Em estudo que acompanhou 10 mil mulheres nos EUA, a demógrafa Diana Greene Foster diz que não há evidências de que aborto faz mal às mulheres e 95% não se arrependem da decisão. Em entrevista a Marie Claire, ainda comenta PL 1904/24, que equipara aborto a homicídio: ‘Criminalização não tira a determinação das pessoas’
Mulheres sentem alívio ao abortar e procedimento não faz mal a saúde, demonstra estudo da demógrafa Diana Greene Foster — Foto: Lisa Wiseman/Divulgação
"Não encontramos evidências de que o aborto prejudique as mulheres." Essa é a frase que a demógrafa, professora da Universidade da Califórnia e pesquisadora de direitos reprodutivos Diana Greene Foster escolhe para descrever as descobertas de um longo estudo que produziu sobre as circunstâncias de uma gravidez indesejada. Não só: 90% das participantes relataram que sentiram alívio depois de terem conseguido interromper uma gestação; e 95% reconheceram que o aborto foi a decisão certa para suas vidas.
O Estudo Turnaway, publicado neste ano no Brasil no livro Gravidez Indesejada (ed. Sextante, 336 págs., R$ 69,90), é definido como mais extenso estudo norte-americano sobre as consequências de ter ou não acesso ao aborto. Entre 2008 e 2013, ela e uma extensa equipe multidisciplinar acompanharam 10 mil mulheres, entre as que conseguiram abortar (no primeiro trimestre ou perto do limite gestacional) e as que não conseguiram (por terem ultrapassado o limite).
O intuito de Foster era trazer dados e uma apuração rigorosa a um assunto que, além de frequentemente debatido sob achismos – inclusive na ciência –, vive no centro de uma disputa política, moral e religiosa.
"As pessoas, sobretudo opositoras ao aborto, diziam se preocupar que mulheres seriam machucadas depois de abortar e que iriam desenvolver transtornos mentais. Não havia dados para apoiar isso", conta sobre sua motivação para o estudo, em entrevista por vídeo a Marie Claire.
E como o aborto impacta as vidas das mulheres? O Estudo Turnaway detectou que as que têm o aborto negado sentem mais ansiedade e baixa autoestima a curto prazo, mas que os padrões de saúde mental se igualam com o tempo, em relação às mulheres que o fizeram.
As mulheres denominadas “turnaway” – “a quem se deu as costas”, para identificar as que não abortaram por limite de tempo – também registram pior saúde física, maior risco de desenvolvimento de hipertensão, complicações pós-parto e maior tendência a dor crônica. Há ainda diferenças socioeconômicas, como mais dificuldade de sair de relacionamentos opressivos, menos aspiração de futuro e mais chances de ficar abaixo da linha da pobreza.
Capa de Gravidez indesejada, publicação do Estudo Turnaway de Diana Greene Foster, pela editora Sextante — Foto: Capa: Jaya Miceli/Divulgação
O Estudo Turnaway ainda respondeu o motivo pelos quais alguém escolhe voluntariamente por um aborto. Os principais são despreparo financeiro (40%), não ser o momento certo (35%) e problemas com o atual parceiro (31%). Mais de 60% das mulheres que integraram o estudo já são mães, e optaram por terminar uma nova gestação para conseguir cuidar de seus filhos já existentes.
Nem todos esses casos envolvem uma gravidez necessariamente indesejada, mas as mulheres se preocupam sobre se a situação no momento em que engravidam é ideal ou segura – seja para ela ou para um filho. Não é incomum que, futuramente, muitas decidam se tornar mãe anos depois de fazer um aborto. Foster diz que essas razões já desmantelam um dos mitos mais disseminados: de que mulheres, meninas e pessoas que gestam não sabem o que querem.
"O que encontramos é que todos os motivos pelos quais estavam preocupadas apareceram nos resultados entre as pessoas que tiveram o aborto negado. Então, o sentimento de alívio vem de saber que esses potenciais cenários negativos existem e que não acabaram assim", explica.
Nesta entrevista, Foster fala das descobertas de seu estudo. Também demonstra interesse sobre o PL 1904/24, que busca equiparar o aborto legal após a 22ª semana ao crime de homicídio simples. "A lei deveria ser para pessoas que fazem algo sabendo que é errado, e isso não se aplica aqui", comenta a demógrafa. Leia a entrevista.
MARIE CLAIRE Por que julgou necessário estudar as implicações e as consequências de uma gravidez indesejada?
DIANA GREENE FOSTER Nos EUA, tivemos uma longa batalha ideológica sobre o assunto. As pessoas, sobretudo opositoras ao aborto, diziam se preocupar que mulheres seriam machucadas depois de abortar e que iriam desenvolver transtornos mentais. Por mais que fosse um argumento muito disseminado e usado para limitar o acesso das pessoas, não havia dados para apoiar isso. Mesmo assim, era esse argumento que baseava leis que dificultavam o acesso ao procedimento ou que instauravam políticas restritivas – como definir um tempo de espera depois da decisão ou a obrigatoriedade de ver um ultrassom. Precisávamos de boa ciência sobre esse assunto para que nossa política de saúde fosse baseada em ciência, não em religião ou ideologia política.
MC Como chegou aos resultados encontrados?
DGF O complicado sobre esse assunto é que ele é muito difícil de estudar. Você precisa de um bom grupo de comparação e seguir essas pessoas por um tempo, sem perguntar a elas sobre coisas do passado. Recrutamos pessoas que queriam fazer um aborto, das quais algumas que conseguiram e outras que não conseguiram, e as acompanhamos por cinco anos. O que vimos é que fazer um aborto não faz mal à saúde mental das mulheres, enquanto que as que não conseguiram abortar tiveram dano de saúde mental em curto prazo. Mas, a longo prazo, há grandes diferenças em termos de saúde física, bem-estar econômico e bem-estar das crianças.
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MC O estudo registrou que a emoção mais comum após o aborto é alívio para 90% das participantes. Como explica a forma como esse sentimento se sobressai?
DGF Quando recrutamos as pessoas para o estudo, perguntamos as razões pelas quais queriam abortar, e elas nos deram muitas razões. O que encontramos é que todos os motivos pelos quais estavam preocupadas apareceram nos resultados entre as pessoas que tiveram o aborto negado. Muitas pessoas dizem não ter dinheiro suficiente para sustentar uma criança, que o relacionamento com o homem envolvido na relação não é bom o suficiente e que precisam cuidar dos filhos que já têm. Todas essas razões são exatamente o que é impactado quando alguém não consegue fazer um aborto, em que essas mulheres não têm dinheiro suficiente, têm dificuldade em se desvencilhar de relacionamentos não saudáveis e não conseguem cuidar dos filhos. Então, o sentimento de alívio vem de saber que esses potenciais cenários negativos existem e que não acabaram assim.
MC O que essa firme tomada de decisão por parte das mulheres e suas razões mostra sobre o perfil de quem recorre ao aborto?
DGF Um dos mitos sobre o aborto é que as mulheres não sabem o que elas querem. Acho que uma vez que alguém decide algo firmemente, vai atrás. Separado do meu estudo, tenho colegas que pesquisaram o quanto de certeza tem uma pessoa sobre um aborto comparada a certeza de outras pessoas a passar por uma cirurgia no joelho ou na próstata. Há mais certeza associada ao aborto do que a qualquer um desses procedimentos mais comuns.
MC A mentalidade social sobre o aborto pode interferir em um sentimento de sofrimento?
DGF Mulheres que sentem que há chance de as pessoas que fazem parte de sua rede de cuidados a reprovarem podem se sentir piores sobre seus abortos do que as que não sentem nenhum estigma. Definitivamente é verdade que as pessoas são afetadas pelas atitudes de pessoas ao redor delas e, claramente, de suas próprias atitudes também. No entanto, mesmo quando alguém que faz parte de uma religião ou se opõe ao aborto sentem com frequência que o próprio aborto não é errado. Elas entendem que os princípios das pessoas antiaborto não se aplicam a elas, porque as razões delas são válidas e boas. No estudo, uma mulher religiosa que chamamos de Jessica disse: “Deus criou os médicos e os deixou descobrir como realizar um aborto. Há uma razão para isso, e era para pessoas em situações como a minha”. Essa lógica faz sentido se ela estiver inserida na conversa for sobre o quanto mulheres são irresponsáveis porque fizeram um aborto. Mas ela sabe que é responsável e que cuidadosamente tomou essa decisão. Logo, sente que não é igual as outras pessoas. Nisso, podem não perceber que todas as mulheres também sentem que seus abortos são justificáveis.
MC O Estudo Turnaway detecta que há mulheres com tendências a depressão, suicídio ou ao transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), mas que as razões não estão interligadas à gestação ou a ter ou não um aborto. Então o que explica o sofrimento psíquico tão grande em mulheres?
DGF Os fatores que preveem se alguém tem um problema de saúde mental são um histórico de problemas mentais, adversidades na infância e abuso. Muitas dessas pessoas têm histórico de infâncias muito difíceis ou de eventos violentos e traumáticos em suas vidas. Essas têm muito mais chances de desenvolver um problema de saúde mental do que ter uma gravidez indesejada ou decidir por um aborto. Em nosso ensaio sobre TEPT, ouvimos histórias como a de uma mulher que foi sequestrada e mantida em um porão por três dias. Outra viu o parceiro se suicidar na frente dela e de seus filhos. São eventos que causam danos de saúde mental muito grandes. Uma gravidez indesejada é, na verdade, super comum, e as pessoas são resilientes ao viver essa experiência, especialmente quando podem resolvê-la.
MC Na introdução do livro, analisa que houve uma mudança no debate político nos EUA, que substituiu a retórica sobre a vida de um feto para a preocupação com a saúde das mulheres. Qual dessas narrativas é mais complicada?
DGF Essa questão está fora da minha área, estou muito mais focada na ciência. Mas posso te dar minha impressão pessoal. Acho que nós desmascaramos completamente o argumento de que o aborto machuca mulheres. Não há evidências disso. Então, este argumento me parece fraco, e se baseia na desconfiança na tomada de decisões das pessoas. A questão sobre quando uma vida começa é complicada, e não me parece ser uma discussão pública. É algo pelo qual todo mundo tem que ter sua própria visão religiosa e baseada na moral. Sei que você e eu viemos de diferentes países, mas teoricamente, nós não deveríamos ter um Estado religioso. Então, não deveria ser uma visão imposta.
MC O estudo detecta que poucas mulheres que precisaram levar a gestação adiante colocaram a criança para adoção, e que as que assim fizeram foram as que tiveram mais abalos emocionais. Por quê?
DGF Mais pessoas consideram a adoção do que de fato decidem colocá-la em prática. A prática em si é como um sacrifício. O que ouvimos foi que depois de passarem por toda experiência de ficar grávida todos os nove meses e dar à luz, todo mundo agora sabe que elas estavam grávidas. Então, há um aspecto social que vem disso, porque é difícil estar grávida e não ter uma criança. E, depois que nascem, a maioria das pessoas não quer que um filho seu fique por aí no mundo, sem que estejam cuidando dele. Quando se coloca uma criança para adoração, se opta por não ter os direitos sobre ela, e é uma coisa incrivelmente assustadora de se fazer.
MC No Brasil, há um projeto de lei que quer equiparar o aborto acima de 22 semanas a homicídio [PL 1904/24]. Como enxerga essa comparação?
DGF Não faz sentido punir alguém porque fez aborto quando a gravidez está avançada. Do ponto de vista científico, as pessoas que descobrem tarde que estão grávidas são jovens e também usam métodos contraceptivos. Se você usa um, acha que não pode engravidar porque está tomando a pílula ou usando camisinha, mas métodos contraceptivos não são perfeitos. Então, pode acontecer. Também pode acontecer com uma pessoa que foi estuprada e é muito nova. Não é como se alguém intencionalmente tivesse feito algo errado, é que elas não conseguiram perceber a gravidez antes. A lei deveria ser para pessoas que fazem algo sabendo que é errado, e isso não se aplica aqui. Além disso, o argumento de que um feto tem o mesmo peso moral ou legal do que uma pessoa viva me parece problemática. O feto não vive de forma independente. Na verdade, só está vivendo porque está dentro de outra pessoa. Não me parece moralmente equivalente.
MC Qual tem sido a tendência mundial quanto a legislação do aborto?
DGF Definitivamente em direção à legalização, não à criminalização. O Brasil periga viver um retrocesso, e os EUA estão retrocedendo. Mas a maior parte do mundo, na verdade, está melhorando em termos de acesso ao aborto.
MC Quais impactos espera que o Estudo Turnaway alcance?
DGF Quero que o estudo torne a discussão sobre aborto não abstrata e política, mas que as pessoas foquem nas pessoas reais cujas vidas estão envolvidas. Se um legislador quiser saber como a saúde e a vida financeira das mulheres será afetada, agora há estatísticas. Também quero apresentar histórias de pessoas para que saibamos que essa é uma experiência vivida por muita gente, e está presente em todas as famílias. Espero que essa não seja mais uma conversa cercada por raiva, mas que as pessoas tenham empatia e entendam as consequências, experiências e circunstâncias o suficiente para entenderem que banir o aborto não o impede de acontecer. E por quê? Porque as pessoas estão vivendo suas vidas com muitas obrigações, responsabilidade e esperança para si mesmas. A criminalização não tira a determinação e desespero das pessoas. É verdade que o banimento às vezes previne pessoas de abortarem, mas se houver qualquer forma de contornar essa lei, as pessoas encontrarão.