Câmara aprovou celeridade na tramitação do texto na semana passada, sob o patrocínio de Lira e da bancada evangélica
Deputada Erika Hilton, líder do PSOL, durante manifestação no plenário nesta quarta (18) - Mario Agra / Câmara dos Deputados
A bancada do Psol na Câmara dos Deputados se articula para protocolar um requerimento que pede a extinção da tramitação de urgência da proposta que criminaliza o aborto após 22 semanas de gestação mesmo nos casos já permitidos no país, como o estupro. De autoria de parlamentares fundamentalistas, a medida teve a celeridade aprovada na última quarta (12) após articulação da bancada evangélica e sob o patrocínio político de Arthur Lira (PP-AL). O presidente da Casa submeteu a urgência a uma votação em cerca de 24 segundos e sem anunciar no microfone o que estava sendo apreciado pelo plenário. A postura gerou críticas de parlamentares de esquerda e uma sequência de protestos pelo país.
Agora, diante da reação massiva contra o texto, os psolistas buscam angariar assinaturas para garantir o quórum ao pedido de retirada de urgência da proposta, que tramita como projeto de lei (PL) 1904/2024. De acordo com especialistas em Regimento Interno da Câmara dos Deputados (RICD) ouvidos pela reportagem, o procedimento de retirada de urgência é incomum na dinâmica do Legislativo. Pode, no entanto, ser respaldado pelos artigos 104, 117 e 156 do RICD, que dispõem sobre situações do tipo. Uma iniciativa dessa natureza precisa de 257 assinaturas para ter repercussão prática.
"Este é mais um projeto contra a dignidade, contra a democracia, contra o direito constitucional e contra a vida de mulheres e crianças que, muitas vezes, são vitimadas pelo ódio e pelo estupro. Por isso nós queremos a retirada da urgência desse projeto porque, para nós, não há saída para o PL 1904. A melhor saída é que ele seja enterrado, esquecido e que mulheres, crianças, meninas vítimas da violência do estupro parem de ser perseguidas", disse nesta terça (18) em plenário a líder da bancada, Erika Hilton (SP).
O texto do projeto de lei é de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), membro da bancada evangélica, e outros 32 parlamentares de ideário semelhante. Nesta terça, a medida foi alvo de outra iniciativa por parte de psolistas: as deputadas Sâmia Bomfim (SP) Fernanda Melchionna (RS) apresentaram junto à mesa diretora da Câmara um pedido de devolução do PL aos seus autores. As parlamentares argumentam que a proposta é inconstitucional porque viola os direitos constitucionais à vida, a igualdade e à não discriminação, bem como bate de frente com a proibição de prática de tortura, tratamento desumano e degradante e ainda com o direito à saúde e ao acesso universal e igualitário aos serviços de saúde.
"Esse PL é claramente um retrocesso, uma violação do direito das meninas e mulheres. É um projeto que impõe a gravidez infantil e quer criminalizar as vítimas de estupro. Além de elas serem vítimas de estupro, seriam revitimizadas ao serem impossibilitadas de recorrer ao aborto legal e seguro. Tem, no mínimo, três princípios constitucionais que são feridos por esse PL. Então, motivos não faltam para o arquivamento imediato da matéria. Óbvio que isso depende da luta política e da mobilização das mulheres, que têm sido muito importantes pra que esse retrocesso não prospere", disse Melchionna ao Brasil de Fato.
OAB
O pedido das parlamentares do Psol está alinhado também com o que foi manifestado na segunda (17) pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O conselho federal da entidade aprovou um parecer técnico-jurídico segundo qual o PL 1904/2024 agride princípios constitucionais fundamentais, como a dignidade da pessoa humana, o melhor interesse da criança e a solidariedade familiar. O documento aponta ainda violação aos direitos das meninas e mulheres e pede que o arquivamento da proposta.
O texto deverá ser encaminhado pela presidência da OAB à Câmara e ao Senado. Por fim, o parecer propõe que, no caso de os parlamentares darem sinal verde ao conteúdo da proposta, a medida precisa ser submetida posteriormente ao Supremo Tribunal Federal (STF) para que seja feito o controle de constitucionalidade, procedimento em que os magistrados avaliam a conformidade de uma determinada proposta em relação à Carta Magna.
Votação de mérito
Nos bastidores da Câmara, alguns parlamentares do campo reacionário pisaram no freio no que se refere às tentativas de levar o projeto adiante. A desaceleração surge após os massivos protestos de rua que tomaram o país nos últimos dias. Uma enquete virtual lançada pela Casa em meados de maio mostra que, até a noite desta terça (18), um percentual de 88% dos votantes dizem “discordar totalmente” da proposta. Foram computados 961.761 votos nesse sentido. O segundo grupo é o dos internautas que dizem “concordar totalmente” com o texto, que soma 12% das manifestações ou 121.220 votos. Na sequência, aparecem as categorias dos que indicam “discordar na maior parte”, “concordar na maior parte” ou “estou indeciso”, que não chegaram a 1% de representatividade.
Para o deputado Chico Alencar (Psol-RJ), apesar da alta rejeição popular, não é possível vislumbrar uma desistência por parte da ala evangélica em relação ao texto, que pode ter o mérito colocado em votação em momento politicamente mais conveniente para o grupo. "Não tenho essa expectativa porque o fundamentalismo trata questões sociopolíticas como questão de dogma e de fé e prossegue nessa trilha meio fanatizada. Claro que não é assim que se opera no parlamento. Aqui é a casa da polêmica, da divergência, do dissenso, mas também da racionalidade, então, a disputa vai continuar e acredito que as mobilizações contra o PL, também."
Edição: Thalita Pires