Quase lá: Filosofia

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    Mergulho nas ideias do pensador indígena, em possível diálogo com Heidegger e Butler. Eurocentrismo, diz, gesta a humanidade zumbi, sem memória e identidade. A perda do nós plural e criativo é o fim do mundo. E o ancestral, antídoto

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  • O desejo pós-capitalista, segundo Mark Fisher

    Em seus últimos ensaios, pouco antes do suicídio, pensador teorizou sobre como o sistema neutraliza toda alternativa, por meio de culpas e capturas. Há antídoto: desindividualizar o sofrimento e converter em prazer a consciência de classe

     

    OutrasPalavras

    Publicado 21/06/2024 às 18:35 - Atualizado 21/06/2024 às 18:45

    Por Álvaro Soler Martínez, no El Salto. Tradução: Glauco Faria

    “Quando uma entidade começa a agir
    contra o que é melhor para si e a destruir a si mesma
    — como, infelizmente, os seres humanos fazem com frequência,
    segundo observa Spinoza –,
    é porque forças externas tomaram conta dela”
    (Mark Fisher, Emotional Engineering, k-punk, 3 de agosto de 2004).

    As forças externas contras as quais Mark Fisher adverte são onipresentes, tentaculares e visíveis nos aparatos culturais da sociedade capitalista. Ligamos a televisão e um anúncio de alarmes contra roubo nos diz que a compra desse dispositivo nos trará segurança. Mudamos de canal e somos informados, em uma das dezenas de programas conservadores de entrevistas, que a imigração é um desafio ou, pior, uma ameaça que devemos enfrentar. Nossa identidade está em jogo, nosso bem-estar, quem somos ou o que achamos que somos.

     

    O ressentimento é lançado sobre nós, a classe trabalhadora, como uma isca que tendemos a morder. Longe de possuir uma forte consciência de classe, a cultura neoliberal cultiva uma falsa consciência de classe, uma autopercepção que está entrincheirada em uma construção reacionária de identidade.

    Como Georg Simmel nos alertou em Sociología del Extraño, o mecanismo de construção subjetiva diante da alteridade geralmente está associado à violência. Ou seja, todos esses mecanismos sociais e cognitivos que acionamos quando nos relacionamos com aqueles que percebemos como diferentes e externos ao nosso grupo tendem ao estigma, à incompreensão, ao ódio ou ao medo. Esses fatores são usados contra nós na cultura capitalista.

    Assim, acabamos percebendo como inimigos em potencial o trabalhador imigrante, o movimento feminista, o movimento antirracista e os movimentos sociais ligados a minorias historicamente oprimidas. Esses últimos são fundamentais para entender por que os discursos neofascistas estão avançando tão rapidamente entre a classe trabalhadora, estimulados pelas redes sociais, pela televisão, pelo cinema e pela literatura: individualismo, machismo, racismo, masculinidade, glorificação da violência e militarismo estão se aninhando cada vez mais nas fileiras dos trabalhadores, cada vez mais jovens.

    Também é fundamental vislumbrar como o capitalismo consegue esvaziar todas as expressões culturais alternativas que propõem novas estruturas de pensamento, ação e transformação da realidade. A maquinaria neoliberal as absorve como um parasita que, pouco a pouco, esvazia a vítima de seu conteúdo interno, deixando apenas a carcaça, enquanto a larva do capital dorme saciada atrás da casca.

    Assim ocorrem a colonização e a subsequente mercantilização de movimentos como o antirracismo ou o feminismo, bandeiras, em muitas ocasiões, de críticas mordazes ao capitalismo que, despojadas de sua análise de classe, tornam-se meras mercadorias neoliberais que sustentam o sistema.

    O filósofo citado no início deste texto, Mark Fisher, em sua obra póstuma Postcapitalist Desire: The Last Classes, assume a derrota esmagadora da esquerda nessas décadas de hegemonia neoliberal, uma derrota que decorre de como o capitalismo, como sistema social, capturou o desejo. Essa capitulação não pode ser compreendida sem a lógica dos processos de homogeneização e apropriação que o capitalismo realizou culturalmente.

    Consequentemente, para Fisher, o desejo do proletariado é completamente mercantilizado e incorporado à lógica econômica e mercantil capitalista. Como Fisher adverte nesse mesmo livro, com referência ao filósofo marxista Georg Lukács: “Para ver as coisas como externas a nós, não podemos estar nelas” (Fisher: 180).

    Dessa forma, a luta contra a alienação como base para o retorno a uma consciência de classe, mais necessária do que nunca, é o que Fisher nos chama a reivindicar para gerar novas formas de pensamento e desejo. Um novo rearmamento ideológico desvinculado do círculo vicioso que o capital constantemente projeta para nós como natural, imediato e normalizado: “Todos nós poderíamos estar trabalhando muito menos, e essa é a loucura da coisa (…) eles produzem uma escassez artificial de tempo para produzir uma escassez real de recursos naturais” (Mark Fisher, Post-capitalist Desire: 181).

    Por meio da frase acima, Fisher nos alerta sobre como a repressão no capitalismo tardio se baseia na repressão pela repressão, um paradoxo autoritário. Anteriormente, a repressão, além de exercer o controle social óbvio, era justificada em um suposto contexto de escassez de recursos. Mas com o capitalismo e o progresso tecnológico por meio das revoluções industriais e a estruturação de sociedades que têm acesso a uma grande quantidade de energia exossomática, o problema da escassez pode ser resolvido ou abordado pela primeira vez com solvência.

    No entanto, o capital coloca em movimento uma estrutura de repressão absoluta e sem precedentes, que subjuga o trabalhador por todos os lados e que tem como objetivo dinamitar a possível conscientização e a subsequente organização política. Qual é a chave para lidar com esse contexto, de acordo com Fisher? Atacar o realismo capitalista.

    Realismo capitalista versus pensamento de fronteira

    A realidade é o capitalismo e o capitalismo é a realidade, não é mesmo? Não há alternativa. Esse seria um dos pensamentos mais difundidos em nosso imaginário coletivo, incorporado a esse sistema hegemônico que tem todos os tipos de estratégias para construir essa ideologia do inamovível, que Mark Fisher batiza de realismo capitalista, um conceito mencionado algumas frases acima.

    Consequentemente, o realismo capitalista é uma restrição ideológica, um pensamento latente em todos os pensamentos atuais onde, como uma larva, sempre verte uma gênese comum: não podemos pensar fora do capital.

    Isso tem várias consequências. O pessimismo é normalizado e o imobilismo é justificado por pura lógica: qual é o sentido de tentar mudar as coisas se, no final, não podemos nem mesmo propor alternativas políticas para o futuro? Diante desse cenário, é lógico que a ansiedade e a depressão se aninham em abundância sobre nossas cabeças. Não é à toa que essa é a doença de nosso tempo: um sintoma coletivo do que a alienação pode causar. Um sintoma que, além disso, é difícil de detectar como social, já que o realismo capitalista atomiza nossa capacidade de análise, vendo tudo por meio de uma individualidade exacerbada; uma visão de prisão para entender as estruturas sociais que nos subjugam. Como o próprio Fisher adverte: “Há algum tempo, uma das táticas mais bem-sucedidas da classe dominante tem sido a responsabilização. Todos os membros das classes baixas são levados a acreditar que a pobreza, a falta de oportunidade ou o desemprego são culpa deles, e de mais ninguém. As pessoas se culparão em vez de culparem as estruturas sociais, que, da mesma forma, foram levadas a acreditar que não existem de fato” (Fisher, The Ghosts of My Life).

    Mark Fisher fala sobre isso com mais profundidade no livro Postcapitalist Desire (“Desejo pós-capitalista”), onde, com uma inquietação perceptível, ele busca nos pensamentos fronteiriços de nosso tempo – marxismo, aceleracionismo, filosofia pós-moderna etc. -pa chave para o modo como o sistema capitalista usa nosso desejo, molda-o, manipula-o e instrumentaliza-o por meio da publicidade, da mídia, da propaganda política e da cultura popular.

    O capitalismo, com grande inteligência, subjuga os possíveis desejos de nos relacionarmos de diferentes maneiras, atacando aquelas formas culturais que propõem alternativas: comercializando-as, deixando-as vazias de significado contracapitalista. O desejo capitalista é tão forte que é muito difícil avançar politicamente na direção do pós-capitalismo, porque tudo está impregnado desse fetiche comercializado do capitalismo. Ou seja, tudo é atravessado pela lógica produtiva, econômica e comercial do capitalismo.

    Este tipo de colonização do desejo é o que Fisher quer atacar, promovendo um desejo coletivo para além do capitalismo. Isto requer uma transformação na forma como pensamos e sentimos, bem como nas estruturas sociais e econômicas que nos rodeiam. Para tal tarefa é necessário um regresso à consciência de classe, compreendendo como funciona o nosso desejo, sabendo de que forma a classe trabalhadora está presa dentro do capital, como o prazer e mesmo o sofrimento nos ligam inconscientemente a este sistema; de como o ressentimento é usado contra nós, estruturando uma consciência anticlasse onde a identidade rígida, nacionalista e racial é usada pelo neoliberalismo para que vejamos o nosso sofrimento de forma atomizada, colocando o rótulo de inimigo ou concorrente ao lado daquele que compartilha os mesmos traços nas relações sociais. Parece familiar para você? É isso mesmo, Fisher abre com um bisturi preciso todas aquelas pequenas metástases que destroem a nossa consciência e, por sua vez, abrem uma estrada reta e acessível para a reação, a luta interna, a desorientação e o fascismo.

    Fisher: um pensador da alienação condenado a sofrer com ela

    O final do Postcapitalist Desireé realmente triste, como se fosse uma pequena piada, o capitalismo e suas consequências psicológicas mais desastrosas batem à porta desta obra. O livro conta no Apêndice 1 que as aulas do seminário nas quais se baseia são abruptamente interrompidas pelo suicídio de Fisher, que vivia com depressão severa há muitos anos. Contudo, seus alunos continuaram a utilizar a sala de aula para debater o que foi apresentado, compartilhar ideias e refletir sobre o caminho teórico que seu professor havia proposto.

    O trabalho intelectual de Fisher é um trabalho em si tremendamente preso à idiossincrasia do nosso tempo, porque tanto ele como seus alunos vislumbram a necessidade de superar o capitalismo tardio. Um declínio que não podemos negar simplesmente com esperança e referências a supostas utopias. O livro Postcapitalist Desire também é especial porque é uma transcrição oral do último seminário de Fisher, e este tipo de texto dá origem à compreensão da espontaneidade do pensamento do emissor e do receptor.

    Nessas últimas aulas ministradas pelo britânico, fica claro que Fisher tem vontade de viver e busca incessantemente a chave para sair do sistema que o deixa deprimido. Ele não conseguiu, mas fez sua parte e incentivou muitos outros a tentarem fazer a sua.

     

    fonte: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/odesejo-pos-capitalista-segundo-mark-fisher/

     

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