Profissionais de saúde que trabalham no hospital afirmaram a Marie Claire que a Secretaria Municipal de Saúde teria solicitado prontuários de pacientes que abortaram legalmente entre 2020 e 2023. Documentos contam com informações sigilosas, como nome e endereço das pacientes, e repasse sem requerimento judicial é crime. Procurada, a Secretaria Municipal de Saúde diz que abriu uma apuração interna para investigar "eventuais problemas em serviços oferecidos", mas não citou pedido de acesso aos prontuários
Por Camila Cetrone, redação Marie Claire — São Paulo (SP)
Serviço de aborto legal do Hospital Municipal e Maternidade da Vila Nova Cachoeirinha foi suspenso pela Prefeitura de SP em dezembro — Foto: Reprodução/Prefeitura de São Paulo
A Prefeitura de São Paulo teria obrigado o Hospital e Maternidade Vila Nova Cachoeirinha, referência no serviço de aborto legal no país, a entregar prontuários médicos sigilosos, sem requerimento judicial, de pacientes que fizeram a interrupção legal na unidade de 2020 a 2023. A solicitação teria sido feita pouco depois de o serviço ser encerrado pela gestão Ricardo Nunes (MDB), em dezembro de 2023.
Entre os dias 19 e 23 de janeiro, Marie Claire ouviu profissionais de saúde que trabalham no hospital. Eles afirmam que o pedido da Secretaria Municipal de Saúde foi de receber todos os prontuários de meninas, mulheres e pessoas que gestam que acessaram o serviço de aborto legal nos últimos quatro anos.
Só em 2023 foram mais de 100 abortos realizados, segundo um dos profissionais que aceitou falar com a reportagem sob anonimato. Entre as informações que constam nos prontuários estão nome completo, ano de atendimento e endereço de residência das pacientes.
Uma residente, que também não quer ser identificada e atuou no serviço de aborto legal do Vila Nova Cachoeirinha, afirma que o pedido de "encaminhamento compulsório" dos prontuários pela Secretaria foi notificado pela diretoria do hospital. "Não houve nenhuma possibilidade de diálogo da instituição com a Secretaria nesse sentido. Foi algo imposto que o hospital teve que acatar." Segundo ela, parte dos prontuários já foram entregues.
No Brasil, é permitido por lei acessar o serviço de aborto legal em casos de gravidez decorrente de estupro, de feto anencéfalo ou que causa risco de vida à pessoa que gesta, sem limite de tempo. Referência há 30 anos, o Vila Nova Cachoeirinha era um dos quatro hospitais em todo o país que interrompia gravidezes acima da 22ª semana – por mais que a legislação não determine tempo limite para fazer o aborto legal.
A reportagem consultou Renata Farah, advogada especializada em direito médico e de saúde, que afirma que as informações de um prontuário são protegidas por sigilo médico, mas também pelo direito constitucional à intimidade, pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e pelo Código de Ética Médica do Conselho Federal de Medicina (CFM) – este último só permite o acesso a informações de prontuário se houver autorização por escrito do paciente, requerimento judicial ou se o documento for uma maneira de defender um profissional de saúde.
Farah avalia que a suposta solicitação do município é ilegal, e viola o Artigo 5º da Constituição Federal (por ferir o direito à dignidade e intimidade), as regras da LGPD (que considera a sensibilidade desses dados), e os Artigos 73 e 89 do Código de Ética Médica. "Independente do motivo que justifique a solicitação de obtenção de dados pessoais e de saúde de forma ampla (seja a elaboração de políticas públicas sobre o tema ou investigação de irregularidades nos atendimentos), nada justifica a violação à privacidade e infração ao sigilo entre o médico e o paciente", analisa Farah.
Após a suspensão do serviço em dezembro, a Secretaria Municipal de Saúde afirmou que o hospital receberia “mutirões de cirurgia, como de endometriose e histerectomia, e outros procedimentos envolvendo a saúde da mulher a fim de atender à demanda necessária” nas dependências onde funcionava o serviço de aborto.
O motivo para o acesso aos prontuários não foi explicado aos profissionais de saúde. As informações recebidas pelo quadro de profissionais, segundo a residente, "por via da mídia, extraoficialmente e por conversas informais".
No entanto, a hipótese é de que a ação esteja relacionada a uma suspeita da Secretaria Municipal de Saúde de que a unidade fazia abortos fora dos casos previstos por lei. Em 18 de janeiro deste ano, o secretário Luiz Carlos Zamarco afirmou a CNN Brasil que a suspeita decorre do grande volume de busca pelo serviço de pessoas que residem fora da capital paulista. Zamarco também disse na ocasião que, se a suspeita fosse confirmada, pediria a instauração de uma sindicância; e ainda que a pasta quer saber informações como de que maneira cada paciente chegou até o hospital até os nomes dos médicos que realizaram os procedimentos.
Procurada por Marie Claire, a Secretaria Municipal da Saúde afirmou em nota que abriu uma apuração interna para investigar "eventuais problemas em serviços oferecidos" no Vila Nova Cachoeirinha "e o atendimento a pacientes de outros estados que chegavam à unidade hospitalar para realização do procedimento". No entanto, não se pronunciou quanto ao pedido de acesso aos prontuários médicos das pacientes.
Em 17 de janeiro, a 9ª Vara de Fazenda Pública do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) exigiu que o serviço de aborto legal do Vila Nova Cachoeirinha seja reativado, além de determinar que a prefeitura faça uma "busca ativa para que todas as pacientes que tiveram o procedimento cancelado sejam atendidas com brevidade, abstendo-se o hospital público, ainda, de negar o agendamento do procedimento para novas pacientes". A 9ª Vara de Fazenda Pública voltou a determinar a reabertura em nova decisão no último dia 23.
A decisão da Justiça também oferece a alternativa de restabelecer o serviço em outra unidade hospitalar na capital paulista. Se a prefeitura optar por ela, deverá redirecionar e reagendar os atendimentos das pacientes dentro do prazo de 10 dias. Afirma ainda que o fechamento impacta, sobretudo, "mulheres em hipervulnerabilidade social".
A Secretaria Municipal da Saúde afirmou a Marie Claire que foi notificada pela Procuradoria-Geral do Município (PGM) sobre a decisão e que “está à disposição da Justiça para prestar todos os esclarecimentos necessários”. Informa que o serviço de aborto legal continua em funcionamento em outras quatro unidades de referência, “independentemente do período gestacional, conforme estabelece a legislação em quatro hospitais” (veja os endereços no fim da reportagem), e em hospitais estaduais. Na última semana, a prefeitura retirou a orientação que vetava o aborto legal após o terceiro trimestre de gestação de seu site.
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Para ela, a fala do secretário demonstra "falta de conhecimento do SUS", já que o Sistema Único de Saúde dispõe de cobertura nacional para todos os brasileiros, em qualquer estado. Essa diretriz está prevista na Lei nº 8080, sancionada em 1990, que estabelece a criação e o funcionamento do SUS.
"Como éramos um dos 4 hospitais do país que faziam o procedimento, é óbvio que vamos receber pacientes de outro estado. Agora, com nosso fechamento, pacientes do estado de São Paulo estão tendo que buscar atendimento em outros estados", diz a residente. Pouco depois da suspensão do serviço de aborto legal do Vila Nova Cachoeirinha, Marie Claire contou as histórias de mulheres vítimas de estupro que precisaram se deslocar a outros estados – uma, inclusive, menor de idade que passou dois dias em um ônibus – para poder realizar o procedimento.
A solicitação de documentação sigilosa das pacientes passou a ser um fato conhecido por pessoas que integram movimentos sociais pró-direitos reprodutivos. Rebeca Mendes, diretora-executiva do Projeto Vivas, ONG que conecta mulheres a serviços de aborto legal no Brasil e no exterior e que tem articulação junto aos serviços de saúde referência no país, definiu a suspeita da Secretaria como “absurda”.
“O que foi encontrado [nos prontuários] é apenas a realidade vivenciada por inúmeras meninas, mulheres e pessoas que gestam; e que parecia, até então, ser de desconhecida pela gestão da secretária: que é a necessidade de deslocamento entre cidades, estados e regiões do Brasil para que essas crianças e mulheres – em sua grande maioria, vítimas de estupro – pudessem acessar um direito que lhes é garantido por lei”, diz.
Marie Claire buscou o Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem) da Defensoria Pública de São Paulo, que desde o princípio pede pelo restabelecimento do serviço de aborto legal do Vila Nova Cachoeirinha, para questionar sobre os pedidos de prontuários médicos das pacientes.
A defensora Tatiana Bias Fortes, coordenadora do Nudem, respondeu que o núcleo "não foi comunicado acerca dessa suposta conduta da Prefeitura de solicitar acesso irrestrito aos prontuários médicos do Hospital". Mas que “tais fatos, se ocorreram, são graves, pois poderiam configurar assédio institucional e, para tanto, demandariam apuração".
A defensora ressalta que o Nudem "sempre verificou atuação escorreita e dentro da legalidade" e que "não há ilegalidade em prestar serviço de saúde de interrupção legal de gestação a mulheres e meninas de outras cidades".
"Não há exigência legal de comprovante de residência, o que configuraria uma barreira que violaria o acesso à saúde de meninas e mulheres. Deixar de atender mulheres e meninas vítimas de violência sexual que têm o direito de interromper a gestação, obrigando-as a continuar com a gravidez forçada decorrente de estupro, pode configurar infração ética médica e, em alguns casos, até omissão de socorro."
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Relembre o caso
Em dezembro de 2023, a Prefeitura de São Paulo suspendeu o serviço de aborto legal do Vila Nova Cachoeirinha, que há trinta anos era referência nesse tipo de atendimento. Segundo a equipe do hospital, só no último ano foram realizados 407 atendimentos e 153 abortos na unidade. Em dezembro, a Secretaria Municipal de Saúde passou a barrar procedimentos que seriam realizados em pessoas que têm direito ao aborto legal, mas que passavam pelo terceiro trimestre de gravidez.
Desde então, a Prefeitura de São Paulo é questionada sobre as justificativas pelas quais fechou o serviço e por pedidos judiciais que ordenam a volta do funcionamento do atendimento na unidade.
Além da determinação da Justiça de São Paulo, o Nudem e o Ministério Público Federal (MPF) emitiram ofícios em que questionam a Prefeitura de São Paulo sobre a justificativa usada para a suspensão do serviço. O Nudem ainda definiu o fechamento como “violação aos direitos de dignidade, saúde sexual e reprodutiva"; e o MPF afirmou que a interrupção da disponibilidade "causa transtornos a mulheres que se enquadram nos casos legalmente autorizados para aborto".
Em resposta, mais de 20 organizações sociais, feministas e mandatos políticos paulistanos organizam um ato em frente à sede da Prefeitura de São Paulo, no Viaduto do Chá, centro de São Paulo, pela retomada do serviço de aborto legal no Hospital Vila Nova Cachoeirinha. A manifestação está marcada para hoje (24), às 17h.
Onde acessar o serviço de aborto legal na cidade de São Paulo
De acordo com a Secretaria Municipal de Saúde o serviço de aborto legal na cidade de São Paulo está disponível em quatro unidades:
- Hospital Municipal e Maternidade Prof. Mario Degni
Rua Lucas de Leyde, 257 - Rio Pequeno
Telefone: (11) 3394-9330 - Hospital Municipal Tide Setúbal
Rua Dr. José Guilherme Eiras, 123 - São Miguel
Telefone: (11) 3394-8770 - Hospital Municipal Municipal Dr. Fernando Mauro Pires da Rocha
Estrada de Itapecerica, 1661 – Campo Limpo
Telefones: 3394-7504 / 7503 (SERAVIVI) ou 3394-7647 (Ambulatório do PROAVIVIS) - Hospital Municipal Dr. Carmino Caricchio
Avenida Celso Garcia, 4.815 - Tatuapé
Telefone: (11)3394-6980
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