Ana Paula Portella
Coordenadora de pesquisas do SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia

O movimento de mulheres encontra-se em uma espécie de "ponto de virada" com relação à violência. Nos últimos trinta anos produzimos conhecimento, mudamos a legislação, instituímos a violência como um problema político da democracia, garantimos a implantação de políticas públicas, ajudamos milhares de mulheres a construírem uma nova vida. Mas quais são os resultados concretos de nossa ação? A violência contra as mulheres tem diminuído? As mulheres são mais respeitadas hoje do que no passado? As políticas públicas funcionam porque são as únicas saídas para quem quer escapar da morte ou, de fato, são políticas adequadas e de qualidade? O que a violência contra as mulheres tem a ver com o crescimento da violência associada ao crime organizado?

No Brasil, o movimento de mulheres começa a tratar e enfrentar a questão da violência na década de 70, a partir das mobilizações pela punição de assassinos de mulheres, que foram seguidas por ação política na rua, nos tribunais e na imprensa. Além disso, o movimento de mulheres elaborou propostas de enfrentamento da violência tanto no plano da sociedade quanto no plano do Estado, sendo o primeiro movimento social brasileiro a elaborar e conseguir implementar uma proposta de política de segurança pública democrática e cidadã voltada para uma população específica. Esta política consistiu na implantação das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher-DEAMs, articuladas a Centros de Referência para o atendimento multiprofissional às mulheres vítimas de violência e a Casas Abrigo para aquelas em risco de vida. No plano da sociedade, multiplicaram-se as ações de assistência oferecidas diretamente por grupos e ONGs de mulheres e instituiu-se um campo de investigação e reflexão teórica que vem produzindo um vasto conjunto de estudos e pesquisas sobre a experiência das mulheres vítimas de violência e os contextos nos quais esta violência acontece.

Estas ações estavam informadas por duas idéias: a) a violência seria um produto e, ao mesmo tempo, um elemento estruturador da subordinação das mulheres, dependendo fortemente, para a sua perpetuação, desta mesma subordinação, na qual as mulheres perdem a sua condição de sujeito; b) a condição primordial para se lidar com a situação violenta seria a recuperação da autonomia das mulheres - ou o seu "empoderamento" - para que elas mesmas fossem capazes de sair da situação. As ações do Estado e da sociedade teriam, portanto, que deslegitimar a violência contra as mulheres, tornando-a um problema público de justiça e cidadania que diz respeito a toda a sociedade e faz parte do conjunto das preocupações de governo e teriam que proteger as mulheres vítimas de violência, oferecendo-lhes apoio direto e construindo suportes institucionais para que elas possam sair da situação violenta.

Ao longo destas duas últimas décadas, porém, teve menor importância a elaboração mais refinada e a ação direcionada aos fatores culturais construtores da violência como a crítica à família e ao amor romântico, a defesa da liberdade como par indissociável da igualdade e a crítica à positivação do ciúme, da idéia de posse nos relacionamentos amorosos, aos processos contemporâneos de objetificação das mulheres e os fenômenos de (hiper)sexualização da cultura e da hipervalorização do corpo. A ênfase na assistência e no trabalho educativo deixou pouco espaço para o tratamento dos fatores estruturantes da autonomia das mulheres, sendo poucas as ações eficazes nas áreas de profissionalização e geração de emprego e renda para mulheres em situação de violência, assim como na oferta de equipamentos sociais e na formação de redes institucionalizadas de solidariedade.

No movimento de mulheres, proliferam as ações educativas e assistenciais de grupos e ONGs de mulheres atuando em comunidades pobres por todo o País, sem qualquer tipo de articulação mais sólida entre os grupos ou qualquer debate sistemático em torno das concepções e métodos das ações educativas ou assistenciais. Muito maiores são as dificuldades de diálogo com outros movimentos sociais. Até meados da década de 90, o tema da violência contra as mulheres não ultrapassou as fronteiras de nossa própria ação, mesmo quando cresciam os movimentos de direitos humanos e instalava-se o debate em torno de políticas democráticas de segurança pública. No momento atual, o quadro é quase desolador, com a política das DEAMs, Centros de Referência e Casas Abrigo apresentando graves problemas. A baixa cobertura dos serviços não nos permite falar em uma política implantada nacionalmente e o funcionamento dos serviços é ainda precário e de baixíssima qualidade. No movimento de mulheres, não fosse pelas mobilizações do 25 de novembro e pela ação decisiva de algumas ONGs feministas de projeção nacional, cor-ríamos o risco de fragmentação total.

Porém, é possível dizer que há um contexto favorável para tratar do problema mais geral da violência, que se torna tema central da agenda de governos e sociedade civil planetária, "redescoberto" a partir das questões das guerras e conflitos, do terrorismo e dos fundamentalismos e do problema cada vez mais global das ações do crime organizado. Uma decorrência disso é a ampliação das linhas de financiamento internacional para a realização de ações na área de violência. No Brasil, o Governo Federal tem a violência contra as mulheres como uma das prioridades de vários Ministérios e Secretarias e, pela primeira vez em nossa história, um plano nacional de segurança pública conta com um capítulo específico a respeito das políticas de segurança para as mulheres, o que indica não apenas a eleição da prioridade como também a mudança de perspectiva política, na medida em que revela uma nova compreensão da área de segurança pública, na qual as questões de gênero, raça e orientação sexual deixam de ser periféricas ou "específicas" e tornam-se parte do núcleo do problema da violência.

Para finalizar, aponto muito sucintamente algumas características recentes do fenômeno da violência contra as mulheres que demandam um maior esforço de análise e compreensão para a intervenção política:

  1. os homicídios de mulheres, que aumentam e atingem principalmente mulheres negras, pobres e jovens;
  2. as características de crimes de ódio presentes nos homicídios de mulheres;
  3. a sinergia perversa entre a valorização e legitimação do uso da força e das armas em comunidades pobres e a decorrente valorização das demais hierarquias sociais que favorecem e legitimam o uso da violência nas relações entre homens e mulheres;
  4. o envolvimento das mulheres com o crime organizado;
  5. a violência nas relações lésbicas; e
  6. a associação da violência contra as mulheres com as questões estruturais ligadas às outras formas de violência.

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