Dizem que o coração tem razões que a própria razão desconhece. Tanta alegria e esperança que encheu os nossos corações nestes últimos dias, entretanto, tem toda a razão de ser. Segundo o sociólogo Francisco Oliveira, a vitória de Lula é uma espécie de refundação do Brasil, só comparável a outros três momentos históricos: a Abolição, a Proclamação da República e a Revolução de 30*.

Esta eleição fala de uma nova concepção de mundo e idéia de justiça que se consolidou entre uma parcela muito significativa da sociedade brasileira, revelando o grau da mudança de mentalidades e de valores operada no país.

O primeiro turno já havia concretizado mudanças substantivas no cenário político. Seja nas eleições para as Câmaras Federal e Estaduais, ou para os cargos majoritários (Senado e Governos), uma parcela significativa do eleitorado fez o que pôde e mudou a correlação de forças político-partidárias, atenuando também o desequilíbrio de gênero no Poder Legislativo.

Ao conformismo, que marcou de maneira tão forte os últimos quatro anos da política nacional, contrapôs-se a força da indignação, expressa na surpreendente votação obtida pela oposição em 6 de outubro, e na vitória de Lula no segundo turno. Foi, portanto, a vontade de uma parcela da sociedade brasileira - a qual pertencem os movimentos feministas e de mulheres - de transformar a ordem injusta que está estabelecida que produziu estes resultados eleitorais.

A vontade política e a capacidade destes movimentos de se posicionar e se responsabilizar pelas transformações políticas e sociais almejadas manifestou-se muito antes das urnas estarem abertas. O processo recente de construção da Plataforma Política Feminista e de realização da Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras, assumido em caráter de prioridade por um amplo segmento dos movimentos de mulheres e feministas, expressa esta responsabilidade.

Se as mudanças são evidentes, é bom não perder de vista as permanências. Estamos falando do Brasil patrimonialista, oligárquico, racista, sexista que insiste em sobreviver e é maior e mais forte do que muita gente quer acreditar. Permanece a estrutura social consolidada para ampliar privilégios e concentrar riquezas num pequeno grupo, a custa da discriminação e exclusão da maioria.

No último dia 27 de outubro, as cidadãs e cidadãos brasileiros produziram um fato histórico e inédito, que certamente terá repercussões profundas para o povo brasileiro e também para toda a América Latina.

Ao reconhecermos as transformações que advém da vontade popular soberana, revelada pelas urnas, temos também de constatar o tamanho do desafio que representa a inversão da lógica que estrutura social e politicamente a nossa sociedade. Especialmente, quando consideramos os limites econômicos ditados por uma situação de absoluta vulnerabilidade do país; e ao levarmos em conta a ainda reduzida base político-partidária para a realização das reformas necessárias.

O futuro vai nos exigir mais do que alterar a composição político-partidária no Estado; bem mais do que eleger um programa político e rejeitar outro. Exige-se dos movimentos sociais a necessária preservação da sua autonomia frente ao novo governo para, como diz Francisco de Oliveira, pôr o acento na igualdade, retirar todas as discriminações e introduzir as classes populares nas instituições republicanas mais importantes.

É hora de reconhecer os limites para poder enfrentá-los, é hora de trabalhar para a mobilização da sociedade; de fortalecer a sua capacidade de mudar e transformar a realidade rumo à democracia, à justiça e à igualdade; de alimentar o sentimento de poder que emana do exercício ativo da cidadania.

(*) Entrevista de Francisco Oliveira aos repórteres Sílvia Colombo e Rafael Cariello, da Folha de São Paulo, publicada na edição de 29 de outubro de 2002, Caderno Especial - Eleições 2002, página 12, sob o título "Lula é a refundação do Brasil, diz sociólogo".


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