Quase lá: Antiguidade é um critério neutro?

Por Cynthia Torres Cristofaro

Não sou entusiasta da escrita técnica, nem tenho a pretensão de desenvolver um trabalho científico. Nessa altura da vida, passada dos 50 anos de idade, filhos quase criados, pensando na comemoração dos 30 anos de carreira, dou-me licença às vezes para fazer o que gosto: contar histórias, trocar experiências.

Fazendo isso, percebo que não estou tão sozinha como frequentemente me sinto, e que muitas vezes caminhei sozinha apenas porque não percebi que havia gente ao meu lado. 

Entrei na magistratura de São Paulo em 1994. Como passei bem colocada, pude escolher ser juíza substituta em uma circunscrição próxima da minha casa. Teve quem precisou ir para muito longe, deixando para trás namoros, casamentos, família... Os homens não acompanhavam as mulheres, eram as mulheres que acompanhavam os homens. A vida era assim… Acho que ainda é um pouco. 

Perdi o primeiro concurso de promoção (distraída...), promovi no segundo por merecimento aproveitando a boa classificação, pensando em ficar perto de uma cidade grande onde eu pudesse morar e encontrar meu namorado sem causar muita fofoca. 

Durante o concurso me perguntaram tanto sobre as roupas que eu vestiria e sobre o meu entendimento sobre o uso de biquínis por jovens juízas que o escândalo de ser visitada pelo namorado foi um ponto a considerar… assim montei minha listinha de prioridades, que abrangia cidades separados por 600 quilômetros. 

A partir daí, merecimento ou antiguidade davam mais ou menos na mesma. Em São Paulo não havia (e ainda não há) outro critério para promoção além da sua posição na lista de antiguidade. 

Mas havia algumas especificidades interessantes: para se promover a varas abertas no merecimento, precisava "fechar a grade", ou seja, você tinha que se inscrever para todas as vagas disponíveis, e não havia publicação da grade de inscritos e nem possibilidade de desistência. Tinha quem era bom de cálculos e quem ficava na porta da sala que recebia as inscrições para protocolar a sua no último minuto. E quem topava qualquer lugar. 

Para mim, não dava. Sabe aquela cidade lá na fronteira onde o único lugar para você morar era a parada de caminhão? Pois é...

Também me perguntaram muito como eu faria numa cidade dessas onde juiz morava no fórum se houvesse um promotor morando no fórum também. Para uma conhecida perguntaram até o que ela faria se aparecesse uma barata no hotel.

Tenho tantas pérolas da entrevista reservada para contar…

Não é frescura, é questão do que era ou não viável para uma juíza mulher. Mudar sabe Deus para onde sem muita possibilidade de escolher pode ser ok para homem sozinho, mas para mulher, sobretudo com família, não é. 

Se solteira e sem filhos já foi complicado escolher onde ir trabalhar, depois, então... a lista de antiguidade vai passando na sua frente, porque simplesmente não dá para ir para qualquer lugar tendo marido e filho pequeno. Tem que ter alguém para cuidar do bebê, escola para colocar a criança, tem que ter estrada boa senão o marido não vai no fim de semana, ou o marido fica reclamando que você não veio.

Sem contar aquelas comarcas onde os mais antigos tinham a cara de telefonar para a mulher que pretendia se inscrever para alguma vara vaga dizendo que ali não era bem-vinda... pois é, vi isso sim, mais de uma vez. 

Meu jeito foi vir ser auxiliar da Capital. Na época, praticamente só juízes homens titulares, e para trabalhar como auxiliar em uma  vara era a convite do titular. Fórum criminal, onde eu queria trabalhar, não tinha nenhuma mulher titular de Vara, isso em pleno ano 2000. Ouvi tanto que vara criminal não era adequada para mulher que até cansei. 

Quase me desculpei com o juiz titular que eu auxiliava quando fiquei grávida... A cara que ele fez quando comentei da gravidez... Acho engraçado. Licença maternidade sempre achei que é direito de quem nasceu, não de quem pariu. Mas como incomoda os homens, né? 

Não era incomum que seu lugar não estivesse mais lá na volta da licença maternidade. Olhando hoje, vejo que era um medo comum às mulheres, que a gente nem pensava em compartilhar. 

Antiguidade de novo para ser titular de entrância especial, mas outra vez não dava para ir para qualquer lugar: filhos para levar e buscar na escola, ex-marido querendo delivery nos dias de visita, reunião de escola, pediatra, supermercado... E lá se vai de novo a lista de antiguidade passando na sua frente.

Meus colegas (homens) de concurso estão dizendo que está chegando a vez do nosso concurso ir para o segundo grau, mas olho a lista e vejo como minha vez está longe. Que coincidência do destino, a ponta da lista é quase toda masculina... Praticamente um acidente genético!

Você tem filhos? Tem pais idosos? Quem cuidou deles enquanto você andava pelo Estado, fazia mestrado, trabalhava longe? Se você é mulher, sua resposta deve ser bem parecida com a minha: não deu para andar pelo Estado, nem para fazer mestrado, não dá para ir trabalhar longe. 

Mas não foi minha escolha? Foi sim. Mas é justo que eu tenha precisado desescolher tantas coisas enquanto meus colegas homens puderam escolher tudo?

Então... neutralidade onde?

fonte: https://www.conjur.com.br/2023-set-25/cynthia-cristofaro-antiguidade-criterio-neutro2

A paridade de gênero para promoção de magistrados ao 2º grau

26 de setembro de 2023 - Conjur

 

Por Jorge Bezerra Ewerton Martins

A comunidade jurídica do Brasil está atenta à deliberação sobre a paridade de gênero para acesso de magistrados aos tribunais de segundo grau.

Em tempos de constitucionalismo freestyle, a feição de constitucionalidade – ou não— dos atos e normas parece ser realizada a la volonté. Cada um acha o que quiser, sem se preocupar em buscar fundamentos. O "eu acho" é a pedra angular da pós-verdade.

Os insurgentes à resolução alegam, justamente, a inconstitucionalidade da implementação da paridade ao enunciado-regra da antiguidade de magistrados para fins de promoção, na forma do artigo 93, II, alíneas bc e d, da Constituição.

As promoções dos magistrados se dão por duas formas, alternadamente: por antiguidade (observada estritamente a lista de antiguidade da carreira) e por merecimento (quando a promoção decorre da escolha objetiva dos membros da corte, entre os inscritos na concorrência).

O enunciado-regra da antiguidade, grosso modo, prescreve que o magistrado mais antigo será promovido por ser o mais antigo da lista de antiguidade; e, em caso de promoção por merecimento, poderão concorrer os magistrados que estejam na primeira quinta parte da lista de antiguidade na carreira. A lista de antiguidade é o que a palavra significa: o mais velho na carreira, o que tem mais tempo de carreira. Não confundir antiguidade de carreira com antiguidade geriátrica.

O sofisma da inconstitucionalidade da resolução não é sobre competência do CNJ para implementar a paridade de gênero, nessa situação concreta, mas se o conceito do critério de antiguidade, na forma disposta no artigo 93 da CF, admite complementariedade.

Antes de entrar no núcleo da questão, importante deixar claro: o voto da conselheira Salise Sanchotene é técnico, substancioso e com expressivo senso de realidade.

A implementação da paridade de gênero, por meio de resolução do CNJ, no enunciado-regra que prescreve o critério de antiguidade como veeiro das promoções de magistrados aos tribunais de segundo grau, é constitucional.

Explico o porquê me socorrendo dos ensinamentos de Humberto Ávila [1], no que tudo que ora defendo faço referência total.

Tal princípio (imbuído de caráter prescritivo), pode ser complementado por norma infraconstitucional que descreva como e de que maneira será aplicado o critério de antiguidade para as promoções de magistrados, não o afrontando de maneira alguma.

No caso, cabe a vírgula constitucional: a promoção de magistrados deve obedecer aos critérios de antiguidade e merecimento, observada a paridade de gênero na composição dos tribunais.

Como informa Humberto Ávila, o princípio constitucional é enunciado que estabelece uma finalidade sem prescrever o meio necessário para atingi-la. Ou seja, o critério de antiguidade não pode ser concretizado meramente com uma lista da ordem cronológica de ingresso dos membros de determinado tribunal. Ao contrário, este princípio deve efetivar o espírito da Constituição, impregnado por todo o bloco de constitucionalidade, ampliando o paradigma da equidade entre indivíduos, para obtenção da qual não se pode olvidar a paridade de gênero.

Seria um raciocínio curto cogitar como se há três décadas tivéssemos a mesma consciência e percepção de mundo que hoje, e a Constituição fosse um veículo com farol na traseira, com o qual não se pode olhar para frente.

A norma constitucional nem sempre irá descrever em minúcias como seu comando deve ser efetivado – como se fosse um fim em si mesma. Muitas vezes, apenas cumpre o encargo de dispor qual o conceito deve orientar a sua efetivação. A implementação de paridade de gênero harmoniza o interesse da magistratura (ascensão funcional) ao interesse da sociedade (uma sociedade mais fraterna e mais igualitária).

Inclusive, esse o ponto que merece aparte no voto da relatora: a criação de duas listas (uma de homens e outra de mulheres) fere o princípio do critério de antiguidade, visto que alargará as duas listas para além da primeira quinta parte dos magistrados mais antigos na carreira.

A forma de conciliar esses dois pontos (concretização da paridade de gênero e observância do critério de antiguidade) é que a lista seja mantida como única (ou mista, como nominada), mas que, sempre que a vaga seja destinada apenas para mulheres, concorrerão apenas as magistradas que compõem a primeira quinta parte da lista de antiguidade da carreira (lista única). Não importa quantas mulheres estejam figurando nessa primeira quinta parte, apenas estas podem concorrer à vaga, seja promoção por antiguidade ou merecimento.

Como solução ao extraordinário, caso nenhuma mulher figure a primeira quinta parte da lista de antiguidade, que seja a vaga preenchida pela primeira mulher mais antiga na segunda parte da lista de antiguidade, se preencher os demais requisitos para tanto.

O critério de antiguidade não pode ser encarado como mera conta cartesiana de cabeças em fila indiana. Assim, por suposto, cabe em si a implementação de ações afirmativas de otimização da sociedade.

Mudar o status quo é missão hercúlea, sempre. Dessa vez, não seria diferente.

As contrarrazões da resolução sob exame é que criará privilégio (favorecimento) para mulheres, em detrimento dos homens, na carreira da magistratura. Contudo, a observância do contexto histórico mostra outra realidade. Em verdade, a estrutura histórica das cortes e decorrente sistematização dessas carreiras favoreceram os homens, para além de todos os motivos evidenciados no voto.

Falo do que há de mais comezinho: as empatias do ser humano.

Os homens sempre foram maioria nas carreiras de magistratura, máxime na composição das cortes. Apenas com o maior acesso das mulheres às carreiras jurídicas as cortes deixaram de ser unanimidade masculina, passando a ser maioria absoluta. A maioria deixou de ser absoluta para qualificada, e de qualificada para relativa.

Por serem os magistrados seres humanos, eles se empatizam, também, em razão de gênero, criando vínculos e formatando representatividades. Homens tendem a criar mais laços de intimidade e empatia com homens, e mulheres criar tais laços com mulheres. Por consequência, uma corte composta majoritariamente por homens tende a eleger mais homens que mulheres para as promoções por merecimento.

Essa instrumentalização do critério de antiguidade é obviamente informal, não previsto em norma – e mesmo inconfessável –, mas é verdadeiro, efetivo e concretizador da realidade.

Existem costumes que mudam normas, e existem normas feitas para mudar costumes.

A sociedade brasileira pode escolher aguardar que as mulheres ocupem majoritariamente as cortes para que se comece a ter mais promoções por merecimento de mulheres. Mas também pode – e é constitucional – uma norma impor (e acelerar) esse processo de equiparação nos espaços das cortes, aproximando o Judiciário da realidade.

Victor Hugo disse que "não há nada como o sonho para criar o futuro; a utopia de hoje, é carne e osso amanhã".

Existe um sem-número de mulheres que, ao longo do tempo, ajudaram a construir a magistratura brasileira, e foram preteridas nos espaços de exercício de poder em razão de gênero. E, inspiradas nelas, muitas outras mulheres ousaram romper esse paradigma obstaculizante. Ousaram sonhar.

Ainda orientado por Victor Hugo, sempre me vem à mente que "nada é mais poderoso do que uma ideia que chegou no tempo certo". O amanhã da paridade de gênero é hoje, e este momento é tão preciso quanto um trem suíço. Deixá-lo passar é um equívoco, atrasar a viagem é um retrocesso.

O tempo é agora.

 

[1] ÁVILA, Humberto. Competências tributárias: um ensaio sobre a sua compatibilidade com as noções de tipo e conceito. São Paulo: Malheiros, 2018.

fonte: https://www.conjur.com.br/2023-set-26/jorge-martins-paridade-genero-promocao-magistrados

 

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