Márcia Larangeira Jácome
Jornalista. Integrante da equipe técnica do SOS CORPO. Membro do Conselho Diretor da Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos.

No próximo dia 28 de maio, comemora-se o Dia Internacional de Luta pela Saúde das Mulheres. Nesta ocasião, milhares de organizações de mulheres em todo o mundo promovem eventos com o objetivo de dar visibilidade a esta luta cotidiana, comemorar os avanços obtidos e atualizar debates e reflexões sobre o que ainda há por fazer, em particular no que diz respeito à mortalidade materna. Assim, aproveitamos a ocasião para trazer à luz algumas questões.

Segundo dados publicados no Dossiê sobre Mortalidade Materna, da Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos (Rede Saúde) as mortes maternas correspondem a cerca de 6% dos óbitos de mulheres de 10 a 49 anos no Brasil (1999). Estima-se que o país apresente um coeficiente próximo de 110 mortes maternas por cada cem nascidos vivos (1997). Mas ainda que fossem apenas um ou dois óbitos, o fato continua a nos indignar, dado que o óbito materno é indicador da pouca importância que se confere à vida das mulheres e ao exercício de seus direitos reprodutivos, o que se reflete na falta de equipamentos sociais que as amparem em suas escolhas, na precariedade dos serviços, na baixa qualidade do atendimento médico e na forma como se constroem as relações de gênero no cotidiano do ambiente familiar.

As chamadas causas obstétricas são responsáveis por 89% das mortes maternas no país (SUS): em primeiro lugar devido às síndromes hipertensivas, seguindo-se as hemorragias, as complicações por aborto e as infecções puerperais – causas que poderiam ser evitadas com um pré-natal bem feito, uma atenção humanizada ao parto e aborto e o devido acompanhamento no pós-parto. Ou seja, a prevenção da morte materna deveria ser considerada uma pauta prioritária e responsabilidade institucional (de governos e dos serviços de saúde públicos e privados) bem como dos profissionais de saúde. Neste segundo aspecto, particularmente, traz ainda uma outra questão para o debate que se refere ao tipo da formação que esses/as profissionais têm recebido nas universidades. Segundo estudo das pesquisadoras Tanaka e Mitsuiki em 15 cidades brasileiras, divulgado pelo Dossiê da Rede Saúde: “[...] um aspecto importante para a redução da morte materna no Brasil está vinculado à necessidade urgente de as escolas médicas e de enfermagem reverem seus conteúdos de obstetrícia. Procedimentos básicos não estão sendo ensinados e os aspectos mais simples da obstetrícia muitas vezes não são diagnosticados”.

Dentre as causas mencionadas acima, o aborto merece um destaque, pois é exemplo do descaso para com as necessidades das mulheres relacionadas aos seus direitos reprodutivos, em particular no que diz respeito a como se lida hoje com a questão da gravidez indesejada. Embora o planejamento familiar seja um direito garantido na Constituição de 1988 e regulamentado por lei em 1997, poucas pessoas têm acesso a informações e métodos contraceptivos. Por outra parte, a criminalização do aborto obriga as mulheres a realizarem a interrupção da gravidez na clandestinidade, colocando em risco, principalmente, a vida e a saúde daquelas mulheres que não contam com recursos para realizar um aborto em condições seguras. A clandestinidade do aborto dificulta, igualmente, o dimensionamento do problema, pois gera a subnotificação dos abortamentos feitos fora do serviço de saúde e, em conseqüência, dos problemas de saúde e das mortes ocorridas aí.

Outros problemas merecem atenção e, para abordá-los, vou tomar como referência os dados sobre mortalidade materna no Recife. O município têm um coeficiente de mortalidade materna consideradoalto pelos padrões da Organização Mundial da Saúde: no período entre 1994 e 1998, apresentava uma razão de 78,46 mortes por 100 mil nascidos vivos e as causas dessas mortes seguindo o mesmo padrão de causas para o Brasil que apresentamos acima. O percentual de subregistro desses óbitos era de 30,56% - um exemplo da invisibilidade da morte materna como um problema a ser detectado e analisado e que demonstra a necessidade de se fazer uma avaliação dos problemas que interferem na qualidade da notificação do óbito materno no sistema de informações em saúde e buscar soluções para isso.

O maior percentual dessas mortes ocorreram em hospitais com maternidades (70,37%) e apenas 4% em residências. Chama a atenção o fato de que 26% já vinham de outro hospital. Isto é, nada mais, nada menos que o reflexo da peregrinação que as mulheres fazem na hora de parir. Estes fatos podem estar associados a diferentes problemas, como por exemplo, falta de leitos nos hospitais (ou antes a má administração dos leitos existentes), desarticulação entre os serviços que compõem a rede; falta de transporte adequado e demora na prestação do atendimento ao parto (que é uma emergência obstétrica) ou ao aborto; falta de disponibilidade de sangue que cubra a necessidade de eventuais transfusões.

Em 1998, 65,21% das mortes ocorreram durante o puerpério precoce, período em que há pouco retorno das mulheres ao serviço para o acompanhamento médico. Em pesquisa realizada pelo SOS Corpo dez anos antes – portanto em 1988 - onde se avaliava a qualidade da atenção à saúde da mulher na Região Metropolitana do Recife, médicos informavam ser “frequente a volta das mulheres às unidades por causa de infecções e pontos quebrados em função de relações sexuais violentas ou porque os maridos se recusam a tratar as DSTs”. Este fato alerta para a necessidade de se fazer uma investigação mais cuidadosa sobre os motivos que levam às mulheres a óbito em um período tão delicado, de absoluta fragilidade física e psicológica. Pois me parece que se fecha aí um ciclo de perversão e de violência de gênero sobre as mulheres que começa na vida privada (e que passa pela gravidez indesejada, o abandono do companheiro), se agrava com a desumanização do serviço de saúde e volta para o domicílio que, por princípio, deveria ser o lugar do bem-estar, do aconchego e da divisão de responsabilidades para o exercício dos direitos reprodutivos.

Conferindo rosto e história às estatísticas do Recife, a maioria dessas mulheres são jovens, donas de casa, estudantes e professoras. No que diz respeito ao estado civil, morrem mais mulheres solteiras – quase o dobro das mulheres casadas, o que indica serem mulheres chefes-de-famílias. Têm baixo acesso à educação e, vivendo em situação de pobreza, não contam com condições adequadas para criar seus filhos. Estes dados indicam que, muito provavelmente, são majoritariamente mulheres negras. Constatamos, assim, que a “idealização da maternidade como realização suprema das mulheres” não têm correspondência na prática: o que vemos é a negligência total e absoluta para com as mulheres que optaram por ter filhos e que acabam por assumir na solidão os encargos daí decorrentes. Reverter esse quadro é enfrentar um grande desafio – a começar por reconhecer que a morbi-mortalidade materna se constrói no cotidiano pelas precárias condições sócio-econômicas – que resulta na falta de acesso à educação, moradia, saneamento, trabalho – reforçada pelas relações de gênero e que, portanto, exige estratégias integradas do poder público na busca de soluções mais efetivas para o problema.


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