A filósofa Marcia Tiburi traz reflexões que desmascaram as motivações do PL 1904/2024, que busca equiparar aborto ao crime de homicídio, mesmo nos casos legalizados.
Na última vez em que defendi publicamente a legalização do aborto, fui atacada por um deputado limítrofe, cujo nome está sempre na lista dos mais corruptos. Além disso, perdi meu emprego numa universidade privada em cujo curso de pós-graduação eu constava como uma das professoras mais produtivas, senão a mais produtiva. Inclusive, naquela época, já havia escrito sobre o aborto, de um ponto de vista filosófico, e meu artigo tinha constado, sem maiores problemas, como parte da minha produtividade acadêmica. Ou seja, não havia nenhum mal em escrevê-lo mesmo sendo empregada daquela instituição que, naquela época, não havia aderido ao fascismo dos anos bolsonaristas.
Num artigo publicado nos EUA, eu era chamada de “professora abortista” por um membro da igreja e tratada como uma “comunista” e “ativista feminista pró-aborto” que jamais deveria ter sido contratada na referida universidade. Nesse caso, o sujeito não sabia que, ao ser contratada, em 2008, eu nunca havia escrito nada sobre o aborto.
De fato, eu havia sido contratada porque, embora eu tenha uma presença pública como intelectual, por cerca de 30 anos eu mantive meu trabalho como professora e pesquisadora e, para desespero de meus odiadores (na USP em um concurso de 2007 fui preterida sob a alegação de “essa mulher aqui, nem pensar), meu currículo acadêmico não foi negligenciado, em que pese que jamais tenha sido o meu principal foco na vida.
Ora, fui aprovada em concursos públicos, apesar do reconhecido e notório ódio contra mim, e no caso dessa instituição, era visível que eu tinha um currículo adequado e sabia dar aulas adequadas. Em todas as universidades em que lecionei, pude perceber o mal estar de alguns colegas, sua inveja, sua maldade, na pele.
Mas não estou falando sobre isso, senão para situar o que tenho a dizer, sem deixar de colocar que paguei preços altos, menos por meu ativismo, creio eu, do que por minhas ideias enquanto professora de filosofia. A combinação das duas coisas parece ser uma bomba na cabeça dos patriarcas que não suportam perder o apanágio das ideias.
Óbvio que a minha postura de livre pensadora desagrada a muitos. Também é bom deixar claro que eu nunca quis agradar, que não me curvo, que gosto é da liberdade de ser quem eu sou. E dizer o que penso faz parte disso.
Bom, mas em 2015, quando aconteceu a tal demissão, participei de uma audiência sobre a legalização do aborto no Senado. Eu havia escrito um texto bem despretensioso, contudo no referido texto eu falava sobre as falácias no discurso sobre o aborto.
Lembro até hoje de alguns personagens sentados à minha frente balançando a cabeça sem entender o que eu dizia. Eram homens burros e incompetentes, que até hoje seguem em cargos dos quais fizeram profissão. Esses homens que compareceram à cena do debate para criar caso, não fazem nada além de parasitar o Estado brasileiro e usam pautas relacionadas a direitos de mulheres e crianças para se promover através da mistificação.
Digo que são burros – prefiro essa palavra do que o eufemismo “desinteligência” ou “dissonância cognitiva” que amenizam o caráter dos canalhas – e incompetentes e que usam isso para se promover e, nesse sentido, obviamente são os mais espertos.
Sequestrando a fé do povo e transformando Deus e Jesus Cristo em mercadoria, eles ascendem ao poder. Além de tudo, digo que são feios, lembram aqueles personagens aterradores dos quadros de Bosch e Bruegel e usam, além de seu discurso desqualificado, sua feiura para causar efeitos de poder. Eles olhavam com suas caras feias tentando intimidar.
O deputado que me atacou gritava num gesto de Ubu Rei. Na câmara dos deputados isso virou tática de guerra: grunhir, gritar, cuspir e escarrar, xingar, ameaçar, coçar o saco e coisas do tipo, fazem sucesso com esses personagens que são verdadeiros lobisomens da política. As mulheres de esquerda são alvo preferencial, assim como Deus e Jesus, transformados em objetos na boca desses tipos.
Não vou citar os nomes desses homens para evitar ser processada no eterno assédio judicial que sofro, mas a carapuça tem dono. As provas mais declaradas do cinismo, estão por aí nas redes: pastores sem vergonha nenhuma dizem que crianças são culpadas de serem violentadas, pastores contam sem acanhamento que abusam de suas filhas como aquele que beijou a própria filha na boca para espanto da própria jovem aviltada e violentada.
Mas voltando, creio que eu tenha sido perseguida por conta do tema do aborto, acima de qualquer coisa, por eu ser uma professora de filosofia e me envolver com o que os homens não querem que mulheres mexam: as ideias. Ideias sempre foram disputadas entre homens, e quando mulheres entram em cena, no que concerne ao poder do conhecimento, acontece o mesmo que acontece com o poder político.
As mulheres são tratadas como intrusas e, se ficarem fortes e realmente provocarem, serão tratadas como bruxas que devem ser queimadas na fogueira. A lenha dessa fogueira é sempre a vaidade e a inveja dos homens. O combustível do fogo contra as mulheres é o narcisismo e o ódio.
Vale lembrar que as mulheres conhecem o discurso de ódio na pele há séculos. Na cultura machista do patriarcado, esse ódio é chamado de misoginia, e ele é tão naturalizado, que não é tipificado como crime como outros ódios o são.
Naquele texto de 2015, eu falava sobre algumas falácias. Eu falava do próprio termo “aborto” usado em sentido falacioso. Ela é visível quando se desloca no discurso a questão da legalização, um tema do direito, para o tema do aborto em abstrato, o que coloca o aborto como uma questão metafísica, da qual deve derivar uma moral.
A falácia está justamente nesse deslocamento: quando se desvia do assunto para mistificar. Essa falácia naturalista – passar do “ser” ao “dever ser” – instaura uma outra, a falácia do apelo à autoridade (chamada em latim de ad verecundiam) pela qual os “pastores” e “padres”, ou homens em geral, querem se fazer passar por pessoas que sabem mais sobre as mulheres e suas vidas do que elas mesmas.
Junto a ela, a muito conhecida falácia ad hominem, pela qual se tenta jogar com uma suposta imoralidade das mulheres, atacando a mulher que aborta ou que defende a legalização do aborto, como se fossem monstros que merecem ser eliminados.
A falácia do apelo à vida do embrião é o que está em disputa quando se trata do chamado “Estatuto do Nascituro” pelo qual o não-nascido – lembremos que o não-nascido está habitando o corpo de uma mulher nascida – tem mais direitos do que ela mesma (!).
Para se usar essa falácia é preciso criar antes uma teoria sobre a vida. Lembremos que nenhuma teoria sobre a vida é livre de julgamentos e que justamente por isso se cria o direito das mulheres para assegurar que haja justiça sobre um assunto em disputa.
Nessas teorias dos homens, a vida não nascida vale mais do que a vida de uma menina e de uma mulher contrariando, portanto, o direito de pessoas nascidas, no caso, mulheres e meninas violentadas por estupros e novamente violentadas através de sua criminalização. São vítimas de um crime que serão criminalizadas.
Os estupradores receberão o prêmio de serem “pais” de um ser nascido da violência. A vítima será punida se tornando “mãe” de um ser indesejável nascido de um ato criminoso que a mulher ou a menina terá que passar o resto da vida lembrando. Bom lembrar que os direitos das mulheres são direitos humanos, mas esses homens não gostam de seres humanos e nem de mulheres e meninas.
É isso o que está sendo reforçado agora.
Todo mundo sabe que o aborto em caso de estupro é permitido no Brasil. Todo mundo sabe que a vida das meninas e das mulheres não é respeitada por homens, sejam os que as estupram, sejam os que, defendendo a ilegalidade e a criminalização do aborto nos casos dessas meninas e mulheres, estão ao mesmo tempo incentivando o estupro.
Os pastores que estupram e matam estão defendendo a si mesmos e criando suas prerrogativas e privilégios, pois querem seguir controlando os corpos femininos, ou seja, tendo o apanágio de estuprar e matar mulheres.
Por trás de seus discursos enganadores, eles instrumentalizam o embrião. Nenhuma novidade nisso. Homens machistas (assim como deputadas e outras mulheres lacaias) fazem isso o tempo todo com os corpos de mulheres e de meninas.
Acostumaram-se a fazer isso com os corpos dos trabalhadores e dos pobres que, assim como os corpos de pessoas LGBTQIA+ e, estão lançados na morte violenta que dá a esses homens também um profundo prazer em realizar. Eles têm prazer no estupro e em ver sofrer até a morte. São seres diabólicos e não fingem que não são.
A pergunta que não pode deixar de ser colocada é a seguinte: se instrumentalizam, mercantilizam e monetizam até Deus e Jesus – a quem fingem adorar -, por que não fariam isso com pessoas a quem dedicam seu ódio sem nenhuma vergonha?
O império patriarcal e machista é o império do ódio contra os corpos humilhados, abusados, violentados. Em termos de manipulação e aviltamento, não há diferença entre Deus e uma menina estuprada.