Gabriella Dias dos Santos
As cotas raciais nas universidades são políticas de ações afirmativas que permitem dar igualdade de acesso a pessoas negras, indígenas e quilombolas nas instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da Educação. Embora a lei que regulamenta essa política tenha sido implementada em 2012, por meio da lei nº 12.711, a Universidade de Brasília (UnB) já adota as cotas raciais desde 2004. Com a implementação dessa lei, denominada de Lei das Cotas, a UnB em especial ampliou o seu sistema de cotas para pessoas de baixa renda e/ou pessoas que tenham cursado o ensino médio em escolas públicas ou tenham sido cotistas em escolas particulares, e desde 2017 há também reserva de vagas para pessoas com deficiências.
Trazer todo esse histórico é importante porque é a partir dessas políticas públicas que eu, mulher negra, consegui ingressar na UnB, primeiro em 2010 por meio do sistema de cotas raciais no curso de pedagogia, e em 2015, no curso de psicologia por meio do sistema de cotas raciais, de baixa renda e de escola pública. Entrar nesses cursos exigiu não somente a adesão aos sistemas de cotas, foram necessárias muitas horas de dedicação e de preparação para as provas do vestibular. Ter acesso a cursos preparatórios populares era raridade em 2010. Ao contrário de 2015, quando tal serviço se mostrava mais fácil de acessar.
Eu tive a oportunidade de me preparar em um curso particular, mas muitas mulheres negras em 2010, em 2015 e atualmente não tiveram e não têm essa oportunidade, porque é algo que exige investimento financeiro e não dá para simplesmente deixar de comer para pagar um curso. Por outro lado, tem os cursos preparatórios populares que são ofertados em várias Regiões Administrativas (RA) do DF, mas não em todas, exigindo assim o esforço de muitas mulheres em se deslocar muitas vezes à noite, porque precisam trabalhar para se sustentar, e o sistema de transporte público é ruim de dia e caótico à noite. Muitas desistem de fazer cursinho! O que falta? Políticas intersetoriais, ofertar o curso popular, mas não o transporte não é o suficiente. As políticas públicas não têm a mesma eficácia se não estão interligadas estrategicamente para favorecer a garantia de um direito. A partir dessa contextualização já é possível verificar que há seletividade quanto ao perfil de mulheres negras que entram na universidade: são aquelas que tiveram a oportunidade se preparar para as provas, que tiveram acesso a informações sobre macetes que darão um diferencial na nota final da prova.
É inegável que o sistema de cotas raciais garante o acesso da população negra à universidade de forma equitativa, só que o ingresso de mulheres negras não é igual nos diferentes cursos. Quando entrei na pedagogia, me deparei com uma quantidade alta de mulheres negras, algo que não aconteceu na psicologia, onde que o número de mulheres negras é baixo. Se formar em medicina não é o mesmo que se formar em pedagogia em termos de salário e prestigio social. Se as mulheres negras estão concentradas em cursos “menos prestigiados socialmente” e nada está sendo feito para garantir esse acesso equilibrado nos diversos cursos, posso inferir que está havendo um mecanismo de perpetuação das desigualdades sociais estruturado pela questão racial e pela questão de gênero. Na UnB, as políticas que se destacam são bolsa permanência; acesso gratuito, em alguns casos, ao restaurante universitário; moradia ou pagamento de bolsa moradia para estudantes que atendam os critérios estabelecidos em edital. Os destaques para essas políticas é por afetarem diretamente a vida das mulheres negras. Para usufruir desses benefícios é necessário comprovar por meio de uma quantidade exorbitante de documentos, que é nem sempre é possível providenciar. Em decorrência desse excesso de burocratismo, há a desistência de tentar os benefícios.
Com o esse desgoverno golpista, as bolsas permanências para estudantes indígenas e quilombolas, das universidades de todo o país, foram cortadas para um número expressivo de estudantes. Na UnB, a oferta de bolsas permanência vem sofrendo uma queda alarmante desde o ano de 2017, deixando assim estudantes sem condição nenhuma de continuar estudando com o mínimo de qualidade. Toda essa movimentação orçamentária tem um impacto forte na vida das mulheres negras e indígenas universitárias. Além dessas questões, há a saúde mental da mulher negra. No primeiro semestre de 2018, a UnB perdeu por suicídio uma estudante. Com esse acontecimento, os olhares se voltaram com mais intensidade para à questão da saúde mental da/o estudante universitária/o. É notado várias noticias, pesquisas e eventos sobre o assunto. Sobre todo esse material e eventos produzidos pela instituição, uma pergunta inquieta: há um recorte gênero e raça na saúde mental? Tratar a saúde mental de todos de forma igualitária é fechar os olhos para especificidades das minorias políticas que compõe o quadro discente da universidade.
As mulheres negras desde quando nascem passam por todas as violências decorrentes do patriarcado, do machismo, do racismo, do capitalismo. Dentro da universidade, todas essas violências acontecem com o adicional da pressão acadêmica de ter que se dedicar muito mais que o restante para conseguir uma pesquisa com o professor ou ser ao menos vista. O silenciamento dentro e fora de sala de aula fazem parte do cotidiano de uma mulher negra universitária, a solidão quando se está em um curso de pessoas brancas, onde ninguém entende seu lugar de fala é dolorido, é sofrimento psíquico. Falar de saúde mental dos estudantes universitários sem falar da saúde mental da população negra e em especial das mulheres negras é causar mais sofrimento.
Por fim, há o último ponto que gostaria de destacar, que faz parte do ciclo de vida de um estudante universitário - o início da carreira profissional, o primeiro emprego pós-formatura. É uma situação complicada para qualquer recém-formado conseguir o primeiro emprego, mas para as mulheres negras é uma missão. Não há política pública focalizada em garantir o acesso das mulheres negras ao primeiro emprego, logo adiante detalharei o porquê dessa defesa. Ter o primeiro emprego foi uma peregrinação, enfim é uma história que começou antes da conclusão da graduação, se dá ao longo do curso com a busca de um estágio. Ao todo, devo ter participado de uns dez processos seletivos para estágio em pedagogia. Quando me ligavam para falar se eu havia sido selecionada o tratamento era um, quando viam que se tratava de uma mulher negra o tratamento era outro completamente diferente. As respostas eram sempre: “então, você não foi selecionada dessa vez, mas obrigada pela participação no processo seletivo”, “outra candidata foi escolhida para preencher a vaga”.
O racismo também se fez muito presente nessas andanças, o pior momento aconteceu em processo seletivo em uma escola de grande porte em que não havia sido selecionada na época, mas muito tempo depois me ligaram, numa sexta-feira, dizendo que havia uma vaga para ser preenchida. Como havia participado em algum momento da entrevista havia sido escolhida, era para começar a trabalhar numa segunda-feira. Chegando lá na instituição no dia e horário combinados, fui direto até a coordenação para saber sobre as procedências das informações, disseram que não havia vaga nenhuma ali para mim. Me senti inferiorizada. Depois daquele episódio havia desistido por um tempo de continuar procurando um estágio, consegui outras formas de ganhar um dinheiro, bolsas no Programa de Iniciação Cientifica – Ações Afirmativas. Fui me dedicar a pesquisa.
Antes de terminar a graduação comecei a trabalhar em um lugar recreativo, ganhava o salário mínimo da época, sem direito a carteira assinada e nenhum benefício como transporte e alimentação. Pouco tempo, consegui um trabalho em uma creche como monitora, trabalhava quarenta e quatro horas semanais para ganhar o mesmo valor que a professora regente que trabalhava a metade que eu. Se houvesse políticas públicas que favorecem a inserção da população negra no mercado de trabalho, provavelmente eu e boa parcela de mulheres negras não precisaríamos nos submeter a condições precárias de trabalho. Se são essas condições que nos são apresentadas, não temos outra escolha a não ser aceitar, porque precisamos comer, nos vestir.
É de conhecimento de todos que existem as cotas raciais em concursos públicos federais, o que é um avanço. Porém, é preciso mais investimentos para garantir que as mulheres assumam cargos com igualdade salarial e com condições dignas de trabalho, que tenham as mesmas oportunidades de ascender profissionalmente.
O processo de preparação, entrada, permanência na universidade pública e o primeiro emprego pós formada de mulheres negras são fatores que foram alvos de reflexão a partir da minha narrativa. Cada aspecto destacado aqui é ponto de uma discussão mais acurada, assim como outros pontos como acesso à pós-graduação stricto sensu – mestrado e doutorado. Trazer todos esses pontos como um ciclo é importante para ter uma dimensão holística e interconectada, e perceber em que ponto as políticas públicas de ações afirmativas estão, onde podem chegar e como políticas setoriais podem se comunicar com o objetivo de garantir em sua plenitude o direito à educação superior pública e ao trabalho digno e valorização profissional.
Embora sejam reflexões e lutas que nós mulheres negras temos durante todos os meses do ano, nesse julho das pretas tais momentos devem ser intensificados para não fazerem eles lá – o povo branco – mais um dia de lembrança e de puras comemorações. O julho das pretas é um mês marcado pela luta de uma mulher, Teresa Benguela, símbolo de libertação, e como Teresa continuamos dia após dia lutando para ter a liberdade de escolher, de acessar e de crescer profissionalmente.
Gabriella Dias dos Santos – mulher preta, feminista, pedagoga, especialista em gestão de políticas públicas em gênero e raça, concluindo a segunda graduação em psicologia, todos cursos realizados na UnB. Atualmente, sou consultora em autocuidado e cuidado entre ativistas no CFEMEA e tenho direcionado minha militância para o feminismo e o feminismo negro.