Hildete Pereira de Melo
Professora de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e diretora do Instituto dos Economistas do Rio de Janeiro (IERJ)

Parecia que o governo FHC tinha recuado e não faria mudanças com relação a aposentadoria diferenciada para as mulheres. Depois de ter sido derrotado pela mobilização das mulheres, em 1996, FHC acabou enviando ao Congresso Nacional, um projeto da reforma da Previdência Social que mantinha a diferença estabelecida pela Constituição de 1988 entre o tempo de serviço para a aposentadoria entre mulheres e homens. O argumento usado era que atualmente as mulheres são iguais aos homens, e portanto não deveriam ter o privilégio de se aposentar mais cedo. O que fez o governo mudar de opinião? É o ajuste draconiano do FMI? Provavelmente, os burocratas de plantão mais realistas que o rei alardeiam que as mulheres vivem mais que os homens e portanto não podem direitos previdenciários diferenciados. Assim, no último dia 17 de agosto com o envio de uma nova mensagem à Câmara dos Deputados encaminhando o Projeto de Lei nº 1527/99 que trata da contribuição previdenciária do contribuinte individual e dessa forma sem colocar o problema explicitado, as mulheres estão de novo ameaçadas de forma sorrateira de perder algumas vantagens com relação a licença maternidade, salário maternidade e a aposentadoria diferenciada. Parece que o admirável mundo novo está chegando, afinal nós mulheres avançamos nos últimos vinte cinco anos. Somos bem mais numerosas no mercado de trabalho, os rendimentos entre os sexos mostram uma tendência de convergência e uma nova mulher nasce. Nesse mundo, no entanto, não tem lugar para a maternidade e as mulheres precisam driblar muito para conciliar suas tarefas como trabalhadora e a função materna. E se antes todos tinham uma "santa mãezinha" que era preciso reverenciar, isso hoje, parece coisa do passado, afinal porque louvar a maternidade? As mulheres fizeram inúmeras conquistas e parece para os legisladores que a igualdade impera, é preciso tirar esses entulhos da legislação protecionista. Nada precisa ser protegido, o discurso neoliberal condena essas pieguices. A revolução das mulheres foi a mudança de maior impacto da segunda metade do século XX. Transformaram-se alguns costumes e a revolução propiciou um novo status para a cidadania das mulheres, mas no turbilhão dessas transformações, quão dura ainda é a vida das mulheres! Conseguimos invadir o espaço público e afirmar que o privado também é político, mas o interior das nossas casas e a família ainda não foram mudados, esses dois mundos se sobrepõem, é verdade que um novo modelo de família ainda não foi gestado: nem o feminismo tem a proposta. Assim, em nome do mercado e de conquistas ainda não definitivamente consolidadas - numa sociedade em que todas as tarefas da socialização das crianças, cuidar dos velhos e dos doentes são atribuições femininas - a legislação deve ser mudada, porque ser mãe é uma decisão individual, escolha. No fundo são esses os propósitos de um governo democrático. Os militares presos ao passado santificavam o papel materno, os democratas dessagralizaram a função rapidamente, mas as mulheres ainda fazem todas as tarefas.

Como começou a proteção à maternidade na legislação brasileira? Num ligeiro retrospecto esta legislação teve o seguinte desenvolvimento histórico. A legislação que regulamenta a aposentadoria no Brasil data de 1923 - Lei Eloy Chaves. Esta estabelecia que a aposentadoria ordinária seria completada após 30 anos de contribuição e a pessoa que tivesse 50 anos de idade. Não havia distinção entre os sexos e conjugava-se tempo de serviço com idade mínima. A Constituição de 1934 pela primeira vez reconheceu a igualdade entre mulheres e homens, mas não interferiu no estatuto previdenciário. A Constituição democrática de 1946 tampouco fez qualquer tratamento específico para a mulher. Naquele ano já estavam criadas todas as grandes caixas de aposentadorias e pensões que marcaram a regulamentação do mercado de trabalho brasileiro e consagraram o império da CLT. O artigo 157 desta Constituição definia que os trabalhadores teriam direito a "previdência mediante a contribuição da União, do empregador e do empregado, em favor da maternidade e contra as conseqüências da doença, da velhice, da invalidez e da morte". A questão da maternidade aparece no artigo constitucional como uma função social a ser protegida. E assim pensaram os legisladores, quando finalmente em 1960 regulamentaram a Lei Orgânica da Previdência Social (LOPS) e fizeram uma distinção de 5 anos na aposentadoria por velhice entre mulheres e homens. Consagraram assim o princípio de que somos iguais, porém diferentes e que o papel feminino condena as mulheres a uma sobrecarga de trabalho. Foi a primeira Constituição do regime militar, a de 1967, que generalizou a diferença. Esta determinou a aposentadoria integral para a mulher aos 30 anos de trabalho e definiu que os homens, também aos 30 anos, teriam uma aposentadoria proporcional com 80% do salário de benefício, à qual seriam agregados 3% do valor deste por cada ano adicional trabalhado, perfazendo 95% do valor do salário de benefício aos 35 anos de trabalho. Vejam bem, o paradoxo, com a Constituição de 1967 os homens perderam o direito à aposentadoria integral. O regime militar não ousou mexer com a situação feminina, mudou apenas a dos homens.

Assim, em 1988, ao escrever a mais democrática das Constituições Brasileiras, os deputados constituintes selaram a diferença de 5 anos entre os sexos feminino e masculino para fins de aposentadoria e expressaram suas preocupações com a maternidade via as licenças de maternidade e paternidade. Mas não só a maternidade explica essa diferença. A dupla jornada é uma realidade feminina. As mulheres que trabalham fora do lar permanecem com todos os encargos domésticos: comprar os mantimentos, fazer comida, limpeza, cuidado dos filhos, o popular tanque e fogão. Este trabalho extra que não é ainda compartilhado com os seus parceiros traduz-se num maior desgaste e envelhecimento precoce das mulheres, e foi a razão da bondade dos legisladores de 1960. Não argumentem que as mulheres ricas e da classe média driblam isto via a empregada doméstica; claro, melhoram um pouco a canseira mas não suprimem a responsabilidade. Indaguem das mulheres profissionais liberais quanto tempo dos seus dias é dedicado a esses afazeres? Para que as aposentadorias sejam igualadas é necessário que o trabalho doméstico seja realizado igualmente na sociedade. Sem esta condição, estará sendo feita uma tremenda discriminação e uma profunda injustiça.


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