Ilustração: Lidia Rodrigues
Por Guaia Monteiro[1]
Hoje, 25 de novembro, as mulheres conclamam o Dia Latino-Americano e Caribenho de Luta contra a Violência à Mulher. Este é também o Dia Internacional de Eliminação da Violência contra a Mulher. Em todo o mundo, gritamos, denunciamos e reivindicamos pelo fim da violência contra nós. Mas essa luta vem de longe. Nossos gritos vem de longe. Há tempos os feminismos alertam às sociedades dos inaceitáveis números e formas com que o medo e a insegurança fazem parte das vidas das mulheres, sobretudo das mulheres negras e periféricas.
O Brasil é o quinto país que mais assassina mulheres no mundo. Duas em cada três vítimas de violência doméstica, sexual, psicológica, física, entre outras, que buscam atendimento em um hospital do Sistema Único de Saúde brasileiro são mulheres. Entre as crianças, mais da metade atendida no SUS são meninas. E ao longo da vida, o percentual de mulheres que procura atendimento de saúde pública vai aumentando consideravelmente. Em relação ao feminicídio, observamos uma redução considerável no assassinato de mulheres brancas enquanto o assassinato de mulheres negras vem crescendo no país. Esses dados são do Mapa da Violência[2] referente a pesquisas realizadas entre os anos de 2003 e 2014 no Brasil.
Resultados do Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça[3] revelam ainda que mulheres negras brasileiras estão em desvantagens quanto a mulheres e homens brancos em todos os indicadores sociais, especialmente em relação aos níveis de pobreza. O que significa que possuem os menores índices de estudo, a maior duração diária de trabalho remunerado e ainda consomem a maior quantidade de tempo dedicado às tarefas domésticas.
Tais dados expressam o panorama de desigualdade, pobreza e violências que permeia a vida das mulheres brasileiras, acirrado pelas questões raciais, territoriais, entre outras.
É verdade que a globalização ampliou as oportunidades de empregos para as mulheres nos últimos anos, porém esse aumento nem reduziu seu empobrecimento, nem inverteu a lógica da estratificação social na qual mulheres negras, periféricas e indígenas ocupam a base da pirâmide. Tampouco representa redistribuição das tarefas domésticas segundo critérios de gênero, raça e cor e classe social.
Os traços da colonização, somados aos processos de modernização global, aos avanços neoliberais e fundamentalistas em curso e aos abalos às recentes e frágeis conquistas democráticas impõem mudanças às vidas das mulheres brasileiras, tornando-as ainda mais vulneráveis. Nesse contexto de reformas, retirada de direitos, aumento da vulnerabilidade socioeconômica e persistência das diversas formas de violência contra as mulheres, elas seguem cada vez mais responsáveis pela sobrevivência de suas famílias e suas comunidades.
Enquanto lugar social e culturalmente atribuído às mulheres, as ações de cuidado as oprimem e as subalternizam. Assim, mesmo que venha sofrendo modificações em suas formas e execução nos últimos anos, o cuidado imposto pela ordem patriarcal e racista às mulheres favorece cada vez mais a sustentação do próprio patriarcado e de suas diversas formas de opressão. O cuidado, portanto, consolida-se como forte expressão das desigualdades de gênero e raça.
A medida que as teorias feministas detém-se em analisar criticamente o cuidado, entretanto, permanece em aberto uma questão central para a promoção da verdadeira emancipação das mulheres: que cuidados são destinados às cuidadoras? Quem cuida das mulheres?
Esse questionamento vem movendo o meu fazer político feminista nos últimos anos. Desde 2015, participo de ações promovidas pelo CFEMEA – Centro Feminista de Estudos e Assessoria, para o desenvolvimento da dimensão política do autocuidado e do cuidado entre ativistas. Através das Rodas de Autocuidado e Cuidado entre Ativistas (atualmente há três rodas no Distrito Federal), das Formações na Técnica de Redução de Estresse (duas realizadas no centro-oeste brasileiro, uma no nordeste, e a mais recente, em curso, no norte do país) e de outras metodologias, estamos consolidando estratégias alternativas de enfrentamento das desigualdades e dos ataques aos direitos humanos.
As experiências vivenciadas em nossas rodas baseiam-se em horizontalidade, respeito, solidariedade e reciprocidade. Promovem saúde e bem-estar na medida em que favorecem o autoconhecimento, o reconhecimento responsável da diversidade entre as mulheres ativistas, a reciprocidade nas relações de cuidado entre elas e o desenvolvimento de fortalezas individuais e coletivas para enfrentar as tensões diárias na sociedade violenta. Antes de tudo, lembram-nos que o pessoal é político. E que é necessário cuidar de si para cuidar umas das outras, e assim estar mais firmes e conscientes para enfrentar as batalhas e cuidar das feridas das violências sociais.
Vivenciamos e compartilhamos o potencial subversivo do cuidado apropriado por nós, mulheres ativistas, quando interrompemos nossas tarefas, apoiadas por redes de solidariedade, para simplesmente nos olhar, nos amar e cuidar de nós mesmas. Deste modo, o cuidado por nós e entre nós tem se tornando alternativa possível para a sustentabilidade do ativismo feminista, enquanto nos transforma e, nesse ciclo contínuo, permite a transformação das realidades de opressões de gênero, raça, classe e sexualidade em que vivemos.
Que cada mulher apoie outras mulheres. Que juntas percebam que cada uma delas é a pessoa mais importante das suas vidas. E nessa rede em expansão, possam todas gritar ainda mais alto: basta de violência contra as mulheres!
Conheça a metodologia do Autocuidado e Cuidado entre Ativistas:
[1] Guaia Monteiro é assistente social e militante lésbica feminista. http://lattes.cnpq.br/5583357308814215
[2] WAISELFISZ, J.J. Mapa da Violência 2015: Homicídios de Mulheres no Brasil . Rio de Janeiro: CEBELA-FLACSO.
[3] IPEA. Retrato das desigualdades de gênero e raça. 4 edição. Brasília: IPEA, 2011. 2 tiragem: dezembro 2012.