Quase lá: PL (de) 1.904

O Projeto de Lei 1.904/2024 é tão absurdo que poderíamos pensar que, por engano, ele seria o PL 2.024 de 1904. Fere qualquer noção de direitos humanos e justiça construída num estado democrático de direito

 

SHYRLENE BRANDÃO, psicóloga clínica e da saúde, mestre em psicologia clínica pela UnB - artigo publicado no jornal Correio Braziliense em 19/6/2024
Aborto Gravida Gravidez -  (crédito: Editoria de Arte)
Aborto Gravida Gravidez - (crédito: Editoria de Arte)
 

 O Projeto de Lei 1.904/2024 é tão absurdo que poderíamos pensar que, por engano, ele seria o PL 2.024 de 1904. Fere qualquer noção de direitos humanos e justiça construída num estado democrático de direito. Ameaça direitos e subjetividades de meninas e mulheres brasileiras. Não apenas criminaliza o aborto acima de 22 semanas, como torna a pena de quem o praticar superior à que pode ser atribuída ao próprio estuprador. Sim, a sobrevivente de violência poderá ter uma pena duas vezes maior do que a daquele que a violou caso fique grávida da violência e acesse o aborto após as 22 semanas de gestação, sobre o qual não há impedimento atualmente no Código Penal.

Além da gravidade jurídica da matéria, venho aqui expor minha experiência de quem escuta há três anos e meio meninas e mulheres que, além de sofrerem violência sexual, vivem uma das consequências mais graves decorrentes dessa violência: uma gestação. As dificuldades de acesso ao aborto legal são inúmeras: os serviços estão em apenas 3,6 % dos municípios brasileiros, concentrados, sobretudo, na região Sudeste; os tabus, os mitos e a criminalização do aborto; o desconhecimento tanto das pessoas quanto de muito profissionais da saúde e de demais políticas públicas de como acessar o aborto previsto em lei; a falta de autonomia, principalmente das meninas, para buscarem os serviços; a desigualdade que faz com que mulheres negras e periféricas morram mais por aborto inseguro no Brasil. São realidades que emolduram essa cena que o PL criminaliza: uma menina ou mulher em busca do aborto legal com quase ou mais de 22 semanas de gestação.

Mas, como psicóloga, acrescento um dado delicado, não facilmente registrado pelos números, que auxilia a compreender a busca mais tardia pelo direito ao aborto. Quando vivemos uma experiência que produz dor e sofrimento, queremos nos livrar disso e manter nossa noção de sujeito protegida. Para isso, usamos, inconscientemente, inúmeros mecanismos de defesa. Num primeiro momento, muitas sobreviventes de violência sexual buscam "esquecer" o que ocorreu. Negam, recalcam qualquer memória a fim de se proteger da dor de ter seu corpo submetido a uma violação atroz e conseguir seguir a vida. A intensidade desses mecanismos as protege muitas vezes de perceber as alterações corporais. Algumas seguem com sangramentos, que são interpretados como menstruação, e a racionalização as mantém protegidas de lidar com a avassaladora informação da gestação, principalmente se é uma menina que não sabe como um feto entra na barriga da gestante.

A gravidez só é percebida por familiares ou profissionais quando está mais adiantada. Muitas vezes, esses profissionais dão início ao pré-natal da paciente ignorando o óbvio direito à interrupção da gestação por estupro de vulnerável (gravidez abaixo dos 14 anos ou em situação em que não há capacidade para consentir) ou por demais tipos de violência sexual.

 A criminalização do aborto após 22 semanas agravará as barreiras já existentes a qualquer idade gestacional para acesso a um direito previsto no Código Penal desde 1940. A aprovação do PL agrava as múltiplas violências vividas por meninas e mulheres sobreviventes de violência sexual. Retrocede o Brasil a 1904 e as condena à dor, à morte, à prisão ou à tortura de seguir com uma gestação iniciada por uma violação dilacerante. 

Os profissionais que atuam no cuidado à saúde serão obrigados a lidar com a gravidade das ações que meninas e mulheres podem realizar para se livrarem da dor e do sofrimento de uma gestação por violência sexual, que podem, inclusive, colocar suas vidas em risco. No contexto de trabalho, o aumento da criminalização do aborto aumentará o estigma vivido por esses profissionais que lutam cotidianamente para acolher de forma humanizada essas pacientes; para dialogar com outros profissionais que, por desconhecimento ou crenças pessoais, se opõem ao aborto, ou, de forma mais grave, negam informações e cuidados necessários a uma pessoa que sobrevive à violência sexual.

O PL 1.904/2024 criminaliza quem deveria proteger, pune quem deveria tratar de forma digna e humanizada. Não trata as causas, que é responsabilidade do Estado, mas propõe punição de meninas e mulheres que deveriam ter direitos assegurados à vida, à dignidade, a não ter seu corpo violado, e, caso isso ocorra, a ter os cuidados previstos na Carta Magna Brasileira, no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e em inúmeros documentos internacionais dos quais o Brasil é signatário.

fonte: https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2024/06/6880470-pl-de-1.html?tbref=hp

 


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