Para professora, a criminalização se soma a outras situações de vulnerabilidade que catalisam o sofrimento das mulheres

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
 
Flávia Biroli é doutora em História pela Unicamp (2003), professora associada do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília e pesquisadora do CNPq - Anastácia Vaz/Secom UnB

 

 

A luta pela descriminalização e regulamentação do aborto não deve estar dissociada de pautas mais gerais, como renda, trabalho e educação. Pelo contrário, são assuntos que, juntos, escancaram e explicam as diversas camadas de vulnerabilidade social que atingem mulheres.  

Flávia Biroli, professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), afirma o debate sobre o aborto enfrenta os limites estruturais do capitalismo e aqueles provenientes do contexto político brasileiro atual. Ainda assim, a pesquisadora afirma que essas barreiras não podem, em hipótese alguma, minar o debate sobre a descriminalização do fim planejado da gravidez. 

"Nós precisamos falar de aborto. Eu sei que é difícil em um contexto em que esse é um tema bastante utilizado para gerar polarização, em que a aceitação do direito ao aborto no Brasil pela população ainda é baixa em relação inclusive a países vizinhos", afirma Biroli.  

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Para a professora, os avanços nos direitos reprodutivos e sexuais das mulheres deve ocorrer paralelamente ao desenvolvimento de outros direitos. "Se a gente não tiver educação sexual nas escolas, se a gente não tiver programa de política pública adequada para a oferta de anticoncepcionais para prevenção de gravidez na adolescência e IST [Infecções Sexualmente Transmissíveis], as nossas meninas, e sobretudo aquelas em condição de maior vulnerabilidade, vão continuar a ter uma situação extremamente difícil do ponto de vista do emprego e da possibilidade de criar seus filhos e manter também para si alguma independência econômica", afirma. "Que coletividade é essa que castiga mulheres?"

Na entrevista, Flavia Biroli também fala sobre as expectativas em relação ao governo Lula 3, a centralidade do mundo do trabalho no para mulheres e a sua relação com diversas violações de direitos. Leia a íntegra da conversa a seguir:

Brasil de Fato: A senhora citou numa entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos que nos países em processo de "desdemocratização" é possível observar o aumento dos ataques às pautas feministas. No Brasil, a gente teve o governo Bolsonaro, que comprova esse aumento. Agora, sob o governo Lula, espera-se que esse cenário mude, ainda que sob as contradições do governo brasileiro, o neoconservadorismo em ascensão e as limitações do sistema capitalista. Sob o governo Lula, como a senhora espera que as pautas feministas sejam tratadas?  

Flávia Biroli: Acho muito importante ter em mente que o neoconservadorismo é uma reação ativa aos avanços em pautas igualitárias e de direitos humanos. Uma reação que combina, inclusive, a oposição às agendas de direitos individuais, como direitos reprodutivos e sexuais, e às agendas de direitos sociais que visam a reduzir as desigualdades na sociedade.  

Portanto, não é apenas pelo lado estrutural do capitalismo que este momento restringe a capacidade estatal em muitos sentidos, mas também porque há uma atividade em vários espaços sociais e políticos que se apresenta com o objetivo de bloquear pautas igualitárias e reverter avanços nesse sentido. 

Mas nesse conjunto desvantajoso de condições estruturais e políticas em que atuamos, há espaços para decisões políticas. Então, quando temos um governo como o governo Lula 3, que desde o primeiro momento traz de volta para a conversa o reconhecimento de que essas pautas não só são legítimas, como também são centrais, já temos esse espaço de decisão política sendo usado.  

É claro que precisamos ampliar esse espaço, expandir as condições de atuação em meio à oposição que existe e está dentro do Estado e avançar em políticas que dependem de recursos.  

Resumindo, em meu entendimento, o governo Lula 3 traz de volta o reconhecimento da importância dessas pautas. É um governo que procura avançar novamente numa perspectiva que tem a justiça social como elemento importante e parece haver um reconhecimento claro de que, sem olhar para as mulheres e para as pautas de gênero e raciais, não há justiça social.  

Mas também é um governo que se apresenta num momento muito difícil, tanto pelos limites estruturais do capitalismo e do Estado patriarcal quanto pela oposição muito ativa a essas pautas igualitárias. Oposição esta que está dentro das instituições.  

E a gente tem que entender que esses grupos aprenderam a fazer política nos últimos anos. A extrema-direita hoje é uma realidade do país com a qual a gente lida. Não é o conservadorismo de antes. Não é a visão neoliberal de antes. É uma extrema-direita organizada, que tem diferentes formas de ativar políticas anti-igualitárias na sociedade e nos espaços institucionais, como no Judiciário.  

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Ao ouvir outras fontes e movimentos, parece que há uma perspectiva de que o governo Lula não consiga lidar com pautas especialmente ligadas às mulheres, como a descriminalização do aborto. Quais propostas acredita que serão viáveis neste governo? A igualdade salarial pode ser uma dessas propostas? 

Pensando na igualdade salarial, a gente pode entender que é uma entrada política possível, em um contexto em que é preciso fazer e manter alianças, avançar conquistando novos setores da sociedade, do ponto de vista de uma espécie de "repolitização" que precisa ser feita diante de toda a movimentação antipolítica e antidemocrática que cresceu nesses últimos anos.  

Quando a gente fala em igualdade salarial e em reconhecimento do trabalho das mulheres, a gente encontra um ponto comum de trânsito entre a agenda feminista de igualdade e agendas de um projeto de justiça social. Ao mesmo tempo, a gente tem que pensar nos limites de uma agenda como essa.  

O trabalho das mulheres é um assunto sensível, devido à posição distinta que as mulheres ocupam atualmente em relação ao passado, especialmente na década de 1970. Nessa época, as mulheres tinham em média cinco a seis filhos no Brasil e um nível educacional muito inferior ao que possuem atualmente. Além disso, a diversidade de ocupações e a presença no mercado de trabalho era muito menor.  

Mais de 50 anos depois, a realidade das mulheres mudou bastante: elas têm menos filhos, uma educação formal mais avançada, com mais anos de escolarização, e, em média, um nível educacional superior ao dos homens. No entanto, as mulheres ainda enfrentam desigualdades, como ter um salário cerca de 25% menor do que o dos homens, maior dificuldade de conseguir emprego e menor proteção social e previdenciária. Além disso, quando perdem o emprego e precisam voltar a trabalhar, enfrentam dificuldades para alcançar os mesmos patamares que os homens. 

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O trabalho é um tema interessante por ser transversal às diversas facetas que colocam as mulheres, especialmente as mulheres negras, em situações de vulnerabilidade. Como a questão do trabalho se entrelaça ao conjunto de violações de direitos? 

A questão do trabalho é um nó central das desigualdades, que vão além da diferença salarial. Elas fazem parte da vivência das mulheres na sociedade, independentemente da classe social. Mesmo nas mesmas ocupações, as mulheres enfrentam problemas em relação à conciliação do trabalho remunerado e não remunerado, incluindo o trabalho de cuidado. Esses problemas se tornam ainda mais graves para as mulheres mais pobres, mas são comuns em diferentes segmentos sociais. 

Nesse contexto, é importante buscar a igualdade salarial, além de políticas públicas que apoiem as atividades de cuidado e permitam uma distribuição mais equitativa entre homens e mulheres. Tem o componente de se buscar igualdade salarial, mas também outros componentes que dependem muito fortemente de políticas públicas que sejam políticas que deem suporte às atividades de cuidado e que permitam que essas relações entre trabalho assalariado e trabalho não pago aconteçam de uma maneira mais possível e adequada para as mulheres.  

Por exemplo, se gente tiver política de igualdade salarial, punindo os empregadores, mas não tiver política com foco em creche e ensino integral, a gente trisca no problema de por que as mulheres têm salários menores, porque o problema do salário desigual é, em parte, o machismo. Mas, em parte, é um funcionamento social que faz com que as mulheres tenham maiores limites para desenvolver carreiras e rotinas de trabalho, na maneira como o funcionamento do mundo do trabalho se faz.  

O mundo do trabalho se faz em grande medida como se não houvesse o mundo do cuidado, como se não houvesse o mundo do trabalho não remunerado, só que esse mundo recai sobre as mulheres.  

Concretamente, quais políticas o governo pode implementar a partir desta visão que entrelaça o trabalho a outras questões sociais? 

Se trabalho é uma questão central, o que que a gente pode fazer pelas mulheres? Igualdade salarial, creches de qualidade em horários que atendam a necessidade de trabalho das mulheres, escolas em período integral, pensar a legislação trabalhista e as jornadas de maneira que permitam que as pessoas cuidem umas das outras.  

É um pacote, porque essas coisas não se destacam na vida de cada pessoa. Elas se destacam quando a gente elabora uma lei, quando a gente elabora uma política pública, mas na vida das mulheres isso é tudo vivido junto: a jornada de trabalho que pode ou não ser conciliada com o horário da creche, a creche que tem vaga agora, mas depois no ano seguinte já não tem ou a situação de um desemprego em que muitas vezes eu não consigo nem ter as condições para buscar um novo emprego, porque eu tenho uma criança em casa, num horário que não me permite buscar esse emprego e assim vai.  

Este é um lado da coisa e para ser clara, eu sou muito favorável à entrada pelo mundo do trabalho para pensar o que acontece com as mulheres e para fazer frente às vulnerabilidades das mulheres. Então, acho que isso é muito importante e acho que é uma entrada que permite produzir legislação e políticas que sejam sensíveis também às desigualdades entre as mulheres, às diferentes experiências pelas quais as mulheres passam e a vulnerabilidade maior das mulheres mais pobres.  

Essa é uma agenda transversal. Mas como ficam as pautas mais ligadas à realidade das mulheres, como a descriminalização e a regulamentação do aborto? 

Me parece que a ideia de que a gente vai conseguir evitar as agendas que são mais conflituosas é romântica. A gente pode não falar, elas vêm da mesma maneira. E se a gente não garantir direitos reprodutivos e direitos sexuais para as mulheres, mesmo a agenda do mundo do trabalho fica muito enfraquecida. 

Na América Latina, hoje a gente tem um dado que é muito impressionante. Nós somos a região do mundo com o maior número de gravidezes na adolescência. Outro dado é que a idade média em que as pessoas se casam e têm filhos aumentou muito, mas quando a gente vai olhar para o segmento educacional e de renda, a gente vê que entre as mulheres com menor número de anos de educação formal e com menor renda, o casamento e a gravidez ainda têm vindo muito cedo. Isso incide muito sobre as suas possibilidades de trabalhar.  

E a gente vê outra coisa: é muito comum que essas mulheres estejam numa situação de ser as únicas responsáveis ou as principais responsáveis pelos seus filhos, o que torna ainda mais difícil conciliar trabalho com cuidado.  

Por que estou dizendo isso? Se a gente não tiver educação sexual nas escolas, se a gente não tiver programa de política pública adequada para a oferta de anticoncepcionais para prevenção de gravidez na adolescência e IST [Infecções Sexualmente Transmissíveis], as nossas meninas, e sobretudo aquelas em condição de maior vulnerabilidade, vão continuar a ter uma situação extremamente difícil do ponto de vista do emprego e da possibilidade de criar seus filhos e manter também para si alguma independência econômica.  

Mas a educação sexual nas escolas é uma agenda muito complicada porque foi uma agenda que os neoconservadores em toda a região usaram eleitoralmente em campanhas mentirosas. Bem, mas nós precisamos enfrentar esse problema. Nós precisamos conseguir explicar para as pessoas que isso é em benefício de suas filhas e filhos, que combater não só a gestação na adolescência, mas também a homofobia de maneira realista, é o que vai proteger seus filhos. O que vai proteger seus filhos não é fazer de conta que os problemas não existem.  

Política pública se faz com base em dados e evidências, e a gente faz política pública para que as pessoas possam ter seus direitos como cidadãos fortalecidos. É direito dos adolescentes e jovens que eles tenham acesso a informações que permitam que eles vivenciem sua sexualidade de maneira segura. Nós não podemos nos intimidar a ponto de não discutir temas que impactam a vida das pessoas diretamente.  

Esse é também o caso do aborto. O direito ao aborto é fundamental como parte dos direitos cidadãos das mulheres. Sem o direito ao aborto, os direitos reprodutivos ficam capengas, ainda que eu tenha programa, por exemplo, de educação sexual e oferta política pública com oferta adequada de anticoncepcionais.  

Que coletividade é essa que castiga mulheres, que, em sua maioria, pelas pesquisas que temos, são mães, que cuidam de seus filhos e têm eventualmente uma gestação pela razão que for indesejável. Quando a gente defende o direito ao aborto, a gente está defendendo a integridade física e psíquica das mulheres. Uma gestação não desejada ou uma de uma gestação em que, por exemplo, não existe a possibilidade de que o feto tenha vida extrauterina e que se obrigue uma mulher a levar a cabo essa gestação se equivale à tortura.  

Nós precisamos falar de aborto. Eu sei que é difícil em um contexto em que esse é um tema bastante utilizado para gerar polarização, em que a aceitação do direito ao aborto no Brasil pela população ainda é baixa em relação inclusive a países vizinhos. Mas olhe: não foi só no Uruguai, na Argentina, países em que tenha havido uma mudança muito forte. Também no México, também na Colômbia, o aborto foi descriminalizado, porque houve amplos consensos, articulações construídas de modo a que se chegasse a essas decisões. 

Dados históricos e recentes mostram que as mulheres negras representam uma parcela significativa da população que se encontra em situação de vulnerabilidade social. Com base nisso, como a senhora analisa o movimento de mulheres negras? 

No meu entendimento, os movimentos de mulheres negras são os que devem ser ouvidos primeiro e ter centralidade em todas as arenas de diálogo e escuta, porque são deles que vêm não apenas relatos de experiências e necessidades fundamentais para entender pelo que passam as mulheres brasileiras, mas também propostas muito avançadas em relação a todo o debate sobre justiça social e feminismo. 

Por que isso acontece? Porque o racismo e o machismo são tratados simultaneamente e de maneira indissociável, assim como as desigualdades, injustiças e violências de classe. Isso nos traz uma agenda de quais políticas é necessário construir e implementar para que a população seja de fato atendida e para que se avance em justiça social. 

Sempre é muito importante pensar na discussão que Sueli Carneiro faz sobre a maternidade, quando ela fala sobre o matriarcado da miséria. Isso porque é uma perspectiva que devemos considerar ao discutir a questão da maternidade e dos direitos reprodutivos que ainda não temos. Se olharmos para os direitos reprodutivos de forma isolada, estamos limitados ao direito individual e à autonomia. Então, há toda uma agenda de justiça distributiva e uma agenda que diz respeito às relações de cuidado e ao papel dessas mulheres como mães em suas comunidades, que os movimentos feministas negros têm trazido de maneira muito complexa e desafiadora. 

Como a pandemia afetou a situação das mulheres no mercado de trabalho?  

A pandemia de covid-19 agravou problemas pré-existentes e explicitou o modo como as relações de cuidado incidem na vida de mulheres e homens. Do meu ponto de vista, o mais importante é compreender que as mulheres estiveram numa situação de maior dificuldade e vulnerabilidade, pois elas já eram quem cuidava, não remunerada ou mal remunerada, das crianças, pessoas idosas e enfermas.  

No contexto da pandemia, as mulheres, especialmente as negras, ficaram numa posição difícil de ter que cuidar e trazer dinheiro para casa numa situação de agravamento da crise econômica. Entre as mulheres negras, há um maior percentual de respostas indicando que elas não puderam buscar emprego, pois tinham que cuidar de alguém.  

A pandemia traz à tona a agenda do cuidado de maneira muito forte e nos mostra que as desigualdades sociais e raciais atravessam as condições que temos de cuidar e receber cuidado. Esse problema persiste e nós precisamos lidar com as relações de cuidado se quisermos ser preocupados com justiça social e construir um país melhor para quem está em situação mais vulnerável. Os movimentos feministas, especialmente os de mulheres negras, trazem essa questão para o seu centro.  

Acho que a gente pode fechar a entrevista dizendo que o feminismo hoje é um conjunto heterogêneo e diversificado de movimentos e agendas, mas com uma forte preocupação com a construção de um mundo melhor para todas as pessoas, identificando problemas fundamentais para nossa sociedade, como o cuidado e a violência, e propondo soluções para enfrentar os desafios da sociedade. 

Edição: Thalita Pires

 
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