A realidade de quem tem direito e precisa abortar no Brasil já é bastante difícil.
Crédito: Fernando Frazão/Agência Brasil
por Carol Vergolino*
Imagine uma criança de dez anos que é estuprada. Essa criança engravida e quando entende que está grávida, tem vergonha, medo, ou não sabe a quem pedir ajuda. Finalmente essa criança, lá pela 20ª semanas, pede ajuda ou a sua família percebe e, aí, a mãe dela busca, -quando ela tem esse informação -, o direito ao aborto legal. Digamos que na cidade que ela mora não tem esse serviço, afinal a maior parte das cidades brasileiras realmente não tem, e ela precisa arranjar uma forma de buscar esse serviço em outra cidade. Ela é pobre e não tem como pagar o transporte pra ir na capital e, então, ela arranja um jeito, junta dinheiro com familiares para, finalmente, chegar ao serviço já com a criança na 22ª semana de gestação.
Pronto, chegou tarde, agora essa criança será obrigada a gestar e parir o fruto de uma violência ou então, se realizar o aborto, poderá ser presa por 20 anos acusada de homicídio. Caso o estuprador dessa criança seja detido, ele ficará preso por até dez anos, metade do tempo de pena da sua vítima.
Isso pode acontecer caso o PL 1904 seja aprovado. O que está em debate não é ser contra ou a favor do aborto. O que está é debate é retirar os direitos ao aborto legal já previstos em lei desde o Código Penal de 1940.
Revitimizar quem já é vitima, acabar com o futuro de uma menina que já foi abusada e violentada. No Brasil o aborto é legalizado em três hipóteses: gravidez resultante de violência, se a mulher ou menina corre risco de vida por conta daquela gravidez e em caso de feto anencéfalo. Meninas, com menos de 14 anos além de terem sido vítima de estupro, ainda correm risco de vida porque seus corpos não estão preparados para carregar uma gestação.
A realidade de quem tem direito e precisa abortar no Brasil já é bastante difícil. Dos 5.570 municipios do país, apenas 104 tem um serviço de aborto legal, de acordo com a GloboNews a partir de dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde do Ministério da Saúde. Mas as crianças, mulheres e pessoas que gestam são violentadas a cada minuto no Brasil. Segundo dados da Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2022 foi o ano com o maior número de registros de estupros e estupro de vulnerável da história, com 74.930 vítimas — um caso foi registrado a cada sete minutos no país e 75,8% são em menores de 14 anos.
Mesmo com o direito ao aborto legal reconhecido há 84 anos, muitas dessas crianças se tornam obrigadas a parir, justamente por não conseguir acessar esse direito. Há uma média de 25.280 casos de gravidez de vulnerável por ano, ou 70 crimes por dia. A cada 20 minutos uma criança é mãe no Brasil.
Em um país com uma epidemia do estupro, da violência contra a mulheres, meninas e pessoas que gestam, deputados fundamentalistas propõe esse tipo de legislação. Além de ferir a própria Constituição e o Código Penal, fere o princípio da dignidade humana, que não coaduna com nenhum tratado nacional que o Brasil é signatário. Crianças não são cidadãs de segunda classe, têm direitos e dignidade.
O deputado federal pernambucano Pastor Eurico (PL-PE) foi um dos signatários desta proposta. Ele já está em seu quarto mandato, é pastor evangélico da Assembleia de Deus e foi relator do projeto de lei que proíbe o casamento homoafetivo e tentou votar a legalização da “cura gay” e ainda é presidente da Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara. Quais as crianças que esse deputado quer defender com essa proposta? É da bancada evangélica também no Congresso, que participa da deputada federal Clarissa Tércio (PP-PE) e pré-candidata à prefeitura de Jaboatão.
A deputada tentou invadir o Cisam durante a pandemia para impedir que uma menina de 10 anos, vítima de estupro, fizesse ao aborto seguro e legal a que tinha direito. Essa mesma deputada foi condenada por transfobia e atualmente é investigada por apoiar atos golpistas do 8 de janeiro de 2022. Esses políticos se dizem pró-vida, mas me pergunto a vida de quem?
Em apenas 23 segundos, numa votação escusa, o presidente da Câmara Federal, Artur Lira, comandou a votação do pedido de urgência do PL 1409, que foi aprovado de forma simbólica. O que quer dizer que ele não precisa passar em nenhuma comissão temática, onde acontecem os debates, que ele já está apto a ir a votação no plenário. Sabe-se que essa manobra de Lira, é para agradar à bancada evangélica, que pode garantir sua reeleição à presidente da casa.
Essa aprovação gerou reação nas ruas de todo o país. Puxado pelo movimento de mulheres, atos e caminhadas já começam a acontecer e estão planejados em todo o país. Aqui em Recife, o movimento Feminista convida para grande ato na praça do Derby, na segunda 17 de junho. Com lenços verdes as mulheres e homens aliados à causa já ganharam as ruas em diversos países da América Latina e agora é a vez do Brasil. A luta é pela vida das mulheres. A luta é para que crianças não sejam mães. A luta é por nenhum direito a menos.
*Cineasta e ex-codeputada das Juntas (PSOL-PE)
É um coletivo de jornalismo investigativo que aposta em matérias aprofundadas, independentes e de interesse público.
fonte: https://marcozero.org/a-gravidez-infantil-e-a-perversao-fundamentalista/