- Aissa SimasGraduanda em Ciências SociaisDepartamento de Antropologia/Universidade de Brasília
A responsabilidade pelo cuidado é uma realidade próxima para muitas mulheres. No cenário da microcefalia, as mães aparecem não apenas como as principais cuidadoras, mas frequentemente como as únicas. Para muitas mães de micro, mesmo contando com uma rede de suporte familiar, o apoio nem sempre se estende ao filho com deficiência. Seus parentes e marido podem até assistir nos cuidados de outros filhos, mas não do bebê com micro: às vezes se recusam a ter contato, julgam que não sabem cuidar de uma criança especial e tampouco se colocam à disposição de aprender.
A jovem mãe Márcia, de 23 anos, tem três filhos. O mais novo, Diego, de dois anos de idade, tem microcefalia. Depois que ele nasceu, Márcia se separou do marido e voltou a morar na casa de seus pais em um bairro da periferia de Recife, levando os filhos com ela. Mesmo morando com a família, não recebe ajuda nos cuidados de seu bebê e exprime a situação com a máxima: “É assim que as pessoas pensam, quem pariu Mateus que o balance.”
O cuidado dos bebês com microcefalia não é tarefa genérica e requer toda uma atenção às especificidades do corpo, dos gostos e das necessidades de cada criança. As cuidadoras aprendem a reconhecer e administrar cotidianamente momentos de crise, medicamentos e tecnologias de saúde. Isso demanda um verdadeiro trabalho de especialização em uma síndrome até então desconhecida, cheia de desdobramentos incertos, ao mesmo tempo em que toda a rotina de cuidados e agenda médica extenuante recai sobre a figura única da mãe.
“Sempre corro atrás das coisas para os meus filhos, mas pra mim eu relaxo”, diz Márcia. O sentimento que ela expressa é comum a uma experiência ampla de maternidade, e se torna especialmente relevante nas circunstâncias das mães de micro. No ideal de dedicação materna que acompanha o cotidiano dessas mulheres, o cuidado e o sacrifício andam de mãos dadas. A ausência de apoio não atenua a cobrança de que elas se doem para o atendimento dos outros, pois o trabalho das mulheres não é medido em contraste com algum trabalho real e concreto, mas em contraste com esse ideal do que significa ser uma boa mãe e uma boa mulher.
Sobre essas mulheres, que cuidam, mas não são cuidadas, paira a questão do autocuidado. Mas quantos sentidos têm a ideia de “se cuidar”? Em meio às pressões de exercer múltiplos papéis (de mãe, de esposa, de filha, de nora, de neta, de vizinha, de cuidadora, de mulher) o autocuidado também pode figurar como uma expectativa de desempenho feminino. Certos rituais de feminilidade, que são vistos como questão de cuidado pessoal básico, acabam sendo negligenciados com a rotina de cuidados dos bebês. Fazer a unha, a sobrancelha, se depilar, pintar o cabelo, etc. se tornam processos inviáveis na agenda e no orçamento das mães de micro. A obrigatoriedade e a falha em se manter nesses padrões oneram ainda mais as mães, que cobram isso de si mesmas e umas das outras. Maridos e famílias também impõem essa cobrança, e muitos homens alegaram que a falta de vaidade e autocuidado foram motivos para se separarem dessas mulheres.
Essa expectativa também é reproduzida através de políticas institucionais. Nos eventos relativos ao dia 8 de março de 2017, por exemplo, uma instituição de referência no tratamento de crianças com microcefalia promoveu uma atividade direcionada ao cuidado com as mães, o tratamento cosmético realizado por uma equipe de uma multinacional do ramo. Essa atividade é parte de um programa que promove ações voltadas às mães de micro para além desta data, que inclui acompanhamento psicológico a essas mulheres em um grupo de apoio.
Júlia é uma das mães que participa desse acompanhamento. Mesmo destacando que não se considera vaidosa, ela critica quem não se cuida, não usa maquiagem ou pinta o cabelo e só vive em hospitais: “Tem mãe que, depois da micro, não se arruma mais. Só cuida do filho. As psicólogas dizem pra gente que a gente tem que se cuidar também. Tem que ter autoestima”, diz Júlia. Ela tem se esforçado em usar um batom de cor marcante, seguindo uma recomendação da fisioterapeuta: “Além de se cuidar, o batom chama atenção da criança para a nossa boca. Ele presta mais atenção quando a gente está falando e isso é bom para a criança começar a falar melhor.” Através dessa técnica fisioterápica, o batom é concebido como um instrumento de cuidado tanto para a mãe quanto para o filho.
O cuidado e o autocuidado, na forma em que são compreendidos e praticados, carregam marcadores de gênero. Cuidar dos outros é um trabalho atribuído e cobrado da mulher como se fosse uma inclinação natural e transformado em um dever inato que sequer é reconhecido como trabalho. Torna-se uma obrigação. Mesmo o autocuidado é feminizado: dos homens não se espera tanto que se dediquem à higiene ou embelezamento de si, ou mesmo que saibam realizar tarefas domésticas básicas e cotidianas de automanutenção, mas que sejam cuidados por suas mães, irmãs, filhas e esposas. Para eles, cuidar dos filhos parece uma atividade suplementar. Nas circunstâncias em que autocuidado e autoestima se confundem com o desempenho da feminilidade, a sobrecarga das mulheres não é contestada. Ainda que queiram e gostem desses rituais, elas são duplamente cobradas a manter padrões de comportamento que, em última instância, as relegam a se considerarem e a serem consideradas sempre em segundo plano.
Conheça mais histórias do projeto de pesquisa: “Zika e microcefalia: Um estudo antropológico sobre os impactos dos diagnósticos e prognósticos das malformações fetais no cotidiano de mulheres e suas famílias no estado de Pernambuco” no site https://microhistorias.wixsite.com/microhistorias