Quase lá: Caça às bruxas: o retorno ao obscurantismo jurídico

Carmen Hein de Campos
Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pela Universidade de Toronto (Programa Direito à Saúde Sexual e Reprodutiva)

A Igreja Católica foi responsável por um dos períodos mais obscurantistas da história da humanidade. A Inquisição, cuja caça às bruxas perseguiu as mulheres que conheciam o seu sistema reprodutivo e os cientistas, ambos desafiando os dogmas religiosos, retorna em nova roupagem. Se antes os "hereges" eram queimados em praça pública, hoje estão ameaçados com a persecução penal em massa, a proibição de pesquisas científicas e de utilização de medicamentos de urgência. Dois casos ilustram o retorno obscurantista, uma nova ameaça aos direitos reprodutivos das mulheres.

Em Campo Grande, após a polícia ter estourado a Clínica de Planejamento Familiar, que funcionava há mais de 20 anos, prender a médica-proprietária da Clínica e apreender cerca de 10 mil prontuários médicos, o Ministério Público decidiu ouvir cerca de 10 mil mulheres e ameaça indiciá-las pela prática de aborto. Não bastasse isso, suas fichas médicas ficaram expostas por cerca de três meses à curiosidade popular, por decisão do Juiz de Direito Aloísio Pereira dos Santos. A exposição desses prontuários foi uma atitude criminosa, uma violação aos direitos à confidencialidade, à privacidade e à intimidade das pacientes, constituindo razão suficiente para o afastamento imediato do juiz do caso. Um dos princípios que regem a relação médico-paciente é o da confidencialidade. As informações constantes em prontuários médicos pertencem, privativamente, ao paciente e ao seu médico. A suposta prática de crime não autoriza o Poder Judiciário a divulgar seu conteúdo, pois submete as pacientes à humilhação e constrangimentos, violando direitos fundamentais consagrados na Constituição.

Proibe-se o aborto em nome da proteção do nascituro. No entanto, dados indicam a prática anual de um milhão de abortos clandestinos no país, o que revela que o proibicionismo não impede o aborto e é uma das mais contraproducentes medidas para proteger o nascituro. Ao submeter as mulheres ao aborto inseguro e clandestino contribui para altos índices de mortalidade e morbidade maternas, demonstrando o fracasso dessa política criminal para salvaguardar a vida do nascituro. A proibição do aborto é inconstitucional pois nega o direito fundamental à saúde, que é mais que viver com saúde e implica no acesso à saúde, à informação, a todo tipo de medicação e ao progresso científico.

Ademais, o indiciamento de cinco, dez mil ou 1 milhão de mulheres demonstra o cabal fracasso da norma incriminadora e ilustra o uso político do sistema de justiça criminal pelo terrorismo da persecução penal. Tentar controlar a sexualidade e reprodução femininas pela proibição, em nenhum lugar do mundo, reduziu as taxas de aborto e só aumentou os custos sociais devido à repercussão médica pós-aborto, além de desmoralizar o direito penal. A deslegitimidade da proibição do aborto dá-se pela sua inobservância social - revogação tácita - demandando, pois, imediata revogação formal.

Em Jundiaí, a Lei 7.025/2008 que proibiu a distribuição de medicação de urgência, ou da pílula do dia seguinte, é flagrantemente inconstitucional, pois viola o direito à saúde das mulheres, do acesso à medicação e de prevenir uma gravidez indesejada. A proibição busca impor a elas a gravidez, inclusive decorrente de violência sexual. Isso equivalente à tortura psicológica, como já decidiu o Comitê de Direitos Humanos da ONU.

O Conselho Federal de Medicina, em sua Resolução 1.811 de 14/12/2006, posicionou-se sobre a questão e autorizou a distribuição da pílula do dia seguinte, por considerá-la um direito das mulheres, prevenir a gravidez indesejada e não prejudicar a fecundação, caso ocorra.

Atrás de uma suposta defesa da saúde da mulher, esconde-se uma visão religiosa sobre a fecundação e um flagrante desrespeito aos direitos das mulheres. Proibir a distribuição de medicamento aprovado pelo Ministério da Saúde e recomendado por vários organismos internacionais como um método complementar para evitar a gravidez indesejada viola o direito à autonomia reprodutiva e interfe diretamente no projeto de vida das mulheres.

Perseguir criminalmente as mulheres pela prática do aborto ou proibir a distribuição de contraceptivo de urgência ameaçam o Estado Democrático de Direito ao violarem direitos fundamentais. É uma manifestação misógena do sistema legislativo e judiciário e uma prática obscurantista, que parecia ser apenas a memória de uma cruel história do passado.


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