Com gritos ferozes de homens parlamentares de “Vida sim, aborto não. Vida sim, aborto não” foi encerrada a sessão da Comissão Especial dia 08 de novembro da votação que aprovou o relatório da PEC 181/2015, Cavalo de Troia, na Câmara dos Deputados. Com 18 votos favoráveis, a bancada fundamentalista entoou o coro em defesa da “vida” na cruzada que fazem contra a vida das mulheres. O que eles chamam de “vitória” é a derrota da nossa integridade e capacidade de decidir sobre nossos projetos de vida, da possibilidade de autodeterminação, nossa liberdade, e nossos direitos.
A votação da PEC se deu em uma semana de agenda cheia no Congresso Nacional devido ao recesso do feriado do próximo dia 15 e das articulações em torno do novo texto da reforma da previdência, que retornará à pauta após a vexaminosa decisão dos congressistas de não condenarem Temer por corrupção. A Organização Fundamentalista de evangélicos e católicos conservadores e reacionários articulou o momento para a aprovação do relatório da PEC sem sequer informar a reunião da Comissão na agenda da semana do Congresso Nacional. A intensa visibilização e debates sobre a PEC no mês de setembro com a #ViradaFeminista atrasou o trâmite desejado pelos fundamentalistas, que mais uma vez, usando da covardia do não debate amplo e honesto com a sociedade, não respeitando inclusive o princípio do contraditório, afirmam que seus dogmas se sobrepõem à Constituição. Sim, esses deputados religiosos reivindicam o direito de terem suas convicções de fé consideradas no debate legislativo.
A aprovação da PEC Cavalo de Troia provocará uma insegurança jurídica sobre os casos de aborto previstos em lei. O direito ao aborto em caso de estupro, risco de vida da gestante ou em caso de fetos anencéfalos poderá sim ser anulado. Isso é devido à insistência de tentar inserir na legislação brasileira a condição constitucional do início da vida no momento da fecundação, em detrimento de reconhecerem as mulheres como protagonistas sobre o destino de gravidezes indesejadas. O texto pretende incluir na CF a noção de direito jurídico ao nascituro, atribuir-lhe status de sujeito de direito desde a concepção, definindo assim que a partir da fecundação, o embrião terá “direto à vida, à integridade física, à honra, à imagem e de todos os demais direitos da personalidade”, conforme afirma o texto do Estatuto do Nascituro (PL 478/2007).
O projeto de lei do Estatuto do Nascituro rege as inúmeras proposições legislativas que o seguiram, serve como uma espécie de bíblia legislativa para os conservadores. Foi, principalmente a partir desse projeto, apresentado no mesmo ano em que o Tratado do Vaticano foi promulgado – fato que traduz exemplarmente o menor valor para as pautas das mulheres e população LGBTT, dado os riscos que representava tamanho compromisso do Estado com o poder religioso – que a qualificação do “direito à vida” ganhou forma legislativa no Congresso Nacional. De acordo com ele, as mulheres grávidas passam a ser consideradas como criminosas em potencial. Se uma mulher sofrer um abortamento espontâneo –25% das gestantes podem sofrer abortamento espontâneo no início da gravidez – em uma situação extrema, pode ser alvo de uma investigação policial ou ser processada por ter violado o direito à vida do embrião.
Ao incitar que a vida do feto em formação é mais importante do que a vida das mulheres, os fundamentalistas "desconsideram o princípio da ponderação de direitos, através do qual mulheres gestantes têm precedência de direitos sobre o embrião, ou seja, no período inicial da gestação. Querem preservar a vida do embrião a qualquer custo, mesmo que seja em detrimento da qualidade de vida e dos direitos humanos de uma pessoa nascida e vivente como a mulher grávida” (Alerta Feminista).
É importante frisarmos que o texto da PEC 181/2015 foi totalmente desconfigurado e transformada em um cavalo de troia pelo relator Jorge Mudalen (DEM/SP), parlamentar anti-direitos das mulheres de longa data, que mesmo sob o risco de inconstitucionalidade dessa alteração, insistiu em assumir que seu parecer não foi em momento algum sobre ampliação da licença maternidade para bebês prematuros, mas sim pela alteração constitucional do que os preceitos fundamentalistas consideram como início da vida. A estratégia de inserir no texto constitucional artigos como os do relatório de Mudalen é antiga e já foi derrotada no momento da Assembleia Constituinte (1986-1988), não tendo sido acatada pel@s parlamentares na promulgação da Constituição Federal, uma vitória dos movimentos de mulheres que se posicionaram duramente contra essa iniciativa. Essa é uma das formas em que o patriarcado se revela, controlando o corpo e a autodeterminação das mulheres. É muito emblemático que homens, brancos, representantes de igrejas se vangloriem nos espaços legislativos, criando leis que atacam nossos direitos.
O texto da matéria ainda irá à votação em plenário em dois turnos, necessitando de maioria qualificada (308 votos) para ser aprovada. Se aprovada, ela volta ao Senado, uma vez que seu texto foi alterado (originalmente PEC 99/2015), para votação também em dois turnos e segue para promulgação do Congresso Nacional. Por ser uma PEC não vai à sansão presidencial, tendo seu texto aprovado ou não em sessão do Congresso Nacional. A decisão de ser colocada na pauta de votação do Plenário da Câmara é inteira do presidente dessa casa, Rodrigo Maia, que declarou publicamente que não irá levar essa matéria a frente. Contudo, Rodrigo Maia, que já foi autor junto com Eduardo Cunha do projeto de Lei 5069/2013 que tentava impedir o aborto em caso de estupro, negocia votações da sua agenda neoliberal com a bancada da bíblia. O tempo dessa votação não é certo, mas a articulação conservadora do Congresso Nacional tem sua pauta comum e compromisso público dito por Maia não reflete a realidade das negociatas entre esses políticos.
As mulheres brasileiras não tem se submetido à essa ordem patriarcal. Na luta silenciosa e solitária por sua autodeterminação reprodutiva, uma brasileira a cada 1 minuto e meio se submete a um procedimento inseguro (PNA 2016), em completa ilegalidade, correndo risco de morte ou de ser presa, uma vez que o Estado Brasileiro não provê seu direito de decidir e a sua proteção. A classe política brasileira tem incorrido em omissão sistemática por não encarar o debate urgente sobre os tensionamentos que a laicidade do Estado Brasileiro vem sofrendo nos últimos anos, fruto do avanço do evangelismo na política e dos arranjos institucionais do catolicismo.
Ao longo de pelo menos 10 anos, as organizações e movimentos feministas e dos direitos humanos tem denunciado o avanço do fundamentalismo religioso, das forças conservadoras e reacionárias sobre o poder político-institucional brasileiro e sobre a vida de nós mulheres.
A defesa do Estado laico é urgente, como também a ampliação desse debate na sociedade. É urgente ampliar o entendimento de que práticas de fé e religião são condutas individuais e da vida privada de cada pessoa. E portanto não podem se constituir como referência para a elaboração de leis que regem o conjunto da sociedade.
É pela vida das mulheres!
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil