Myllena Calasans
Advogada e assessora técnica do CFEMEA na área de direitos humanos e violência
Iáris Cortês
Advogada e diretora colegiada do CFEMEA
No próximo dia 10 de dezembro o mundo, pelo menos o ocidental, comemorará os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Proclamada pelas Nações Unidas (ONU) em 1948, esta Declaração constitui um marco para promoção e defesa dos direitos humanos em nossa sociedade e de esperança para formulação de um mundo mais justo após as duas guerras mundiais.
A data, assim como os 20 anos da Constituição Federal de 1988, é um momento para refletir sobre avanços, retrocessos e perspectivas dos direitos humanos das mulheres. Para começar, "direitos das mulheres" é ainda um conceito não concretizado plenamente, embora se reconheça os direitos das mulheres como direitos humanos e que mulheres e meninas tenham direito a uma vida sem violência.
No início dos anos noventa, a ONU incluiu na agenda dos direitos humanos a questão de gênero e incentivou países membros a organizarem suas pautas para o ciclo de conferências internacionais que promoveria. O CFEMEA, com a missão de contribuir para o fortalecimento do feminismo e da democracia, se juntou a dezenas de organizações feministas, participou de quase todas essas conferências, com papel de articulação política e divulgação das conferências sobre população (Cairo/1994), mulher (Beijing/1995), direitos humanos (Viena/1993) e contra o racismo (Durban/2001).
Em 1994, o Centro apoiou a campanha do CLADEM por uma Declaração Universal com Perspectiva de Gênero, apresentada à ONU durante o Cinqüentenário da Declaração em 1998. Para comemorar esta data promoveu, em parceria com outras organizações feministas, a campanha "Direitos das Mulheres", somando-se a "Campanha Mundial pelos Direitos Humanos das Mulheres". Ainda no plano internacional de direitos humanos, o Centro fez parte do grupo responsável pela elaboração do I Relatório do Governo Brasileiro ao Comitê de Monitoramento da Convenção pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW) e do Relatório da Sociedade Civil sobre o Cumprimento do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
Junto com o Fórum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos, o CFEMEA integra a comissão organizadora de todas as Conferências Nacionais de Direitos Humanos, tendo elaborado o relatório da IX CNDH em 2004. Participou também do processo de elaboração das duas edições do Programa Nacional de Direitos Humanos (1996 e 2001). A participação do Centro em todos esses eventos fomentou sua filiação a redes e articulações em direitos humanos: o FENDH, que ajudou a fundar; a Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais; o Observatório da Cidadania - Social Watch Brasil etc.
Nestes 20 anos de atuação, o CFEMEA compreende que logrou na aproximação com o movimento de direitos humanos, mas as feministas precisam lembrar com freqüência que "sem as mulheres os direitos não são humanos" ou que "os direitos das mulheres também são direitos humanos". Neste percurso é cada vez mais consensual o entendimento de que a violência contra as mulheres constitui uma violação de direitos humanos e que seu enfrentamento demanda leis e políticas específicas.
O mesmo não se verifica quanto à agenda dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos das mulheres, notadamente ao direito de interromper uma gravidez indesejada. Dois episódios ocorridos este ano são demonstrativos desta resistência: a investigação criminal (ou perseguição) de 10 mil mulheres em Mato Grosso do Sul pela prática de aborto e a votação na Câmara Federal contra o PL 1135/91, que descriminaliza o crime de aborto. Havia ativistas que apoiavam totalmente as feministas, existiam aqueles que apoiavam sob determinadas condições ou, ainda, quem dizia que o pleito pelo aborto legal não compõe a agenda de direitos humanos. Muitas entidades, como Plataforma DHESCA, FENDH e MNDH, assinaram o Manifesto pela Descriminalização e Legalização do Aborto. No entanto, esses exemplos são frutos de muita persistência das feministas e de alguns defensores de direitos humanos.
Seguimos para as comemorações dos 60 anos da Declaração, para a XI Conferência Nacional de Direitos Humanos e do início de mais uma década de vida para o CFEMEA em meio à soma de esforços para a implementação da Lei Maria da Penha; de um cenário de detrimento das políticas públicas em prol das regras de mercado; de questionamentos ao potencial de direitos humanos diante das conseqüências do atentado terrorista de 11 setembro de 2001; da timidez dos movimentos, se compararmos com o entusiasmo da década de 90; e de um cenário de criminalização dos movimentos sociais e de ameaça de direitos, em que resistir para não regredir é o lema. Seguimos desejosas de declarações como a do ministro brasileiro José Augusto Lindgren, na Conferência de Pequim, ao constar que o termo "direito" das mulheres são direitos humanos continuava entre colchetes: "Há entre nós algum louco que possa considerar que os direitos das mulheres não são direitos humanos?" (In Fêmea, setembro de 1995).