Quase lá: Comemoração excludente

Comemoração excludente

A sudestinização do bicentenário do 7 de setembro de 1822 – a produção social de um vexame

 

 
 

Por PATRÍCIA VALIM*

A sudestinização do bicentenário do 7 de setembro de 1822 – a produção social de um vexame

 

Diferentemente do que se imagina, o projeto histórico do negacionismo bolsonarista de fazer a travessia do coração de Pedro I para cá está longe de ser o maior e o único vexame desse bicentenário do 7 de setembro de 1822 – sim, porque o bicentenário da independência do Brasil deve ser comemorado no momento em que a crise se tornou irreversível: 2 de julho de 1823. Quando o setor dominante da Província da Bahia aderiu ao projeto político de Pedro I em nome da manutenção do escravismo, entre outras razões.

No encerramento de um evento sério sobre “As independências do Brasil”, realizado ao longo da semana e organizado pelas entidades SEO, ANPUH e Portal do Bicentenário, ocorreu uma apresentação vexatória, desorganizada e preparada para desqualificar a pesquisa alheia por meio de critérios de validação histórica elaborados a partir da produção e do lugar institucional de produção de quem se auto promoveu à condição de árbitro/censor/comentarista de livros sobre a Independência do Brasil.

Por meio de um conjunto de Power Points (a escolha da apresentação não é arbitrária), o árbitro/censor/comentarista selecionou frases escritas nas redes sociais ou ditas em palestras e conferências, retirou a autoria e o contexto das mesmas, e passou a fazer comentários pretensamente analíticos, mas debochando de cada uma. Em seguida, o sujeito apresentou uma lista de 31 livros sobre o tema, “escolhidos arbitrariamente”, em seus próprios termos, que “ele não teve condição de ler por falta de tempo”, pois algumas foram lançadas recentemente.

Não obstante a falta de leitura – requisito básico para alguém comentar sobre o livro de outrem e que provavelmente os alunos dele são cobrados por isso –, o sujeito se sentiu no direito de classificar o que é uma obra séria de história ou não. O que é uma obra de esculhacho, ou, pior, apontou as obras que “não são esculachos porque em tempos de politicamente correto não cairiam bem”. Quem lhe conferiu essa autoridade? Ficou claro que o critério de validação histórica que o Juan Guaidó da historiografia utilizou para desqualificar a pesquisa alheia diz respeito a “ele, a foto dele e a sombra dele”, isto é à produção dele e de quem concorda com e dá projeção pública ao amontoado de platitudes dele.

Obstinado a seguir aquele show de horrores e de fragilidade analítica, o sujeito expôs vári(x)s colegas de profissão: questionou títulos e colocou em dúvida os conteúdos publicados nos livros recém lançados, que ele não leu, para afirmar coisas do tipo: “fiquei em dúvida sobre quem foi sequestrado, se dom Pedro ou o 7 de setembro ou o conteúdo histórico”; “o livro sobre as mulheres que estavam lá é fruto do atual movimento identitário, pois não passa de disputa de narrativa”; a Maria Felipa de Oliveira não existiu”; “não há protagonismo das mulheres na independência”.

Tá tudo lá no vídeo para quem for paciente e resistente ao sotaque. Ao final dos comentários, especialmente as duas últimas “conclusões”, ele ainda conseguiu o feito de contradizer suas próprias platitudes. Conseguiu também entrar para os anais desse bicentenário como o maior vexame da historiografia brasileira – sudestinização do vexame.

Assim, a questão central deste arrazoado é: se as obras são tão ruins e se tudo não passa de disputa de narrativa (memória dos vencidos), por que um professor doutor da USP, que gosta de repetir sobre os rigores metodológicos da disciplina histórica, perdeu tempo comentando sobre as obras que ele não leu no lugar de respeitar colegas de profissão, controlar a ansiedade para esculhambar a produção alheia e fazer uma conferência de fato? Por que a opção de constranger e ridicularizar colegas de profissão e suas produções, incluindo as minhas, no lugar de ressaltar a pujança de pesquisas de uma historiografia crítica do senso comum, com publicações apesar da pandemia, dos ataques à história e do brutal corte de verbas para a pesquisa histórica desse governo? Aliás, por que não criticá-lo no lugar de mirar o rancor contra quem está pesquisando muito?

A resposta é simples, mas não simplória: as publicações o incomodaram porque explicitaram a fragilidade de seu “argumento de autoridade” de capitão donatário da Independência do Brasil. Essa é uma das variáveis da sudestinização da história brasileira: legitimar a própria posição no campo por meio de hierarquizações entre eventos históricos, localidades e agentes, além de hierarquizar grupos de pesquisa e pesquisador(x)s. E essa disputa, sabemos, tem a ver com verbas para pesquisas e para tipos como ele continuarem falando sozinhos.

Quando um acontecimento histórico ocorrido no eixo Rio de Janeiro e São Paulo é nacionalizado, os acontecimentos históricos de outras localidades e protagonizados por agentes silenciad(x)s são esvaziados de historicidade no guarda-chuva da chamada história regional e/ou história identitária a despeito das evidências documentais em contrário.

O único “identitarismo” existente é o homem branco, sudestino, heteronormativo, petulante e que acha que pode fazer uma “conferência” para esculhambar livros que ele não leu e tá tudo certo. Trata-se de alguém preocupado em manter o lugar de destaque que ele acha que tem sobre a análise da independência de pesquisas que têm questionado de modo irrefutável a sudestinizacao que ele faz desse evento histórico.

Isso também ocorre com o tema da chamada “segunda escravidão” – não por acaso homens brancos da USP querendo pautar e hierarquizar as agendas de pesquisa de historiadores e historiadoras das demais localidades do país. O negacionismo histórico cresceu de maneira assustadora justamente por causa de posturas como essa e por causa do identitarismo do homem branco que se sente autorizado a fazer qualquer coisa, inclusive passar vergonha em escala planetária como aconteceu no encerramento do colóquio.

Por tudo isso, duas coisas. (1) se o catálogo de livros comentados a partir do título e da contracapa não passa de disputa de narrativa, livro “identitário” sobre algo menor como a história das mulheres e suas lutas por direitos, que esse tipo de comentarista continue encastelado no sudeste maravilha, cuidando com carinho do bicentenário do 7 de setembro de 1822 para não ficar triste – pariu Mateus que o embale, né?! Porque continuar convidando esse tipo de comentarista para ele reafirmar a sudestinização intrínseca à sobrevivência do grupo de pesquisa dele, é uma opção que pode ser evitada. Mas não é opção respeitar a pesquisa alheia e fazer crítica depois de ler um livro no lugar de passar vergonha.

(2) Não precisa fazer o sacrifício de ir para a Bahia falar que o 2 de julho não significou nada e que a Maria Felipa de Oliveira, falecida em 1873, não existiu. Ou ir fazer comentário sobre a insignificância da Bárbara de Alencar no Recife ou em ir para Alagoas duvidar da existência da Anna Lins. Bastava ler os livros arbitrariamente comentados a partir dos títulos que esse sujeito perceberia que com a democratização do acesso à graduação e a descentralização das verbas de pesquisa para outros programas de pós-graduação em História: nós já fizemos a nossa Confederação do Equador epistemológica, analisando a história das revoluções abortadas no norte e no nordeste. E ela não tem mais volta.

Por fim, quero mandar um beijo enorme para cada colega que me escreveu ontem e hoje sobre o vexame narrado acima. A coletânea que contribuo com um artigo é massa, e a pesquisa detalhada sobre o panfleto “Lamentos de uma Bahiana”, cuja autoria eu descobri, foi apresentada no colóquio massa que a querida orientadora organizou e está disponível no YouTube e faz parte do meu livro novo. Quero mandar um beijo em especial para a turma de professores/professoras e pesquisadores/pesquisadores da História/USP que não se enquadram em nada nessa postura arrogante e petulante vista ontem.

Vamos juntas, juntes e juntos na construção de uma história diversa, plural, situada e socialmente referenciada em oposição à violência historiográfica, ao pedantismo improdutivo e ao negacionismo histórico profissional como governamentalidade do bolsonarismo. Venceremos!

*Patrícia Valim é professora de história na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Autora, entre outros livros, de Conjuração Baiana de 1798 (EDUFBA).

 

fonte: https://aterraeredonda.com.br/comemoracao-excludente/

 

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