) e utilizado os portais do Cfemea e as organizações impulsionadoras, além de atividades presenciais com diálogos e distribuição de folhetos. A campanha, nas redes sociais, alcançou 636.549 pessoas, gerando 1.676.931 impressões. A avaliação que fizemos é de que a campanha MEU VOTO VALE MUITO foi um sucesso diante dos parâmetros e expectativas para uma campanha realizada no período eleitoral. E mais do que isso, nos conectou com a importância de seguir no coletivo e que juntas somos mais fortes.

Houve um aumento de 2,2% nas candidaturas de mulheres em relação às eleições de 2018. Das quinhentas e treze cadeiras em disputa, 91 mulheres foram eleitas deputadas federais e vão ocupar 17,7% das vagas. No Senado Federal houve queda no percentual de senadoras eleitas, somente 4 foram as eleitas. Somente uma com pauta em defesa dos direitos das mulheres. Duas foram eleitas governadoras dos estados. O dobro da eleição passada.

2racialidade genero

No plano ideológico e no que se refere à composição partidária das bancadas, houve um avanço e consolidação dos agrupamentos de direita e extrema-direita.

3extrema direita avanca

4novo perfil partidario

O quadro da composição parlamentar na Câmara dos Deputados que sai das eleições indica que se não houver defecções no “campo progressista” em uma ou outra votação, as proposições mais polêmicas podem ter de 132 votos (a representação dos votos do campo progressista), ou 216, se forem somados aqueles votos aos da bancada de centro (com 84 votos). O que continuará sendo muito menor que os 290 votos da bancada de direita e extrema-direita. Um quadro que mostra que o próximo governo deverá negociar muito com os parlamentares e as bancadas conservadoras.

O estudo que o Cfemea realizou mostra que será muito importante investir na capacitação dos grupos de pressão que defendem os direitos, conhecer bem os(as) parlamentares e estabelecer estratégias articuladas. Caso contrário o rolo compressor da última legislatura permanecerá contra as mulheres.

A terceira iniciativa do Cfemea a ser destacada foi a realização dos Diálogos sobre os desafios da incidência política dos movimentos no parlamento 2023-2026. A partir do chamado do Cfemea, no período imediatamente posterior ao primeiro turno das eleições, mas de 60 movimentos e organizações parceiras, tanto do campo feminista (uma grande parte delas contou com o apoio logístico do Cfemea para deslocamento e alojamento em Brasília), como de outros segmentos correlatos às nossas lutas, como ambientalistas, movimentos camponeses, sindicais e de direitos humanos, reuniu-se para realizarmos uma análise conjunta do resultado das eleições e prepararmos os caminhos para a incidência no parlamento, na esperança de que se possa avançar em processos comuns, inovadores e articulados de incidência política. Nos dois dias de debates foram apresentadas análises e estudos sobre o processo eleitoral e sobre o resultado das eleições. Além de apontar para possibilidades de articulação ou de algum tipo de incidência cooperada, essa articulação acabou por decidir elaborar uma carta dirigida ao novo governo, na figura da Comissão de Transição, chamando atenção para como devem ser tratados os direitos humanos em geral e os direitos dos povos originários, das mulheres, das populações periféricas, ribeirinhas, quilombolas e das populações do campo. O resultado dessa iniciativa, contudo, vai ser observado no decorrer do primeiro ano do novo governo, se teremos ou não meios para alterar a forma atomizada de incidência e monitoramento do Congresso Nacional.

A experiência do Cfemea no monitoramento parlamentar e na incidência em favor de leis que garantam os direitos das mulheres está sendo replicada e adaptada em várias Assembleias Legislativas estaduais. A Frente Parlamentar Feminista Antirracista com Participação Popular, cuja coordenação integramos, assim como o Grupo Impulsor da Frente Nacional contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto, de organizações da sociedade civil são dinamizadores importantes destas iniciativas. Isso é uma forma de ressignificar a ação de monitoramento do Cfemea, incluindo agora a possibilidade de fazer-se pontes, ligações, entre a ação no Legislativo Federal e os coletivos que começam a agir sobre os Legislativos Estaduais. No caso do monitoramento das atividades legislativas referentes aos Direitos Sexuais e Reprodutivos, essas ligações têm sido ainda mais urgentes, em vista da ação de grupos fundamentalistas e de extrema-direita que estão tentando criminalizar ainda mais a ação de mulheres que praticaram aborto mesmo com base na legislação que permite em casos de estupro.

Além dessas duas iniciativas, o Cfemea também é partícipe de vários outros coletivos, articulações, plataformas e frentes. Fomos parte do processo de criação da Articulação de Mulheres Brasileiras[8], da Plataforma de Direitos Humanos Dhesca Brasil[9], também no mesmo campo dos direitos humanos, participamos do Comitê Brasileiro de Defensores e Defensoras de Direitos Humanos[10], do Observatório Direitos Humanos Crise Covid19[11], da Associação Brasileira de ONGs[12], da Articulación Feminista Marco Sur[13], e de movimentos e feministas que articulam as pautas feministas em datas importantes para as mulheres como as comemorações do Dia Internacional da Mulher (8 de março), entre outros [14]. Ademais, temos investido bastante energia na dinamização de processos em rede que organizam e sustentam nacionalmente a colaboração, compartilhamento, intercâmbio, solidariedade e trocas de saberes entre e das Tecelãs do Cuidado.  Outras atividades importantes para o ativismo do Cfemea têm sido a participação na organização e apoio à Marcha das Margaridas[15], e ao Festival Latinidades no período de ativismo das mulheres negras latino-americanas e caribenhas no mês de julho[16].

Agora em 2022, o Cfemea recebeu novamente a responsabilidade de coordenar a Universidade Livre Feminista, um projeto de iniciativa desse Centro em 1997. Desde a criação da Universidade, a proposta do Cfemea foi abrir sua gestão para formas coletivas e colaborativas. Nos últimos anos, vários problemas e novos desafios afetaram diversos coletivos que estavam participando da gestão da Universidade Livre Feminista e por final coube a manutenção da Universidade tão somente ao Cfemea e ao SOS Corpo. No início do ano o SOS Corpo decidiu retirar-se da Universidade, considerando que seus programas formativos devem ser conduzidos por seus próprios instrumentos institucionais. As participantes da coordenação coletiva da Universidade resolveram encerrar um ciclo e passar a responsabilidade por sua condução ao Cfemea. A Universidade Livre Feminista é uma proposta que o Cfemea reconhece como fundamental para o fortalecimento do feminismo e da luta geral das mulheres no Brasil. Tem a potencialidade de reunir e somar milhares ou milhões de mulheres, tem o carisma de unir, reunir e congregar, tem ligação com novas formas de fazer educação, comunicação e pesquisa. E, por isso, fará parte das diretrizes gerais deste programa institucional, sendo que suas implementações e atividades serão objeto de implementação ao longo desses próximos anos, a partir de novas parcerias, do incentivo à formação de novos coletivos e retorno de coletivos que tiveram que se afastar por motivos que estiverem agora solucionados ou que possam ser resolvidos com o apoio solidário do Cfemea, em relação direta com os recursos financeiros, técnicos e colaborativos que conseguirmos atrair.

O último ano do programa institucional anterior foi marcado por várias interrupções importantes, que trazem desafios e esperanças, reforçam a necessidade do ativismo feminista, da capacidade de formulação de políticas públicas, de análise e monitoramento da política. No plano internacional uma guerra nas fronteiras da Europa pode alterar o quadro geopolítico mundial e acelera processos econômicos e tecnológicos na Ásia e afeta a segurança alimentar em todo o planeta. No plano nacional, a eleição do presidente Lula interrompe a escalada da extrema-direita no Brasil e pode, dependendo de como se transcorrerá a nova gestão, fazer o país retomar o caminho da democracia, da participação social cidadã e da conquista de direitos. No contexto interno do Cfemea, recebemos a notícia de fim de uma parceria de uma década com algumas entidades e pessoas que nos ajudaram a consolidar a Universidade Livre Feminista e, no que acreditávamos ser o momento de aparente final da pandemia do Covid19, o Centro teve que produzir significativas alterações em sua gestão, já que adoecimentos, mudanças de cidades, esgotamento e dificuldades profissionais acabaram afastando parte da equipe. Se no plano internacional o temor de conflitos é o que amedronta, no plano interno, tanto no Brasil, quanto no Cfemea, aprendemos muito com nossos erros, principalmente na forma de gestão, e no enfrentamento das adversidades, mas o que dá sentido à mudança que estão ocorrendo no Brasil e no Cfemea é a esperança e o ânimo na construção de algo novo, dinâmico, participativo.

           

3. Permanência da crise social, desafios e esperança política

 

Os indicadores econômicos e sociais continuam apontando para a permanência da crise que afeta a capacidade econômica do país, mas especialmente trabalhadores e populações periféricas e vulneráveis. A taxa oficial de desemprego se mantém em 8,5%, o que representa 9,5 milhões de pessoas. Esse número está muito longe da realidade das pessoas e das comunidades. A informação oficial (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) que mais se aproxima do drama social vivido pela população é que o Brasil tem 35,2 milhões de pessoas empregadas com carteira assinada no setor privado (somente 32,6% da força de trabalho está empregada), a força de trabalho é estimada em 107,9 milhões de pessoas[17]. Isso significa que 72,7 milhões de pessoas estão desocupadas, vivendo em trabalhos esporádicos ou sub-empregadas no mercado informal de trabalho, sem direitos trabalhistas e qualquer proteção social. Além de aumentar o desemprego, as leis trabalhistas criadas após 2016, deram sustentação a uma significativa redução dos salários[18]. Esse quadro explica o grave quadro de insegurança alimentar que atinge o país, 33,1 milhões de pessoas não têm o que comer[19]. A população negra é a mais afetada.

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Esse retrato parcial, mas representativo, mostra que o Brasil continua imerso em uma crise profunda. Alguns sinais se alteraram, especialmente o resultado das eleições presidenciais, trazendo esperança. Mas os perigos permanecem. As eleições parlamentares mantiveram a maioria do Congresso Nacional formada por partidos de direita e de extrema-direita, avançou a presença de parlamentares com ligações profundas com organizações militares, com grupos paramilitares e milícias e também com o crime organizado e o narcotráfico. Além disso, nenhum passo atrás se deu ainda sobre o avanço das bancadas formadas por pastores e mandatários de igrejas neopentecostais. Essa presença é marcante não só no legislativo, mas também em estruturas de execução de políticas públicas reconhecidamente importantes para a garantia dos direitos humanos. Um exemplo é a política de mitigação dos supostos efeitos de substâncias psicotrópicas. Centros criados por igrejas pentecostais e grupos a elas ligados são os principais receptáculos do orçamento público para a “reabilitação”.

Um olhar atento às relações das igrejas e religiões cristãs com o Estado faz reconhecer que um dos principais perigos à democracia (e à garantia dos direitos das mulheres) são as igrejas e seu progressivo caminhar contra a laicidade do Estado.

Na economia, o que ainda domina (e dominará) a pauta do legislativo federal é a defesa dos interesses do agronegócio monocultor e agressor do meio ambiente, da pecuária extensiva que desmata e destrói biomas amazônicos e os cerrados, de garimpeiros e grandes mineradoras. Não é possível avaliar ainda o impacto (se houver) do novo governo nessa pauta.

A compreensão que o Cfemea tinha já no programa institucional anterior e que se mostrou correta na realidade política nacional e internacional desses anos.  Compreendemos que o Brasil é parte de um cenário regional e internacional onde o contra-ataque conservador tem se realinhado ao ultraneoliberalismo para barrar as mudanças radicais produzidas no campo da sexualidade, dos direitos humanos, dos direitos civis da população negra, das mulheres e LGBTQIA+ ocorridas no século XX, bem como para desmontar estados-nação – via golpes políticos - para impor lucro sem fim sobre vidas humanas – dizimando populações que vivem em territórios de disputa de mega projetos de “desenvolvimento”. Adiciona-se a isso o quadro geopolítico acirrado em 2022 e representado pela guerra na fronteira oriental da Europa, as escaramuças estadunidenses contra o crescimento do poder chinês na Ásia e o aumento da instabilidade no Oriente-Médio. O estado de guerra é um temor mundial, produz uma nova corrida armamentista, recoloca a possibilidade da guerra nuclear, eleva o preço internacional dos alimentos, aumenta a fome e, ao mesmo tempo, é um elemento de pressão sobre a política nacional, tanto no que se refere ao posicionamento diplomático brasileiro, quanto pressiona os custos comerciais e a retomada das atividades geradoras de emprego no país.

Internamente, a ofensiva conservadora provocou o desmonte de políticas públicas, o enfraquecimento de instituições do Estado e o esmagamento de todas as iniciativas institucionais de participação social. Por isso, os movimentos sociais estão agindo para que o governo eleito revogue todos os atos infralegais que provocaram danos às políticas de direitos humanos, ambientais, de saúde, de educação, que atingiram povos originários e tradicionais e especialmente as mulheres. Um passo importante, mas não suficiente. O orçamento que está em processo de aprovação no Congresso Nacional mantém níveis muito baixos de financiamento de órgãos responsáveis pelas políticas públicas que mais se relacionam com os interesses populares.

É possível que mais de 6.000 oficiais das Forças Armadas que hoje ocupam cargos civis no governo federal sejam dispensados nos primeiros dias da nova gestão, mas as políticas que instituíram serão mais difíceis de serem refeitas. Um exemplo é a absurda política de militarização de escolas públicas ou o estabelecimento de escolas militarizadas. Não se tratará de simplesmente caminhar para se desmontar esse absurdo que passou a ser chamado de “escolas cívico-militares”, mas de dialogar com a parcela da população que se constitui a base social desses programas de cunho fascista e militar. Uma parte significativa das populações periféricas e vulneráveis apoia essas iniciativas, imaginando que são formas de garantir a segurança de seus filhos ou mesmo o estabelecimento de meios de controle para que não caiam sob a influência do crime e do narcotráfico.

Será necessário se reconstruir estruturas de participação social (conselhos, conferências, fóruns, comissões paritárias e tripartites) por onde os diálogos e tensões relacionadas às políticas sociais eram processados. Porém, ainda não se estabeleceu um diálogo social para se verificar se basta somente recriar os conselhos e conferências, ou se poderemos avançar e criar uma verdadeira cultura de participação social na elaboração e condução das políticas públicas, não só como espaços de manifestação, mas organismos de deliberação e controle social.

As legislações que retiraram das organizações sindicais a capacidade de agir e representar as trabalhadoras e trabalhadores, que eliminaram direitos trabalhistas e previdenciários, precisam ser refeitas. Mas não será um processo rápido e imediato, haja vista a composição do Congresso Nacional e o alto custo das negociações.

É certo que o Ministério da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos será refeito em outros moldes, mas o caminho para o estabelecimento de uma nova institucionalidade democrática e representativa das políticas necessárias para as mulheres ainda é incerto e será cheio de desafios.

Ao longo dos últimos 33 anos, das estratégias de incidência política feminista desenvolvidas pelo Cfemea desde 1989, tiramos muitos aprendizados, preciosos para enfrentar a conjuntura política atual. Compartilhar esses aprendizados, promover e apoiar processos colaborativos de resistência e incidência é, para nós, uma prioridade política, que exigirá uma nova política e prática de comunicação e também a mobilização da Universidade Livre Feminista como espaço de formação, crítica e diálogo com grandes grupos de mulheres.

O nosso aporte, como organização feminista, para fazer frente a esse processo se dirige à sustentabilidade do ativismo, potencializando a ação, fortalecendo e ampliando a proteção, a segurança e o cuidado entre ativistas, alimentando diálogos, debates, formações que favoreçam a convergência entre movimentos e a compreensão coletiva sobre o contexto catastrófico que exigiu demais das mulheres, bem como a formulação de novas estratégias para construir caminhos democráticos que reconheçam as mulheres como sujeito político autônomo e capaz de se autorrepresentar.

Nas eleições de 2018 as feministas conseguiram expressar a maior mobilização antifascista, indo às ruas e tomando as redes sociais com a hashtag #EleNão. Nas eleições de 2022, as mobilizações de impacto mediático foram substituídas por ações nos territórios, nas comunidades, no diálogo direto. Um processo que envolveu centenas de milhares de grupos, coletivos e agrupamentos informais de vizinhança ou de proximidade nos territórios.

A força deste feminismo popular, jovem, negro, libertário somou-se aos vários outros agrupamentos feministas e de mulheres que conseguiram furar o bloqueio ultraconservador e a violência da política fascista que se manifestou em todos os espaços sociais e virtuais.

Reafirmamos que é prioritário nutrir as raízes do feminismo antirracista e fortalecê-lo, contribuindo para a sua maior organização, articulação e fortalecendo sua capacidade de mobilização. Nos colocamos o desafio de responder à emergência de resistir, sem perder de vista o sentido radical das nossas lutas, sua dimensão latino-americana e caribenha, a perspectiva decolonial e a metodologia orientada ao diálogo intercultural, seus princípios de autonomia, horizontalidade, reciprocidade, igualdade, justiça e reconhecimento mútuo, de forma a renovar nossa práxis política, seus referenciais teóricos e metodológicos, e nesse esforço construir estratégias políticas, culturais e educacionais para a superação do patriarcado e da opressão sobre as mulheres, construindo alternativas.

Somos muitas nas lutas feministas e antirracistas e há enormes desigualdades entre nós, por isso mesmo, é preciso estarmos sempre conscientes e alertas para que o ativismo das mulheres não reproduza relações assimétricas de gênero, raça e etnia, conferindo atenção redobrada aos desastres maiores que o fascismo reinante pode impor às mulheres pela mobilização racista, etnocêntrica e LBTfóbica. Esse contexto de lutas exige que as feministas estudem, examinem, pesquisem, compartilhem ensinamentos e compreensões para o fortalecimento de todas. Um caminho que reforça a necessidade da Universidade Livre Feminista, como projeto múltiplo e diverso, reunindo as feministas que estão nos centros de pesquisa e nas universidades, com as que estão nos movimentos, nos coletivos, nas cooperativas, nos assentamentos, nas aldeias, e que podem sistematizar seus aprendizados e promover a mútua produção de conhecimento, junto com as mulheres de terreiro e as que estão nas igrejas e outras formas de organização da espiritualidade e da cultura. A Universidade Livre Feminista deve conseguir fazer a ancestralidade ser reconhecida e respeitada, de forma a impulsionar o ímpeto e a coragem da juventude feminista, em diálogo de aprendizados, de crítica e de prática ativista e de movimento.

Continua a tarefa urgente e de longa duração para fortalecer as mulheres nas trincheiras das lutas por direitos e pelo bem viver, onde semeiam, desde já, outras possibilidades de futuro a partir de suas experiências organizativas do ativismo em distintos territórios e das relações que estabelecem seja em seus coletivos, redes, plataformas, movimentos, transitando por espaços reais e virtuais. A educação, a formação, os processos de constituição de consciências não subordinadas é uma exigência da democracia que foi golpeada e violentada.

É central desenvolver o esforço consciente de manter os vínculos políticos e também afetivos, promover o autocuidado e o cuidado entre nós, investir em processos institucionais, coletivos e pessoais de proteção e segurança, inclusive digital, de defensoras e defensores de direitos humanos; valorizar as nossas reflexões e também as emoções como parte indispensável tanto à sustentação do nosso ativismo, quanto ao fortalecimento do sujeito político coletivo e a estruturação organizativa do movimento, que é a maneira de cada uma existir como sujeito individual na luta política.

Nesse momento, os desafios colocados às feministas serão tão grandes quanto aqueles da resistência. A violência contra as mulheres não cessará com o novo governo, mas teremos aliados e aliadas nas instituições que devem ser retomadas e reativadas. Mas ampliam-se as exigências. As mulheres negras são as principais vítimas de feminicídio no Brasil: elas representam 67% dos casos notificados em 2020, dos quais 61% são de mulheres pardas e 6% pretas. O racismo também está presente no feminicídio, tem um caráter de classe e étnico. Mas a violência atinge as mulheres em todas as classes sociais. A luta contra a violência que se orienta contra as mulheres é fundamento da cultura patriarcal. Ameaça a sobrevivência física, psíquica, moral e patrimonial das mulheres. A reação das mulheres à violência tem chamado a atenção de amplos setores inclusive por aqueles que tentam capturar as bandeiras de garantia da vida das mulheres enquadrando-as em propostas políticas oportunistas e em discursos punitivistas, que não reconhecem a exploração de classe, o racismo, o sexismo e a utilização das mulheres como instrumentos passivos e baratos de reprodução social.

Ao lado da luta contra o feminicídio e todas as formas de violência contra as mulheres também se encontra a luta contra a ideologia punitivista que também coloca as mulheres atrás das grades em sistemas desumanos, injustos e violentos de contenção e controle das mulheres. O Brasil apresenta a quarta maior população carcerária feminina do mundo, com cerca de 49 mil mulheres presas. O último levantamento oficial de 2018, as mulheres negras correspondem a 68% do cárcere; enquanto as brancas, 31%; amarelas, 1%; e as indígenas, menos de 1% e 50% das presas se encontram na faixa etária de 18 a 29 anos, idades que correspondem a 21% da população brasileira.  Entre 2000 e 2014, a quantidade de mulheres encarceradas aumentou em 567%, em prisões e em um sistema carcerário feito para aprisionar homens, masmorras que não foram feitas levando em conta as características próprias das mulheres[20]. E são presas principalmente por suposto tráfico de drogas. Na maioria absoluta das vezes foram forçadas a transportar drogas. As que são presas grávidas ou com filhos recém nascidos, acabam presas com as crianças convivendo no mesmo ambiente insalubre, desumano e violento. Crianças que nascem e crescem no cárcere.

Outras são as violências praticadas contra as mulheres. A criminalização das mulheres em situação de abortamento é outra forma de punição e castigo para o controle do corpo e da vida das mulheres. A permanência do aborto na ilegalidade, além de forma explícita de controle, faz parte da lógica da maternidade compulsória, processo que se enraizou pela cultura patriarcal que estabelece a maternidade como função primordial e essencial da mulher na sociedade. A mulher é reduzida à condição de hospedeira. E seu trabalho não remunerado e sua exploração são considerados hipocritamente como atos de amor. Centenas de anos de exploração de metade da humanidade, são recorrentemente desconsiderados quando se trata de verificar como os sistemas econômicos se apropriaram das riquezas geradas pelas mulheres ou produzidas porque as mulheres estavam “cuidando” da reprodução social.

  1. Objetivos gerais

O Programa Institucional do Cfemea para o período 2023-2026 atualiza, continua, reformula e amplia os programas anteriores, destacando-se os seguintes objetivos gerais:

4.1. Promover o cuidado no ativismo para fortalecer os vínculos que tecem as redes, organizam as lutas e transformam o nosso modo de viver, de nos relacionar, de pensar estrategicamente e gerar mudanças. Promover o autocuidado e o cuidado entre ativistas, como partes indissociáveis da nossa estratégia de transformação social, no sentido do bem viver. Cuidar dos nossos bens comuns. Reivindicar a proteção e segurança de quem luta, potencializando as capacidades individuais e coletivas frente às várias formas de violência que nos ferem. Fomentar maneiras de conviver, organizar, mobilizar e estar na resistência que, desde já, em cada lugar, avancem no sentido do diálogo intercultural e do reconhecimento mútuo, bem como na superação da fragmentação que separa o pessoal do político, o emocional do racional, o corpo da alma, a sociedade da natureza. O Cfemea continuará o processo de organização de atividades com grupos e coletivos de mulheres nas periferias, em movimentos sociais, junto com mulheres indígenas, mulheres camponesas e ativistas de coletivos e organizações feministas, de direitos humanos e de resistência.

4.2. Gerar ações colaborativas para processos de formação de ativistas - a iniciativa do Cfemea em criar a Universidade Livre Feminista - ULF (começou a ser formada em 2007) gerou frutos e conseguiu se manter por 15 anos. É um projeto que ganhou vida e tem produzido muitas experiências. Em 2022 as entidades e coletivos que estavam responsáveis pela coordenação da ULF resolveram encerrar o ciclo de 13 anos e o Cfemea voltou a ser a única organização mantenedora do ULF e responsável pela definição do planejamento de suas atividades a partir de 2023. Mas não fará isso sozinha. Vamos buscar envolver parcerias e continuar a sonhar com um trabalho compartilhado e cooperado. A Universidade Livre Feminista continuará a ser uma proposta de ação coletiva, plural e múltipla e voltada ao fortalecimento do feminismo. A proposta para o período 2023-2026 é retomar os aprendizados que tivemos com atividades de formação, reflexão e crítica e ampliar, por meio da educação popular e da pedagogia feminista, aplicadas em espaços virtuais e presenciais ou híbridos, que abram e facilitem oportunidades de diálogo, reflexão e elaboração coletiva para a formulação de análises e estratégias (formação na ação), incentivando a realização de pesquisas, fazendo com que a Universidade Livre Feminista institua processos de documentação e de facilitação de acesso a conhecimentos, quer por meio de repositórios e bibliotecas próprias, quer por meio da construção e suporte à criação de repositórios e espaços para que outras iniciativas e coletivos possam se desenvolver utilizando os recursos disponíveis na Universidade Livre Feminista. A ULF atuará com a busca ativa de parcerias junto a outros coletivos e núcleos de estudos instalados nas universidades púbicas, apoiará e procurará dar suporte a iniciativas de formação de mulheres em sindicatos, centrais sindicais e movimentos sociais dos campos e das cidades, nas aldeias, nos territórios quilombolas, nos assentamentos e nas favelas. Serão produzidos cursos próprios e em parcerias, também serão abrigados outros cursos e materiais educacionais nos servidores da ULF e atualizados cursos produzidos por outros coletivos que desejarem usar ferramentas e instrumentos educativos da ULF. Para além das fronteiras, sociais, físicas e geográficas, serão buscadas parcerias, intercâmbios e comunhão com coletivos, movimentos e entidades na América Latina e no Caribe, em África e junto a outras universidades feministas. Buscaremos recriar a Biblioteca Feminista e instituir a TV Feminista, a Rádio Feminista entre outras propostas.

4.3. Monitorar, acompanhar o processo legislativo e incidir no Congresso Nacional na defesa das bandeiras feministas em defesa dos Direitos Sexuais e Reprodutivos, pela descriminalização do aborto  e estabelecendo relações com as lutas em defesa dos direitos humanos econômicos, sociais e culturais, com a produção e difusão de informações que ajudem as feministas a compreenderem as disputas políticas no Legislativo e o processo legislativo relacionado às proposições e temas de interesse das feministas. O processo de acompanhamento legislativo será desenvolvido em consonância com o acompanhamento das políticas púbicas de interesse das mulheres que podem exigir a incidência do Cfemea também nas instâncias institucionais do Poder Executivo, do Poder Judiciário e do Ministério Público. O Cfemea criará um instrumento de acompanhamento e identificação de todos e todas as parlamentares e desenvolverá as ferramentas informacionais e computacionais adequadas para agilizar a produção de perfis que auxiliem o ativismo feminista na defesa de projetos de lei ou na resistência a ataques aos direitos das mulheres.

4.4. Colocar a comunicação e a informação na centralidade do ativismo feminista da articulação política – a ação e a política de comunicação do Cfemea para o período 2023 estará centrada na articulação de processos de informação e difusão de conhecimentos que sustentem e apoiem ações políticas feministas coletivas. Todas as atividades do Cfemea e suas realizadoras passam a incorporar práticas e conceitos de comunicação para noticiar o que for feito, apoiar a reflexão sobre temáticas relativas aos direitos sexuais e reprodutivos, incentivar a articulação com os movimentos sociais e coletivos feministas e produzir engajamento das feministas. O Cfemea refez seu portal na Internet (2022) e vai articular seus outros portais, como o da Universidade Livre Feminista, também atualizado em fins de 2022, e os novos (Biblioteca Feminista), de tal sorte que possa gerar sinergia entre eles e ampliação do público que acessa e usa as ferramentas informacionais. Nesse processo de construção de políticas de comunicação alicerçadas na horizontalidade, no ativismo, no respeito à pluralidade e no cuidado, será promovida a busca ativa para que coletivos e pessoas possam usar os mecanismos de comunicação do Cfemea para construção de seus próprios espaços e colaborar para o fortalecimento mútuo do ativismo feminista libertário e emancipador.

4.5. Fortalecer a auto-organização, a articulação e a mobilização social – nacional e regional - das mulheres, visando a sustentabilidade do ativismo feminista e antirracista, com concentração de esforços nos processos: a) do próprio Centro Feminista de Estudos e Assessoria – Cfemea; b) da Articulação de Mulheres Brasileiras e seus agrupamentos locais; c) da Universidade Livre Feminista e das que se juntarem a ela; d) da rede de proteção das Organizações da Sociedade Civil – OSCs, dos defensores e defensoras de direitos humanos e Movimentos Sociais.

4.6. Fortalecer a gestão, com responsabilidade (accountability e compliance), transparência e horizontalidade – serão concluídos os procedimentos de accountability e compliance recém instituídos, com o estabelecimento de processos de administração de recursos e de pessoal transparentes, serão instaladas e geridas ferramentas informatizadas de planejamento, decisão coletiva e gestão horizontal de projetos e atividades com total transparência interna, objetivando elevar a responsabilidade de cada ativista do Cfemea na gestão e para modernizar os instrumentos de planejamento.

LINHAS DE AÇÃO QUEM TECEM O CFEMEA

(Objetivos, principais atividades, resultados)

 

  1. Estratégia

A estratégia central do Cfemea está orientada à ampliação da incidência feminista na defesa dos direitos das mulheres e aprofundamento e consolidação da democracia, crítica e superação do patriarcado, fortalecimento do movimento feminista local, nacional e internacional, produção de meios e garantia de processos orientados à sustentabilidade do ativismo, de onde desdobram-se: a promoção do autocuidado e o cuidado entre ativistas; o aprimoramento dos processos auto-organizativos de territorialização das lutas e de dinamização de convergências intramovimentos; a ampliação da participação das mulheres nas ações de resistência e ampliação de direitos; a construção de alianças com outros movimentos; e processos colaborativos de formação, educação popular e de pesquisa, formulação crítica, produção de conhecimento e comunicação política.

 

5.1. Fomentar o autocuidado e o cuidado entre ativistas

Enxergamos o cuidado entre as ativistas como um tipo de intervenção política que nos possibilita lidar com elementos e situações que bloqueiam nossas trajetórias de transformações subjetivas. É um caminho para interpelar o individualismo, o sexismo, o racismo e outras formas de discriminação que interiorizamos e que continuam nos oprimindo dia após dia. Este cuidado também é uma maneira de eliminar tais elementos dos discursos e práticas de quem se dedica a transformar o mundo e, portanto, fortalecer a própria luta, contribuindo para que se aprofunde o diálogo e se trabalhe os conflitos intragrupo. As desigualdades entre as mulheres ativistas são profundas e constituem fator fundamental do conflito entre ativistas. As desigualdades violentam, são feridas abertas ou cicatrizes que as ativistas trazem em seus corpos e de suas ancestralidades, decorrentes do machismo, misoginia, racismo, elitismo, lgbti-fobia, intolerância religiosa, etnocentrismo, xenofobia, capacitismo entre outras formas de violência e discriminação.

Processar esses conflitos ao invés de tolerá-los ou negligenciá-los é indispensável ao fortalecimento dos vínculos entre ativistas e das redes de resistência. O reconhecimento mútuo e o diálogo intercultural são, por isso mesmo, desafios indispensáveis ao autocuidado e ao cuidado entre ativistas que promovemos.

Frente ao acirramento da violência e a disseminação do ódio que atinge ainda mais violentamente as ativistas e as mulheres de modo geral, a linha de ação voltada ao autocuidado e cuidado entre nós ganhou ainda maior relevância.

Essa linha será desenvolvida em diferentes regiões e grupos de mulheres, a exemplo das mulheres negras quilombolas (comunidades tradicionais remanescentes dos processos de escravização de afrodescendentes) e das mulheres indígenas, objetivando avançar no enraizamento e capilarização das iniciativas de autocuidado e cuidado entre ativistas, pela realização de imersões locais, em várias cidades brasileiras, em parceria com os coletivos que ao longo dos últimos anos se engajaram nesses processos.

Ampliar a incorporação da dimensão do autocuidado e cuidado entre ativistas aos processos de formação política feminista da Universidade Livre Feminista e de auto-organização da Articulação de Mulheres Brasileiras e estimular a mobilização de iniciativas locais de solidariedade, apoio e cuidado entre ativistas, fortalecendo iniciativas coletivas para o acolhimento e a proteção de ativistas que enfrentam várias formas de violência (sexual, de gênero, psicológica, doméstica, entre outras) pouco visibilizadas e não reconhecidas pelos programas de proteção a defensoras de direitos humanos são outros dos desafios colocados.

Nesse campo é fundamental que consigamos favorecer espaços de autocuidado e cuidado entre ativistas nos processos de organização e luta de outros movimentos, redes e plataformas, entre esses: Comitê de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos, Plataforma DHESCA, CPT, MTST e MST.

A proteção, a segurança, o fortalecimento das mulheres que estão na luta e de suas capacidades de resiliência são condições essenciais à sobrevivência de todas e de cada uma das ativistas, e de sustentabilidade das lutas de resistência. Além de fortalecer a resistência, nossa ação também visa a acumulação contra hegemônica, estimulando as mulheres a combater e a superar os processos de marginalização, privação e invisibilização de opressões sistemáticas que vivemos, convidando à construção da ética e da práxis do cuidado, vivenciada como autocuidado, cuidado entre nós e com nossos bens comuns.

Nesta linha de ação, entre as principais atividades para o próximo período:

a) Aprimorar os processos de formação de ativistas e de facilitadoras em novos Encontros de Autocuidado, Cuidado entre Ativistas e Formação na Técnica de Redução de Estresse e Alívio de Tensões entre Mulheres – TREM.

b) Favorecer a dinamização de uma rede, oportunizando espaços de intercâmbio e aprofundamento da experiência de ativistas facilitadoras de atividades de autocuidado, cuidado entre ativistas.

c) Promover rodas de autocuidado e cuidado entre ativistas locais (regulares ou imersões).

d) Estimular a mobilização de iniciativas locais de solidariedade, apoio e cuidado entre ativistas, fortalecendo iniciativas coletivas de acolhimento e proteção.

e) Promover o intercâmbio entre processos locais contínuos e com as experiências latino-americanas e de outras regiões do mundo, especialmente com os países de língua portuguesa (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa) e com países que tenham experiências e programas de universidades feministas ou similares.

f) Favorecer espaços de autocuidado e cuidado entre ativistas nos processos de organização e luta de outros movimentos, redes e plataformas.

g) Elaborar, sistematizar, produzir, difundir e compartilhar o conhecimento coletivamente construído a partir dessas experiências, seus instrumentos, metodologias, técnicas, teorias e princípios.

h) Articular os programas de formação e intercâmbio com a Universidade Livre Feminista e as trocas de experiências com programas similares em outros países.

 

RESULTADO

Autocuidado e cuidado entre ativistas, medidas de segurança e redes de solidariedade incorporadas nas práticas das articulações feministas das quais somos parte, promovendo o bem viver e fortalecendo a capacidade de ação dos movimentos e ativistas.

 

5.2. Fortalecimento das lutas por autonomia e igualdade

Uma das estratégias mais importantes do movimento de mulheres e feminista do qual o Cfemea faz parte, esteve voltada, há três décadas, à incidência política sobre o Estado para a garantia de direitos, em especial o Legislativo e o Executivo.

Tratamos de enfrentar as estruturas patrimonialistas, patriarcais e racistas que sustentam o Estado brasileiro e o sistema político que lhe corresponde. Investimos no fortalecimento da ação do movimento para exigir direitos iguais na lei e na vida e construir uma sociedade justa e igualitária, defensora dos direitos, da autonomia e da liberdade de todas e cada uma das mulheres.

O Cfemea e outras organizações feministas são parte desta estratégia e construíram espaços na sociedade civil que contribuíram para a consolidação da democracia no país. As conquistas em termos de cidadania das mulheres neste período foram reivindicadas, disputadas e vêm sendo mantidas pela ação, proposição e resistência estratégica do movimento, apesar e contra a sub-representação das mulheres em todos os espaços de poder e decisão; apesar e contra o patrimonialismo, a violência institucional, o fundamentalismo religioso e outras formas de negação de direitos e apropriação privada dos recursos e do poder públicos.

Nos últimos anos, diante de um contexto político adverso decidimos pelo reposicionamento de nossa atuação, de modo a intensificar o diálogo com as mulheres e com a sociedade de maneira geral, investindo na construção de um novo repertório de ações e estratégias, que possibilitem amplificar ações de mobilização e resistência, e contribuam para territorializar as lutas das mulheres por autonomia e igualdade. Foram anos de resistência, de sofrimento e aprendizado para sobrevivência.

A campanha eleitoral e as mobilizações que promoveram a vitória contra o ultraconservadorismo de matiz fascista abrem espaço para um período de novas lutas agora conduzidas pela esperança. Isso não representa que o fascismo está definitivamente derrotado e que voltamos ao processo anterior. Há à frente um período de reconstrução política que exigirá muito esforço, capacidade de negociar, dialogar e agir coletivamente para construir meios de fortalecimento da democracia e instrumentos para retirar uma parte significativa da sociedade, inclusive entre as populações vulneráveis e marginalizadas, da influência da extrema-direita e do tacão dos fundamentalismos religiosos.

Entre os desafios colocados estão:

Fomentar as lutas e os processos de educação popular e organização social por autonomia e igualdade relacionadas aos direitos sexuais e reprodutivos, à laicidade do Estado, contra as reformas ultraneoliberais, pelo enfrentamento à violência contra as mulheres e à criminalização dos movimentos sociais; promovendo o debate público sobre os perigos da permanência das ameaças ao direito à livre organização e manifestação da sociedade, os direitos das mulheres, da classe trabalhadora, dos povos indígenas, quilombolas e tradicionais e da população negra e LGBTQIA+.

Participar de articulações nacionais e internacionais dos movimentos de mulheres e redes de organizações de direitos humanos, em especial da Articulação de Mulheres Brasileiras – AMB, da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político, do Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos, da Plataforma DHESCA, da rede de proteção das Organizações da Sociedade Civil – OSCs e Movimentos Sociais e da Articulación Feminista Marcosur.

Realizar processos de formação para a reflexão e ação política, que contribuam para a transmissão e a apropriação pelas redes e movimentos do know-how que o Cfemea desenvolveu nas ações de advocacy e de articulação política, subsidiando iniciativas coletivas de incidência política por meio de comitivas, campanhas, jornadas e frentes de lutas.

Nesta linha de ação, entre as principais atividades para o próximo período:

a) Construir, ampliar e fortalecer redes/articulações nacionais pelo reconhecimento dos direitos sexuais e direitos reprodutivos e pela laicidade do Estado, realizando o acompanhamento dos projetos legislativos que possam comprometer a garantia dos direitos e os projetos de lei que precisem ser incentivados.

b) Atuar coletivamente pelo direito à seguridade social universal, solidária e pública e pela transformação do sistema político para ampliação da democracia e por maior participação das mulheres nas eleições e nas instituições legislativas e políticas.

c) Articular a ação do movimento feminista com outras organizações da sociedade civil contra a criminalização dos movimentos sociais e contra a criminalização das mulheres em situação de abortamento.

d) Fomentar o apoio à luta dos movimentos de mulheres e feminista pelo enfrentamento à violência contra as mulheres.              

e) Fortalecer a incidência política através da formação na ação, entendida como uma metodologia de aprofundamento das análises sobre questões estratégicas do feminismo.

f) Atuar na construção das coletivas de luta, coordenação nacional e agrupamento local da Articulação de Mulheres Brasileiras - AMB.

g) Incidir e atuar localmente – Distrito Federal e entorno – em defesa dos direitos das mulheres.

h) Participar de articulações do campo dos direitos humanos, em especial da Plataforma de Direitos Humanos – DHESCA/Brasil e do Comitê de Defensores e Defensoras de Direitos Humanos.

i) Fortalecer a ação feminista regional, em especial por meio da Articulación Feminista Marcosur (AFM).

j) Participar da Plataforma Nacional pela Reforma do Sistema Político e outras iniciativas da sociedade civil em defesa da democracia.

k) Participar e acompanhar processos de participação popular em frentes parlamentares no Legislativo Federal, em especial a Frente Parlamentar Feminista e Antirracista com Participação Popular.                                          

l) Fortalecer redes locais, regionais e internacionais que articulem o apoio e a solidariedade internacional para a vocalização de denúncias e situações de violação de direitos das mulheres com foco nos direitos sexuais e reprodutivos e justiça reprodutiva.

RESULTADO

Articulações e lutas feministas fortalecidas em ações nacionais, regionais e locais em favor da democracia, do Estado laico e dos direitos sexuais e reprodutivos.

5.3. Fortalecimento da Universidade Livre Feminista – ULF

Desde fins de 2007, o Cfemea vem construindo a Universidade Livre Feminista pensada de forma colaborativa por mulheres de diferentes identidades e campos de atuação. A Universidade Livre Feminista é um espaço para a reflexão, para a troca de ideias e de experiências baseadas em práticas políticas e pedagógicas libertárias, transformadoras das e para as mulheres. Trata-se de uma iniciativa coletiva e colaborativa que envolveu, em diferentes momentos e situações, além do Cfemea, as organizações feministas SOS Corpo e Cunhã, além de vários de coletivos de educadoras e colaboradoras.

Na Universidade Livre Feminista, têm sido mesclados recursos de educação a distância (EAD) e processos presenciais de educação e mobilização dos movimentos sociais, em especial, os movimentos feministas. A formação política – por meio de cursos online, de jornadas de formação na ação e de conferências livres – e a comunicação política – por meio de um portal eletrônico dinâmico e catalisador de encontros e diálogos – são estratégias para a Universidade Livre Feminista, que também assumiu compromissos com a construção de novos processos e novas formas de organização feminista.

Por uma série de motivos, a Universidade Livre Feminista não conseguiu superar barreiras administrativas, financeiras e tecnológicas que a impossibilitaram de saltar para um estágio de autossustentação. Isso fez com que coletivos feministas e organizações que não têm meios próprios para manterem seus projetos de formação não conseguissem permanecer nas atividades e gestão da ULF. No início de 2022, o SOS Corpo decidiu não continuar a fazer parte da ULF e passar a conduzir os processos formativos e cursos como atividades internas da entidade. Em 2021, outros coletivos, por falta de financiamento ou por discordâncias pontuais, acabaram também se afastando da ULF. O Cfemea foi a única organização feminista a manter a ULF e, em concordância com as demais, assumiu a responsabilidade por manter, atualizar e conduzir o projeto da ULF a partir no final de 2022.

Em novembro de 2022, foi inaugurado um novo portal desenvolvido com características de repositório e como meio de refletir o que a ULF fez nos últimos anos. A partir dele o Cfemea iniciará a reconstrução da Universidade Livre Feminista, mantendo e atualizando a proposta inicial.

A prioridade na manutenção da Universidade Livre Feminista permanece entre as diretrizes do Cfemea. Ela se articulará com as demais linhas de ação e será uma forma de exercício da comunicação, difusão de conhecimentos e articulação. Da mesma forma que em 2007 e nos anos seguintes, o Cfemea acredita que essa proposta deva continuar como um instrumento coletivo, inovador e participativo, que pode ser um meio de furar as bolhas onde se conservam ou são aprisionadas as organizações e coletivos feministas e mobilizar e dialogar com grandes segmentos da população feminina e com movimentos sociais de massa.

Ao atualizar a foma de uso das tecnologias informativas e comunicativas (TICs), a começar pelo portal recém inaugurado, serão implementados mecanismos de comunicação e produção colaborativa de informações e documentos. Será reconstruída a Biblioteca Feminista (os documentos antes existentes foram perdidos ou apagados) e convidadas a participar desse processo organizações universitárias e coletivos que ainda não têm repositórios próprios ou que concordem em migrar os seus para um ambiente comum. Os repositórios criados e mantidos poderão ter o caráter público ou restritos a determinado grupos de pesquisadoras e ativistas. Com o decorrer do tempo, projetos de financiamento para a ampliação de repositórios e bibliotecas poderão se apresentados a entidades públicas de financiamento de pesquisa.

Os coletivos que se afastaram nos últimos anos serão contatados em primeiro lugar, para se verificar os motivos do afastamento e iniciar diálogos para a construção de caminhos conjuntos. Nenhuma restrição haverá à aproximação de entidades e coletivos feministas ao projeto da ULF, ao mesmo tempo que serão também procuradas organizações feministas, universidades similares e coletivos de estudantes, pesquisadoras e educadoras na América Latina e no Caribe, nos países de língua portuguesa em África e na Ásia e junto a organizações feministas que desenvolvem ou se relacionam com projetos de universidades livres na Europa.

Nesta linha de ação, entre as principais atividades para o próximo período:

a) Firmar a Universidade Livre Feminista como um território (virtual, presencial, híbrido e potencial) livre, autônomo, ativista e voltado ao fortalecimento do feminismo, à produção de conhecimento, à difusão e à educação, onde as mulheres receberão a acolhida necessária para o desenvolvimento de suas potencialidades e que possam desenvolver de modo seguro seus projetos coletivos e individuais direcionados à liberdade, na luta antirracista para a superação do patriarcado, ao estudo e à manifestação de reflexões.

b) Assegurar espaço, na plataforma da Universidade Livre Feminista, para a guarda dos conteúdos (textos, vídeos, diálogos virtuais) de autocuidado e cuidado entre ativistas, possibilitando uma maior articulação dos grupos.

c) Contribuir para a reorganização da Biblioteca Feminista Virtual e criar as condições para a construção da TV Feminista, da Rádio Feminista, e outros projetos de comunicação, repositórios e expressão da crítica e da criatividade feminista.

d) Criar um plano de cursos e de processos continuados de debates e estudos individuais e coletivos sobre temáticas demandadas por coletivos e movimentos feministas.

e) Formar um plano de ação para a realização do potencial de contato, reflexão e difusão de ideias e conhecimentos que fortaleçam as mulheres na busca e garantia de seus direitos e para a construção de políticas públicas que possibilitem a realização dos direitos das mulheres anunciados na Constituição da República e na legislação.

f) criar um modelo de financiamento e auto-sustentabilidade financeira e material da ULF e dos projetos que a ela se agregarem.

 

RESULTADO

Formação Política feminista na Universidade Livre Feminista contribui para ampliar a força do movimento feminista autônomo, crítico, criativo e antissistêmico.

5.4. Construção de uma comunicação ativa e colaborativa

A comunicação tanto aparece como um espaço próprio de incidência como um conjunto de processos que se entrecruzam com todas as atividades do Cfemea. E são estes sentidos múltiplos que serão dados às ações de comunicação do Cfemea neste programa institucional.

A comunicação passa a ser estratégica, muito mais que uma forma de divulgação daquilo que a entidade realiza, a comunicação passa a ser vista pelo Cfemea como parte do processo de  autocuidado e cuidado coletivo entre ativistas, de debate e diálogo sobre o que entendemos e como praticamos o feminismo, como nossas parceiras entendem e praticam, como podemos realizar a formação. Do mesmo modo, a comunicação e as disputas a ela relacionadas são parte da incidência política.

A comunicação é vista como meio de informar e, por isso, como processo de discussão, de crítica, de reflexão sobre o que está sendo informado, seu contexto e o que significa para os movimentos feministas e para as mulheres. Conteúdo, forma, quem comunica e com quais significados.

O estabelecimento de instrumentos colaborativos e participativos também fazem parte desse novo olhar sobre a comunicação. É estratégico para a inserção política do Cfemea e sua ação formativa, que outras feministas possam agir sobre nossos espaços comunicativos, participar da crítica e da evolução do uso de ferramentas, questionar conteúdos e propor pautas.

Por isso, a proposta é usar o máximo de instrumentos que auxiliem a formar comunicadoras feministas, em ambientes seguros e abertos, colaborativos e transparentes.

A retomada do Jornal FÊMEA, encerrado provisoriamente em 2014, faz parte desse esforço de informar, comunicar, dialogar e criar meios para o fortalecimento dos movimentos e coletivos feministas e de mulheres.

Ao mesmo tempo, as ações comunicativas do Cfemea deverão se integrar com a Universidade Livre Feminista, apoiando a criação de mecanismos que possibilitem a instituição, ao longo dos próximos anos, havendo financiamento próprio para isso, de uma TV Feminista, de uma Rádio Feminista, integrando meios audiovisuais que auxiliem a formação, a pesquisa, a crítica feminista e a divulgação para grandes públicos.

RESULTADO

Ampliação da ação colaborativa na comunicação do Cfemea, com aumento no número e na qualidade dos produtos comunicativos feitos de forma colaborativa e com efeito sobre a formação política e o ativismo feminista.

  1. Práxis e método de trabalho

Para tanto, como método de trabalho, nos valemos de distintas metodologias:

6.1. A formação feminista para o autocuidado e o cuidado entre ativistas ultrapassa a dimensão cognitiva do aprendizado, para envolver também a corporeidade (sensações, emoções e intuições) num processo vivencial e reflexivo de autoconhecimento, autotransformação e apropriação de métodos e técnicas para a promoção do cuidado coletivo. O método visa a que se incorpore, se conheça e se viva outra experiência pessoal de convivência relacional, fora dos parâmetros ordinários, de maneira que cada ativista possa se conhecer mais, e também experimentar e inventar outros modos de viver e se relacionar, se transformar e transformar o mundo, a partir das realidades e dos contextos soberanos em que cada uma vive e atua.

6.2. A formação na ação consiste de uma proposta pedagógica que envolve pelos menos três passos: a) a eleição de uma situação-problema para ser enfrentada; b) a realização de uma análise teórico-crítica à luz do feminismo e das experiências das mulheres, sobre aquela situação e as questões que impactam a vida das mulheres; e, c) o desenvolvimento de uma (ou mais) ação política visando provocar mudanças positivas naquela situação. Esta ação se constrói de acordo com cada situação-problema e da análise coletiva que se faz dela, bem como da forma que se considera mais estratégica e/ou possível enfrentá-la. É uma metodologia concebida para responder aos desafios que temos pela frente, em termos de resistência política, de aprofundamento das análises sobre as questões que impactam a vida das mulheres, e da organização colaborativa e multifocalizada das iniciativas.

6.3. A formação política feminista é a metodologia adotada na Universidade Livre Feminista desde a sua origem, centrada no diálogo, estudo, pesquisa e compartilhamento de práticas e reflexões coletivas. Buscamos promover o autoconhecimento, assim como o encontro, o cuidado e o acolhimento entre as participantes. A práxis educativa feminista é a sua base metodológica, com fortes referências na pedagogia de Paulo Freire, o que significa que acreditamos que o diálogo e a experiência dos sujeitos são geradores de um processo reflexivo e de autoconscientização voltado para uma ação transformadora da realidade. Nela, a experiência vivida a partir das relações sociais de gênero, raça, classe e sexualidade têm um lugar central, fazendo valer a máxima “o pessoal é político”. A formação pode se dar por meio de programas formativos estruturados, na forma de cursos, seminários e outros meios, como também na forma de caminhos de diálogos continuados e trocas de experiências entre pessoas, coletivos e entidades. Os novos caminhos da Universidade Livre Feminista buscarão integrar feministas e entidades feministas dos países de língua portuguesa, iniciando com o diálogo com entidades e coletivos formados por feministas que tiveram sua formação no Brasil, por meio de intercâmbios oficiais ou não, e por aquelas que responderem a chamados de intercâmbio com o Cfemea. O suporte à continuidade dos diálogos poderá se dar com a criação de mecanismos, ferramentas e instrumentos computacionais, disponibilização de espaços virtuais (digitais) nos servidores utilizados pelo Cfemea e pela Universidade Livre Feminista e por meio do desenvolvimento de projetos em comum, como projetos de desenvolvimento de cursos e outros intercâmbios, valorizando os saberes e a cultura de todas aquelas que estiverem participando, de forma horizontal e de trocas interculturais.

6.4. A articulação política é uma via importante de organização e acumulação de forças entre as mulheres. Nos articulamos para expandir e fortalecer os movimentos de mulheres, mobilizar processos de resistência, autotransformação e transformação social, convictas de que transformamos o mundo na medida em que nos transformamos a nós mesmas e aos nossos movimentos. A nossa práxis política bebe da fonte do feminismo latino-americano, orientado a despatriarcalizar, desracializar e decolonizar o poder e as relações sociais. Firma-se nos princípios da horizontalidade, da auto-organização e autonomia das mulheres, do diálogo intercultural e do reconhecimento mútuo, da diversidade entre as mulheres e da igualdade de direitos, em sintonia com o conceito de Ubuntu (a palavra de origem bantu se refere a uma ética antiga, a uma filosofia africana que trata da relação entre as pessoas, reconhecendo que quando uma pessoa é afetada todas as suas semelhantes também são “Eu sou porque nós somos”).

6.5. A comunicação política é um componente fundamental das nossas estratégias. Está direcionada à criação e difusão de conteúdos destinados a alargar os espaços na disputa de narrativa sobre direitos. Visa contribuir para a difusão de ações e posições feministas, campanhas e materiais de apoio à formação e à articulação em redes de artivismo e ciberativismo, no intuito de fortalecer processos de resistência e lutas feministas. O momento atual nos desafia a desenvolver novas estratégias de comunicação, mais seguras, menos reféns das redes sociais e do chamado Big data, e mais direcionadas às redes internas dos movimentos sociais, mas promovendo o debate público. O processo de comunicação política integrada ao ativismo e a análise política para a defesa dos direitos sexuais e reprodutivos e da democracia passa a ser visto como um campo de diálogo, procurando trazer os movimentos, coletivos e entidades feministas para a interlocução com o Cfemea e a Universidade Livre Feminista, com a abertura de canais para que possam se expressar sempre que quiserem e por onde iremos amplificar suas vozes. O novo portal do Cfemea e a reformulação que viermos a fazer no portal da Universidade Livre Feminista incorporará as ferramentas e suportes para que as feministas, os coletivos e os movimentos possam ter espaços virtuais de comunicação, repositórios e outros.

 

  1. Fortalecimento institucional

 

Garantir as condições institucionais para a realização dos nossos objetivos como organização feminista e antirracista, respeitando os princípios éticos e democráticos do Cfemea é um grande desafio deste Programa Institucional.

Permanecem as iniciativas legislativas dirigidas a criminalizar a luta dos movimentos sociais e das organizações, bem como manipular a sociedade alargando de maneira forçada o conceito de terrorismo para incluir organizações da sociedade civil que lutam por direitos em quaisquer atos de manifestação pública. Uma das táticas corriqueiras nesse sentido tem sido, há mais de uma década, incluir em projetos de lei que tratam de segurança pública ou regulamentam direitos de manifestação artigos que acabam por criminalizar ou cercear a ação política da sociedade, como foi o que aconteceu com projetos relativos à garantia de segurança de competições internacionais realizadas no Brasil e o caso da regulamentação do lobby PL 4391/2021. Desde os anos 1990, várias iniciativas governamentais e legislativa conseguiram ser barradas. Mas, nas últimas duas décadas a vigilância eletrônica em massa, as tentativas de infiltração de agentes policiais e militares em movimentos sociais, o uso de artifícios para a criação artificial de comprometimento de ativistas sociais com a suposta prática de crimes e a conivência do Ministério Público e do Judiciário com essas práticas têm causado enormes danos aos movimentos, às entidades e às ativistas. A garantia da segurança é um desafio que as entidades e os movimentos não têm conseguido vencer com o sucesso que temos tido no Legislativo.

O cenário de vigilância e criminalização tem atemorizado entidades e movimentos que acabam por reduzir sua presença nos meios de comunicação e utilizar de forma tímida os recursos das tecnologias da comunicação e informação.

O enfrentamento a esses ataques não pode gerar a autocensura e a redução do ativismo. O Cfemea refez a sua política de comunicação no segundo semestre de 2022, atualizou o portal e vários instrumentos de comunicação e saiu da condição de auto-restrições e autocensura, que estava sendo chamado internamente de comunicação minimalista, para um processo de maior ativismo na comunicação e na difusão de denúncias, proposições e análises. Foram reforçados os instrumentos de segurança digital para que seja possível trilhar um caminho mais ousado de comunicação e ativismo. Compreendemos que a autocensura, a comunicação minimalista e a redução da exposição não são meios de proteção nem evitam a ação policial, política ou de criminalização jurídica.

Uma série de ações previstas no programa institucional anterior, voltadas à gestão e ao fortalecimento institucional, não puderam ser executadas, foi um período de enormes dificuldades que afetaram diretamente a gestão e administração da entidade. Contudo, no ano de 2022 os problemas começaram a ser corrigidos com a implantação de novos procedimentos administrativos e jurídicos na gestão de pessoal, foram estabelecidos contratos para a prestação de serviços e aquisição de bens e materiais, controle financeiro e gerencial.

A partir de janeiro de 2023 o Cfemea adotará um sistema informatizado de gestão, que incorporará em uma mesma plataforma informatizada, e de acesso por toda a equipe, ferramentas de planejamento, gestão e acompanhamento de tarefas de pessoas e equipes, estabelecimento de métricas e verificação de resultados, de comunicação interna e externa e planejamento financeiro. Em um segundo momento, quando houver alterado a cultura interna, integrará a essa plataforma processos automatizados de controle financeiro.

Quer por consequência das restrições impostas pelo isolamento social requerido nos períodos mais difíceis da pandemia do Covid19, quer por causa das fragilidades técnicas e gerenciais da equipe encarregada pela administração da entidade, nos últimos anos o processo de decisão e gestão caminhou para uma cultura hierarquizada, pouco transparente e com forte marca de informalidade. Isso foi superado. Mas a horizontalidade e a responsabilidade coletiva sobre as decisões é um processo cultural que demanda tempo, aprendizado e confiança. Essa parte está em processo de construção e estará entre as prioridades deste programa institucional.

Ao mesmo tempo em que a gestão passará a ser horizontal e adotará mecanismos e procedimentos de co-responsabilidade, isso se fará com alteração da proposta de gestão articulada com a compreensão de que o Cfemea tem um programa que articula várias atividades e ações em um mesmo processo. As ativistas, consultoras eventuais e prestadoras de serviço fazem parte de uma única equipe que executa tarefas complementares e articuladas. As tendências ao individualismo e à construção de bolhas serão evitadas ou reorientadas com a adoção de métodos de gestão ágil.

RESULTADO

Cfemea reorganizado, com implantação de medidas de segurança e de proteção digital, documental e física, com suas estruturas administrativas e de decisão funcionando regularmente com uso de tecnologias e ferramentas computacionais de gestão transparente e ágil e equipe capacitada e fortalecida

 

[1] Violência sexual infantil, os dados estão aqui para quem quiser ver. Anuário de Segurança Pública, Anuário Brasileiro 2022. https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/07/14-anuario-2022-violencia-sexual-infantil-os-dados-estao-aqui-para-quem-quiser-ver.pdf

[2]     https://www.cartacapital.com.br/sociedade/mais-da-metade-da-populacao-em-idade-de-trabalhar-esta-desempregada-diz-ibge/ (acessado em 21 de novembro de 2022)

[3]     https://g1.globo.com/dia-das-mulheres/noticia/2022/03/08/mulheres-sao-a-maioria-dos-desempregados-457percent-das-que-tem-idade-de-trabalhar-estao-ocupadas.ghtml (acessado em 21 de novembro de 2022)

[4]     https://g1.globo.com/economia/noticia/2022/07/06/mais-de-60-milhoes-de-brasileiros-sofrem-com-inseguranca-alimentar-diz-fao.ghtml (acesso em 21 de novembro de 2022)

[5]     https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2022/09/13/milicia-cresce-161-e-ocupa-metade-do-territorio-do-crime-no-rj-diz-estudo.htm#:~:text=Mil%C3%ADcia%20cresce%20387%25%20e%20ocupa,crime%20no%20RJ%2C%20diz%20estudo&text=Em%20um%20per%C3%ADodo%20de%2016,anos%20de%202006%20e%202021. (acesso em 21 de novembro de 2022)

[6]     https://www.em.com.br/app/noticia/diversidade/2022/07/16/noticia-diversidade,1380407/aborto-no-brasil-acesso-precario-estigma-e-morte.shtml (acesso em 22/11/2022)

[7]     https://www.uol.com.br/eleicoes/videos/?id=lula-diz-ser-contra-o-aborto-04028C183266C0897326

[8] https://ambfeminista.org.br/

[9] https://www.plataformadh.org.br/quem-somos/organizacoes-filiadas/

[10] https://comiteddh.org.br/

[11] https://observadhecovid.org.br/

[12] https://abong.org.br/

[13] https://www.mujeresdelsur-afm.org/

[14] Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual Infanto-juvenil (18 de maio),  Dia Internacional de Luta pela Saúde da Mulher/Dia Nacional da Redução da Morte Materna (28 de maio), Dia Internacional da Mulher Negra Afro-latino-americana e Caribenha (25 de julho), Lei Maria da Penha (7 de agosto), Dia Internacional da Mulher Indígena (5 de setembro),  Dia Internacional contra a Exploração Sexual e o Tráfico de Mulheres e Crianças (23 de setembro), Dia pela Discriminação do Aborto na América e Caribe (28 de setembro), Dia Nacional de Luta Contra a Violência à Mulher (10 de outubro),  20- Dia Nacional da Consciência Negra (20 de novembro), Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres (25 de novembro), Campanha 16 dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres (dezembro).

[15] https://ww2.contag.org.br/tema/marcha-das-margaridas

[16] https://brasil.un.org/pt-br/192017-festival-latinidades-destaca-importancia-das-mulheres-negras

[17]   https://www.ipea.gov.br/cartadeconjuntura/index.php/category/mercado-de-trabalho/#:~:text=Estes%20movimentos%20da%20taxa%20de,ante%20a%20registrada%20em%20julho. Acessado em 22 de novembro de 2022.

[18]   https://www.ihu.unisinos.br/624238-trabalhadores-perderam-renda-nos-ultimos-dois-governos. Acessado em 24 de novembro de 2022.

[19]   https://www.oxfam.org.br/noticias/fome-avanca-no-brasil-em-2022-e-atinge-331-milhoes-de-pessoas/#:~:text=Em%202022%2C%2033%2C1%20milh%C3%B5es,pouco%20mais%20de%20um%20ano. Acessado em 22 de novembro de 2022.

[20]   https://outraspalavras.net/outrasmidias/mulheres-aprisionadas-uma-historia-do-patriarcado/ e https://www.conjur.com.br/2022-mai-16/alexandre-pontieri-encarceramento-massa-mulheres acessados em 22 de novembro de 2022.


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