Nesse agosto a capital federal recepcionou a movimentação de mais de 100 mil mulheres organizadas em mais uma potente demonstração de resistência. Convocadas pelo cuidadoso e amplo processo de construção coletiva da Marcha das Margaridas, as camponesas protagonizaram a 6ª caminhada rumo à Brasília e facilitaram uma série de processos articulados que comprovaram a capacidade de (re)união das mulheres, do campo, das florestas, das águas e das cidades, unidas pelo ideário feminista de uma vida digna, justa, pela realização de nossos direitos, pelo bem viver e pelo cuidado entre nós.
As Jornadas das Mulheres se iniciaram com a realização da primeira Marcha das Mulheres Indígenas, que reuniu mais de 2.500 mulheres indígenas de diversas etnias e de todas as regiões do país em um fórum aberto com a subsequente marcha pela Esplanada dos Ministérios, realizada no 13 de agosto. As indígenas construíram um amplo processo de articulação com movimentos feministas, a exemplo da Articulação de Mulheres Brasileiras, movimento que integro, e foram acolhidas pelos processos das trabalhadoras rurais que há mais de 2 anos se preparavam para esse momento.
No fórum de abertura, as mulheres indígenas resgataram a força da presença de mulheres aguerridas na história da luta pelos direitos dos povos indígenas, com muitos cantos, diálogos e falas públicas. Não só discutiam, se entendiam, como denunciavam os cortes públicos, os ataques a seus territórios e suas vidas, chegando a ocupar uma secretaria do Ministério da Saúde após recusa de diálogo. Diante dessa conjuntura política de perseguição, violência e destituição das estruturas públicas de amparo aos povos indígenas, das declarações abertas etnocidas de Bolsonaro, bem como de representantes de seu governo autoritário contra a demarcação das terras indígenas, a resistência das mulheres torna-se ainda mais relevante.
As mulheres indígenas seguiram reunidas para acompanhar e construir juntas a Marcha das Margaridas, motivo central da reunião de todas em Brasília no planalto seco do cerrado. Agora para se juntarem às camponesas, trabalhadoras rurais que preparam esse processo por anos, em diálogo com movimentos de mulheres de diferentes espaços de atuação, como as trabalhadoras domésticas, movimentos e coletivos feministas, as mulheres negras, extrativistas, e dentre tantas outras. Talvez esse momento seja uma das mais bravas expressões de como se converte o luto em luta, já que sua memória remete ao assassinato de uma camponesa, Margarida Maria Alves, em 1983, morta por sua luta pelo direito à terra.
As margaridas marcharam até Brasília num momento em que está para ser aprovada a mais perversa proposta de reforma da previdência. Proposta essa que traz em seu cerne o aumento das desigualdades entre mulheres e homens e que se não fossem as mulheres organizadas em defesa de uma previdência pública universal e solidária para visibilizar o ataque aos nossos direitos, essa perspectiva passaria batida. Uma salva às bravas companheiras da Brigada Loiva Rubenich do Movimento de Mulheres Camponesas que mobilizaram outras de nós (Articulação de Mulheres Brasileiras, Marcha Mundial das Mulheres, Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas, Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras e o Movimento Interestadual de Quebradeiras de Coco Babaçu) em uma ação de incidência-resistência desde abril deste ano no Congresso Nacional.
As camponesas articuladas pelas confederações de trabalhadoras rurais e em parceria com outros movimentos de mulheres, pautaram uma agenda de denúncia. Esse ano, não estavam dispostas a dialogar com representantes do governo que sequer reconhecem a nossa existência como central para o fortalecimento democrático de um País, sua potência estava em sua realização em si. Durante 2 dias, mais de 100 mil mulheres se juntaram novamente em diálogos diversos: realizaram um Tribunal Popular das Mulheres sobre a ContraReforma da Previdência; enfrentaram o debate sobre os fundamentalismos religiosos como empecilho da realização plena de nossa autonomia; denunciaram o aumento da violência contra as mulheres no campo e nas cidades; promoveram momentos e espaço de autocuidado e cuidado entre ativistas como estratégia de fortalecimento da ação coletiva das mulheres; discutiram questões centrais sobre justiça socioambiental, culminando com a marcha que tomou conta da Esplanada dos Ministérios no dia 14 de agosto.
O processo de preparo da Marcha das Margaridas envolve milhares de trabalhadoras e trabalhadores camponesas nos pequenos municípios do Brasil, promove diálogo com as comunidades e populações locais, via debates, rifas, almoços para arrecadar recursos. Movimentação que desloca a atenção de feministas organizadas em coletivos e movimentos para apoiarem sua realização até a chegada em Brasília. Mulheres que marcham com filhxs pequenxs e maridos, por dias, até a capital e voltam em seguida com a certeza de que protagonizaram um momento histórico de luta pelo reconhecimento de seus direitos. Que mesmo sem apoio do governo, num contexto de volta a um maior empobrecimento, com sérias dificuldades financeiras, se juntaram para realizar essa demonstração de força.
Aliás, era de se esperar o não apoio de um governo antagônico às lutas sociais. Não só em âmbito federal, mas também distrital. As mulheres que fizeram as jornadas de agosto foram vigiladas do início ao fim pelo governo que promove uma “vilanização” de quem protege e defende direitos, nossos bens comuns e nossos territórios. Processo esse exemplificado com o incêndio criminoso de fazendeiros em larga extensão da Amazônia, logo na sequencia das Jornadas das Mulheres de agosto. Cuja gravidade do fato foi escolhida pelo autoritário mor de nossa nação como a desculpa perfeita para seguir sua estratégia declarada por diversas manifestações públicas de criminalizar os movimentos sociais. Ao invés de cuidar com a emergência necessária que uma ação criminosa de desmatamento requeria, preferiu culpar as organizações e ativistas ambientais pelo incêndio.
As Jornadas seguiram potencializando outros dois importantes momentos: a realização da plenária nacional da Frente Contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto e o lançamento potente da Frente Parlamentar Feminista Antirracista com Participação Popular!
A primeira, reuniu 250 militantes feministas de cerca de 20 redes nacionais, coletivos partidários e autonomistas onde atualizaram suas leituras de conjuntura política e de criminalização das mulheres, conectando as lutas de resistência na sociedade e no legislativo. Um processo de reorganização interna com novos e antigos coletivos, visando fortalecer a luta pela legalização do aborto no Brasil. Tal reunião foi monitorada pelo aparato policialesco do estado, com momentos de vigilância na forma de voos baixos de helicópteros da polícia militar de Brasília. Importante essa ressalva pois sabemos que a via da criminalização das ativistas feministas pela defesa do direito à interrupção de uma gravidez indesejada é comum em governos autoritários que não suportam a premissa da autonomia e autodeterminação das mulheres e suas escolhas de projetos de vida.
O lançamento da Frente Parlamentar Feminista Antirracista com Participação Popular foi outro importante momento dessa jornada. O diálogo e interlocução entre parlamentares e ativistas feministas comprometidas em ressoar e impedir os ataques aos direitos das mulheres, entendendo o Legislativo como uma importante arena para isso – muitas de nós entendemos que diálogos não são possíveis de se realizarem com um Executivo federal persecutório e antagônico a tudo que defendemos, cabendo ao Legislativo um foco importante de ação denunciatória. A Frente Parlamentar tem essa potência de articular as demandas, preocupações e pautas feministas que são as mais variadas e centrais possíveis, desde o enfrentamento à criminalização das mulheres, ao desmantelamentos das políticas de enfrentamento à violência contra nós, ameaças aos nossos territórios, contra propostas de reformas que acentuam as desigualdades de gênero e de raça - a exemplo da reforma da previdência; pautas que tentam criminalizar o aborto em qualquer circunstância, seja em casos de estupro e mesmo risco de vida da gestante, até propostas contra nós como a alienação parental (que tem sido utilizada pelos homens e agressores para tirar as crianças de suas mães com anuência de um judiciário conservador e machista) e as propostas que impedem o debate sobre gênero e raça nas escolas ou mesma na sociedade, afinal impedir pensamento e debate crítico é central para amplificar pensamento único e autoritário.
O fechamento das Jornadas foi com o lançamento do Encontro Nacional de Movimentos Feministas, que ocorrerá em 2020. Convocado por 40 redes e coletivos de mulheres seguimos juntas fortalecendo a ação política e o pensamento feminista que conclama a todas e todos para a necessidade de um outro mundo possível. Com respeito às mulheres e seu reconhecimento nas lutas libertárias por uma sociedade não violenta, igual, justa, combativa do racismo estrutural em nosso país – que se perpetua com as políticas sobre drogas e encarceramento da juventude negra periférica, bem como via seu genocídio-, que respeite os direitos dos e das trabalhadores/as, anti-capacitista, autônoma, com liberdade sexual e o combate à lesbo-gay-transfobia. Nós mulheres carregamos em nossos corpos a presença transgressora da diversidade que somos e queremos ser ouvidas e respeitadas em cada uma de nossas diferenças contra um pensamento e uma prática política machista, racista que nos oprime e cerceia nossa presença no mundo.
Que venham mais Jornadas das Mulheres!
Vivam as Margaridas e Marielles!
Natalia Mori Cruz
Integrante do CFEMEA e da Articulação de Mulheres Brasileiras