Maria Berenice Dias
Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
Não basta que os crimes perpetrados contra a liberdade sexual sejam chamados de delitos contra os costumes, como se o bem tutelado fosse a sociedade, e não a inviolabilidade corporal da mulher.
Da mesma forma, não mereceu maior atenção o fato de a Lei nº 9.099, de 26/9/95, ao criar os Juizados Especiais, ter condicionado o delito de lesão corporal leve e culposa à representação do ofendido. Com isso, omitiu-se o Estado de sua obrigação de agir, transmitindo à vítima a iniciativa de buscar a punição de seu agressor, segundo critério de mera conveniência. Ora, em se tratando de delitos domésticos, tal delegação praticamente inibe o desencadeamento da ação quando o agressor é marido ou companheiro da vítima.
De outro lado, quando existe algum vínculo entre a ofendida e seu agressor, sob a justificativa da necessidade de garantir a harmonia familiar, é alto o índice de absolvições, parecendo dispor de menor lesividade os ilícitos de âmbito doméstico, quase se podendo dizer que se tornaram crimes invisíveis.
Mas tudo isso não basta para evidenciar que a Justiça mantém um viés discriminatório e preconceituoso quando a vítima é uma mulher.
A Lei nº 8.072/90 elegeu determinados crimes qualificando-os como hediondos. Além de majorar as penas, impediu a progressão do regime de seu cumprimento, que obrigatoriamente deve ser o fechado, bem como restringiu a concessão de livramento condicional. Modo expresso, os incisos V e VII do art. 1º dessa Lei elencaram como hediondos tanto o estupro como o atentado violento ao pudor, quando cometidos mediante grave ameaça ou violência real, elevando a pena para seis a dez anos de reclusão. Na hipótese em que presumida a violência, ou seja, quando a vítima é menor de 14 anos, alienada ou débil mental ou por qualquer causa não pode oferecer resistência, a pena é acrescida da metade.
Logo após promulgada essa festejada Lei, passou a Justiça a atender às suas determinações, mesmo que hajam surgido questionamentos sobre sua constitucionalidade. Como o inciso XLVI do art. 5º da Carta Magna assegura a individualização da pena, parte da doutrina e alguns julgadores sustentam que o legislador não poderia impedir que o juiz considerasse a singularidade do fato concreto na aplicação da pena.
Mas ou a lei é constitucional e é de ser aplicada em todas as hipóteses expressamente elencadas ou se ressente de eficácia, não podendo ser invocada em qualquer caso.
No entanto, e de forma inusitada, o Supremo Tribunal Federal, em 08 de junho de 1999, decidiu que, para o atentado violento ao pudor se enquadrar como crimehediondo, é necessário que do fato resulte lesão corporal de natureza grave ou morte.
Essa decisão acabou granjeando seguidores, e recente decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, revisando a configuração do crime julgado antes da indigitada decisão, permitiu a progressão do regime da pena que já havia sido imposta.
Foi essa decisão que trouxe a público a surpreendente posição da Corte Suprema, que, apenas e casualmente nos delitos que afrontam a liberdade sexual, quais sejam o estupro e o atentado violento ao pudor, subtraiu sua característica de hediondez, cometendo verdadeiro estupro contra a Lei.