Quase lá: Leila Linhares, uma das redatoras da Lei Maria da Penha, alerta sobre a ofensiva antiaborto no Brasil

Em entrevista ao portal Catarinas, a advogada aborda desafios enfrentados por organizações que resistem a retrocessos e o papel das fake news e da desinformação no debate sobre o aborto legal.

Portal Catarinas - 19 fev 2025, 10h17

Leila Linhares portal catarinas

Impulsionada por valores patriarcais, desinformação e moralismo, a ofensiva antiaborto tem ganhado força na sociedade e no Congresso, especialmente no último ano. Em resposta, organizações feministas, como a ONG Cepia (Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação), seguem na linha de frente da defesa dos direitos sexuais e reprodutivos, liderando há décadas a luta pela descriminalização e legalização do aborto no Brasil.

O Portal Catarinas conversou com a advogada Leila Linhares Barsted, cofundadora e coordenadora da Cepia, que desde 1990 atua na promoção da saúde, no combate à violência contra as mulheres e na defesa dos direitos reprodutivos. Barsted foi uma das redatoras da Lei Maria da Penha, referência global no enfrentamento à violência doméstica. 

Na entrevista, ela compartilha o que a motivou a ingressar no ativismo feminista ainda na adolescência e analisa os desafios enfrentados por organizações como a Cepia, que resistem aos retrocessos. Além disso, aborda como grupos de extrema direita e fundamentalistas religiosos recorrem à desinformação para manipular o debate sobre a interrupção da gravidez, tanto nos casos previstos em lei quanto na luta pela descriminalização.

Você tem uma longa trajetória na defesa dos direitos das mulheres no Brasil. O que a motivou a ingressar nessa luta? 

Eu venho de uma militância de esquerda desde o final dos anos 1960. Fiz a Faculdade Nacional de Direito do Rio de Janeiro, que era um centro de mobilização estudantil muito forte. E, nessa militância política, já contra a ditadura, eu também tinha outra militância, digamos assim, intelectual. Sempre fui uma leitora compulsiva, e um dos livros que caiu em minhas mãos, ainda na adolescência, foi o de Simone de Beauvoir.

Eu me lembro de que conversávamos na escola, eu e minhas amigas adolescentes, sobre Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Nós achávamos maravilhoso que os dois fossem totalmente autônomos, eram um casal, mas moravam separados. Era interessante como esses novos arranjos afetivos e matrimoniais já apareciam na minha adolescência.

E foi assim que a militância política de esquerda e a sensibilidade para as questões das mulheres caminharam lado a lado em minha vida. Claro que, já na década de 1970, isso se intensificou à medida que fui participando de grupos de reflexão feminista aqui no Rio de Janeiro. Criamos grupos sérios já nos anos 1973 e 1975.

Organizamos na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a semana sobre o papel e o comportamento da mulher na sociedade brasileira. Foi um seminário de uma semana que lotou a ABI, em plena ditadura, mostrando o interesse das pessoas em acompanhar esse debate.

E, naquela época, a gente teve contato também com intelectuais que, mesmo que não fossem diretamente nossas professoras, já estavam produzindo conhecimento sobre a situação das mulheres no Brasil. Moema Toscano, por exemplo, na área da sociologia; Carmen da Silva, escritora da revista Cláudia, que tinha uma militância feminista; Lélia Gonzalez, entre muitas outras. Eram antecessoras que, felizmente, estavam vivas naquela época e, por meio de uma militância acadêmica, traziam uma reflexão profunda e muito positiva sobre a situação da mulher no Brasil.

O cenário atual traz desafios cada vez maiores para a garantia dos direitos sexuais e reprodutivos. Como você avalia o papel das organizações da sociedade civil na resistência contra retrocessos?

Eu avalio como fundamental.

Na realidade, até muito pouco tempo eu poderia dizer que nós estávamos sozinhas nessa luta. Mas, talvez devido à radicalidade das mensagens da extrema direita, especialmente no que diz respeito ao impedimento do aborto legal para meninas, essa questão passou a ter uma grande repercussão na sociedade e na imprensa. 

Assim, começamos a ver manifestações de organizações não feministas, de entidades da sociedade civil e da mídia, que passaram a pautar temas como aborto, gravidez na adolescência, dados estatísticos sobre meninas grávidas e estupros. Tenho notado a palavra “aborto” sendo mencionada com mais frequência nos canais de televisão que acompanho. Por isso, acredito que estamos, pouco a pouco, ampliando nosso campo de alianças.

Nós estamos lançando para a sociedade uma ideia de uma despenalização social do aborto. Já que não conseguimos avançar no poder legislativo, precisamos também atuar na sociedade, nas representações sociais. Desconstruir essa ideia da família “margarina”, com papai, mamãe, onde todos estão sempre felizes. Na realidade, essa família, muitas vezes, é a de um homem que viola a criança. Por isso, precisamos incluir em nosso discurso a crítica a esse modelo de família. 

Por outro lado, acredito que o diálogo com o poder, como o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), é importante. O Supremo abriu um canal de escuta para os movimentos sociais, o que foi inovador. Ele tem ouvido essas organizações nas diversas ações em que o movimento atua. 

Acredito que as organizações de mulheres se fortaleceram em sua capacidade de argumentação e de mobilização, assim como na realização de campanhas nos meios de comunicação, tanto em nossas próprias mídias quanto na grande mídia. Ou seja, os movimentos feministas têm demonstrado uma grande capacidade de articulação e reação rápida sempre que surge uma situação de risco.

Um exemplo recente é a articulação em torno da resolução do Conanda e a mobilização do movimento para garantir o apoio da sociedade na defesa do órgão. Claro que esse caminho agora talvez seja mais difícil, com toda a política norte-americana, o discurso antiaborto e as fake news sobre o aborto.

Na disputa de poder que ocorre na sociedade, o movimento feminista e as organizações de mulheres são protagonistas muito fortes.

Temos a capacidade de dialogar com mulheres de diferentes grupos, sejam católicas, pentecostais, da classe média ou de setores populares, porque, praticamente, chegamos à conclusão de que todas as mulheres conhecem alguém que fez aborto — e muitas mulheres fizeram o procedimento.

Essa é uma reflexão importante que precisamos levar a todos os grupos com os quais trabalhamos. Existem vários grupos discutindo violência, entre outros temas, e, em breve, falaremos sobre aborto, com as mulheres compartilhando seus testemunhos, muitas vezes sobre o isolamento vivido nessas situações. 

Eu acho que é um movimento de muita pujança. Tanto o movimento brasileiro quanto o latino-americano, de forma geral, são reconhecidos como movimentos de organizações feministas com grande atuação. Temos, portanto, esse motivo também para nos orgulharmos.

Quais são os principais desafios enfrentados pelas organizações feministas e de direitos humanos no Brasil hoje?

Bom, são muitos desafios. Primeiro, o grande desafio de sobreviver, de continuar contando com o apoio de doadores nacionais e internacionais. A busca pela sobrevivência das equipes e pela sustentabilidade financeira das organizações é um desafio constante, que ocupa uma grande parte do trabalho das nossas organizações.

Outra coisa com a qual nos deparamos como desafio é na área de comunicação. Como fazer com que nossa comunicação seja cada vez mais direta, que atraia um grande público, e que fale a linguagem das pessoas.

Outro ponto é dar continuidade a essa articulação nacional entre as organizações e os movimentos de mulheres na luta pelos direitos humanos, pelo respeito à dignidade humana e pela questão do aborto. 

Talvez outro desafio, eu diria, seja mobilizar mais setores. Por exemplo, mesmo os setores LGBTQIA+ poderiam ser mais atuantes na questão do aborto. Nas comunicações feministas, atuamos muito na defesa dos direitos LGBTQIA+, agora com toda a questão da transexualidade. Seria muito importante que esses outros movimentos, que estão sob a grande capa dos direitos humanos, pudessem se manifestar.

Há muitos movimentos de esquerda ou setores de intelectuais que não se envolvem. Alguns dizem, inclusive, que isso são questões divisionistas, continuando o mesmo discurso da década de 1970. Dizem que nós, mulheres, dividimos a pauta dos direitos. Então, há, mesmo em setores progressistas, uma dificuldade de entender que a luta das mulheres, em suas diversidades — de gênero, de raça e orientação sexual — é uma luta democrática. E que nós não nos isolamos das demais lutas. 

Estamos presentes nas lutas pelos povos indígenas, pelos povos originários, pela questão climática, pelo enfrentamento da miséria. Enfim, nós, feministas, estamos envolvidas em todas essas lutas. Mas, nem sempre, os setores de esquerda, os chamados setores progressistas, nos apoiam e entram em aliança.

De um lado, há a dificuldade desses setores, presos a um modelo de “primeiro vamos eliminar a pobreza para depois discutir as outras questões”. E, por outro lado, acho que nesses setores também existe um discurso machista, que desvaloriza as lutas das mulheres. 

Então, ao atuar junto a esses setores, também deveríamos ter um plano bem definido para tentar mudar essas mentalidades, embora isso não dependa só de nós. Realmente, vemos na discussão sobre o aborto, parlamentares que, em princípio, são progressistas, mas que votam contra ou se omitem.

Como a desinformação tem sido usada como uma estratégia política pela direita conservadora no Brasil para influenciar o debate sobre o aborto, tanto no que se refere ao aborto legal quanto à luta pela descriminalização?

Bom, primeiro, todo o discurso em torno da vida: o que é a vida? Eu acho que isso foi muito debatido no STF, quando apreciou a ação sobre células-tronco. Há debates, manifestações, principalmente de Carlos Ayres Brito, muito importantes sobre o que é a vida, o início da vida, não no sentido do início da vida biológica, mas do início da vida para o direito. A vida começa com o nascimento. Então, há um discurso que precisamos aprofundar mais nos nossos debates, porque é esse discurso que eles entram.

Segundo, é o discurso de demonizar as mulheres que estão fazendo debates sobre o aborto. Em vários momentos, eu participei de debates e, inclusive, um dos últimos foi no Congresso Nacional. Enquanto eu falava, as pessoas passeavam com fetinhos nas mãos, desfilando, nos chamando de criminosas. Então, somos consideradas criminosas, é uma desqualificação das nossas competências. 

No campo médico, por exemplo, há a desqualificação do pessoal na área da enfermagem. Ou seja, as enfermeiras não têm poder nenhum. Quem decide sobre o aborto legal são os médicos. Então, é importante questionarmos isso. Por quê? Por que são os médicos? As enfermeiras sempre foram aquelas que faziam os partos, por exemplo. Sempre cuidaram dessa questão, mas a população médica foi retirando o poder das enfermeiras. Com qual argumento? Elas não têm qualificação.

A gente vai pegando uma série de coisas da direita, sem falar na utilização de inteligência artificial, montando e espalhando mentiras e, ao mesmo tempo, esse emburrecimento, essa falta de capacidade crítica da sociedade que escuta esses absurdos. 

Desde a desqualificação da vacina, por exemplo, escutam esses absurdos, acreditam e repassam. Isso é um bom estudo sociológico, antropológico e psicanalítico: que processo é esse que faz com que as pessoas percam a sua capacidade de autocrítica, a sua capacidade de pesquisa, sua capacidade de duvidar daquilo que estão ouvindo e percam a sua capacidade de conhecimento, de saber? Isso é algo muito preocupante, não só para nós, feministas, mas para toda a democracia. E esse movimento cresce.

eleição do Trump, agora, mostra bem isso. A tentativa de convencer todos os americanos de que todos os imigrantes são bandidos, a tentativa do terror: “Se você não for embora, a gente vai te jogar em Guantánamo”. Então, a extrema direita, além dessas mensagens de fake news, está usando mensagens para que as pessoas sintam medo, e o medo paralisa. Esse é um dado muito importante que nós, no movimento das mulheres, dizemos: não, diante de cada batata quente que aparece. Continuamos nos mobilizando, não temos medo, por mais que saibamos que, às vezes, são ameaças muito concretas, até contra as nossas vidas.

A retórica da mentira, da desinformação, agora está vindo com o discurso do ódio, o discurso do medo.

Eu mesma me senti assim. Em todo ano de eleição, eu usava uma camiseta com o nome do meu candidato, e nesta última eleição eu não usei, porque o nível de agressividade era tão grande que você poderia ser agredida na rua se não estivesse de verde e amarelo. Estamos vivendo um contexto nacional e mundial muito mais tenso, muito mais preocupante do que talvez há 10 ou 15 anos, quando, de alguma maneira, a luta política era uma luta por argumentos e não uma luta por ameaças.

Agora, estamos nesse novo espaço, que é um espaço de preocupação, e esperamos que o Estado possa resolver isso de forma democrática. Por isso, estamos dizendo não à anistia dessa turma toda, que tem toda a agressividade, tanto para destruir as instituições quanto para destruir os movimentos sociais.

O Brasil já possui uma legislação restritiva em relação ao aborto, permitindo-o apenas em casos de estupro, risco à vida da gestante e anencefalia fetal. Qual o papel das fake news e da desinformação para o avanço de propostas que representam mais retrocessos, como o PL 1904/2024 e a PEC 164/2012?

Primeiro, além dos parlamentares e dos grupos religiosos, um novo inimigo surge para nós: o Conselho Federal de Medicina (CFM). Com a sua legitimidade, entre aspas, científica, o Conselho começa a querer pautar a luta contra o aborto com argumentos ditos científicos. “Vai causar a esterilização das mulheres, as mulheres não vão poder mais ter filhos.” Você começa a ver uma série de postagens onde, sob a legitimidade médica, essas proposições vão surgindo. E existe na sociedade brasileira uma forte ideia de científico: “Ah, o médico falou”. 

Então, esse é, sim, um opositor muito forte. Talvez mais forte que os grupos religiosos. E mesmo que eles não estejam dentro do Congresso, estão subsidiando, com argumentos, aqueles que estão dentro dele.

A tentativa, por exemplo, de atuar contra o Conanda, retirando a possibilidade de aquela criança vítima de violência decidir se ela realmente quer fazer o procedimento, isso é escandaloso. E eles vão continuar nessa retórica também através do sistema de ensino.

Nós não temos ideia do que está sendo transmitido em escolas militares ou escolas públicas militarizadas, por exemplo. Qual é o conteúdo sobre democracia, direitos humanos, direitos das mulheres, sobre questões raciais e étnicas? É importante que saibamos qual é a falta de conhecimento que está sendo transmitida ali dentro. Podem ser espaços de formação da extrema direita ou de uma cultura conservadora, uma cultura contrária aos direitos humanos.

Como a Cepia tem enfrentado as falácias? 

A Cepia está nessa grande articulação do movimento das mulheres, tentando compreender quais são os passos que estamos dando, fortalecendo esses passos coletivamente, falando de forma coletiva, tendo uma preocupação de não falar sem levar em consideração o que as outras organizações estão falando. Então, isso é algo que valorizamos muito: o consenso entre as organizações. 

Outro ponto que temos nos dedicado é fortalecer a nossa área de comunicação, colocando não só documentos, mas fazendo vídeos, posts, difundindo isso em amplas redes, junto aos grupos de mulheres com os quais trabalhamos, e também atualizando a nossa linguagem.

Nós temos um trabalho de formação de jovens e adolescentes, onde procuramos fazer com que eles digam o que acham sobre o que são direitos sexuais e reprodutivos, que falem na linguagem deles, que tenham uma estética da juventude. É um projeto que já tem mais de 10 anos, no qual discutimos com esse público, que, em última instância, será aquele que mais sofrerá com os retrocessos.

Temos tentado conversar com as instituições da justiça. Aqui no Rio de Janeiro, por exemplo, temos um diálogo muito bom com a escola de magistratura e estamos realizando um trabalho conjunto de pesquisa sobre as decisões de acordo com os processos, para entender também quais são esses argumentos que estão nos autos e quem são essas mulheres que são penalizadas ou criminalizadas. Essa conversa com as instituições de justiça é um ponto muito importante na agenda da Cepia.

Vejo que muitas instituições estão em diálogo não só com o Supremo, mas também com o Superior Tribunal de Justiça (STJ), com o CNJ. Esses tribunais e órgãos, sob a liderança de ministros como Rosa Weber e Luís Roberto Barroso, têm se mostrado bastante atenciosos em ouvir os movimentos. O CNJ, por exemplo, avançou muito com o protocolo do julgamento com a perspectiva de gênero e racial.

É importante fazer esse diálogo, porque é através dele que alcançamos também mulheres juízas, promotoras, defensoras públicas, toda uma geração de mulheres, algumas até muito jovens, que estão se dando conta do machismo nas suas próprias instituições e das questões que elas enfrentam como mulheres. Quanto mais pudermos ampliar esse diálogo, melhor será. 

Claro que não temos pernas para tudo. Somos uma equipe bem enxuta, mas temos, ao mesmo tempo, uma visão da instituição e também uma visão do nosso ativismo individual. A equipe da Cepia é composta por pessoas jovens, mais maduras e ainda pela terceira idade, que continua na luta.

Qual o papel das plataformas digitais na desinformação sobre aborto no Brasil? É possível avaliar a influência das redes na tomada de decisões relativas às polícias públicas?

Percebemos que essas redes sociais estão cada vez mais atuantes nesses discursos antidireitos, antiaborto. O Supremo está discutindo a regulamentação das plataformas digitais. A questão do marco da telecomunicação é muito importante e é uma iniciativa bem recente, que junta o mecanismo de seguimento da Convenção de Violência contra as Mulheres da Organização dos Estados Americanos (OEA) com organizações da Europa na construção de um modelo de influência nas redes sociais, chamando, inclusive, algumas plataformas para participar dessa questão.

Ou seja, essa questão da rede social como arma política, como arma de ódio, está se tornando uma preocupação geral, não apenas aqui no Brasil.

O argumento da liberdade de expressão tem sido contrastado com a posição de muitos ministros do Supremo. O que é a liberdade de expressão? Até que ponto a liberdade de expressão não existe como um direito isolado? Existem outros direitos, como o direito à autodeterminação e o direito à intimidade, enfim. Esse é um debate que precisa estar na pauta.

Eu recebi uma minuta de uma lei geral sobre as plataformas digitais, que ainda não está em um modelo fechado, mas acho esse documento bem interessante. Apesar de ter sido feito para a questão da violência contra as mulheres, ele traz parâmetros sobre a atuação das plataformas. Isso é fundamental para que possamos ampliar esse debate e nos manifestar sobre o que pensamos.

Como fazer frente a esse cenário de desinformação e aborto envolvendo as big techscomo a Meta

Essa não é propriamente a minha área, mas eu acho que precisamos atuar. Temos que aprofundar mais nossos conhecimentos e nosso acesso a todo esse saber, o que vai significar quase uma especialização dentro das organizações de pessoas que conhecem profundamente esse mundo das plataformas, inclusive esse mundo submerso das plataformas e como criar ferramentas para neutralizar ou denunciar conteúdos homofóbicos, antiaborto, enfim, esses conteúdos da extrema direita. Acho que é fundamental buscarmos também recursos externos às instituições para especializar e trabalhar com esses temas das plataformas.

Muitos desses projetos de lei impactam diretamente mulheres em situação de vulnerabilidade, como vítimas de violência sexual, mulheres negras e periféricas. Como essas propostas aprofundam desigualdades sociais, raciais e de gênero no país?

Quando vamos analisar os dados estatísticos sobre pobreza, desemprego e acesso à justiça, vamos nos deparar com o perfil de uma mulher pobre, negra, de periferia, que não conhece seus direitos ou, se conhece, não sabe como acessá-los. E, mesmo quando tenta, muitas vezes não os recebe. Temos, portanto, um quadro muito nítido de quem são as mulheres que mais sofrem todas as formas de violência, especialmente a violência sexual. Além disso, os dados mostram que essa violência é, majoritariamente, praticada contra meninas.

Isso mostra o abandono da infância no nosso país. Certamente, se analisarmos quem são essas meninas, veremos que são também, em sua maioria, meninas negras, pobres, que moram na periferia. Essas são questões que a democracia não pode ignorar.

E o que fazer? Por exemplo, há algum tempo, no Rio de Janeiro, foi elaborado um mapa da violência que identificou quais são os bairros mais violentos da cidade, tanto em geral quanto especificamente contra as mulheres. Quando analisamos os dados, vemos que é a Zona Oeste. A Zona Oeste tem o menor número de linhas de ônibus, o menor número de postes com iluminação pública, a menor renda, a maior evasão escolar. 

Ou seja, se quisermos combater a violência contra a mulher, precisamos também investir no combate à pobreza e na melhoria do espaço urbano. No entanto, mesmo havendo clareza sobre isso, esse investimento não é feito. Assim, o que também podemos afirmar é que o grande violador dos direitos humanos no Brasil é o próprio Estado. É o Estado Brasileiro que tem uma Constituição. É o Estado Brasileiro que assina as convenções internacionais e que, nas suas diversas instituições, tem abandonado essa população.

Se a violência é a forma mais grave de ofensa ao corpo das mulheres, na realidade, essa violência faz parte de um conjunto de outras formas de agressão também direcionadas ao corpo feminino. As mortes maternas diminuíram, mas poderiam ter reduzido muito mais. A violência obstétrica continua presente. E quem são as mulheres que mais sofrem essa violência? A questão de gênero e a questão da etnia no nosso país são estruturantes da sociedade brasileira. Essas questões não resolvidas resultam em índices altíssimos de homicídios, de violência sexual e de gravidez na adolescência. Ou seja, se não enfrentarmos problemas, como o racismo estrutural e o machismo estrutural da sociedade, será muito difícil avançar.

Para finalizar, há algum outro ponto que você gostaria de destacar sobre o tema?

Na década de 1980, havia um Congresso Nacional bem mais educado. E, nesse Congresso, algumas pessoas se destacaram, entre elas a deputada de Pernambuco Cristina Tavares. Tanto o deputado do Amazonas João Menezes, quanto o deputado Nelson Carneiro e a deputada Cristina Tavares apresentaram vários projetos de lei pela descriminalização do aborto ou pela ampliação dos permissivos legais. O projeto da deputada Cristina Tavares merece ser relido. Também seria importante realizar uma pesquisa no Congresso Nacional daquele período para entender quais foram os argumentos e as críticas que esse projeto recebeu.

Como aquele Congresso reagiu a isso? Era um Congresso que ainda não estava dominado pelos pentecostais, pelos discípulos do ódio. Aquela foi uma fase muito bonita da luta feminista, em que tínhamos interlocutores dentro do Congresso Nacional, como no momento da Constituinte, o Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres, trazendo pontos favoráveis ao aborto. Portanto, esse também é um momento da história do feminismo que merece ser contado […], ou seja, é possível que uma democracia mais forte e mais pujante possibilite um debate mais franco sobre o aborto no Brasil.

Esse conteúdo é apoiado pelo Fundo de Ação Urgente da América Latina e Caribe.

 

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fonte: https://catarinas.info/leila-linhares-uma-das-redatoras-da-lei-maria-da-penha-alerta-sobre-a-ofensiva-antiaborto-no-brasil/


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