Quase lá: 70 anos do voto feminino: da conquista formal à transformação radical

Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras, nossa primeira grande mobilização no novo milênio, homenageia o movimento das sufragistas que, há 70 anos, assegurou às mulheres o direito ao voto, garantindo um elemento básico de cidadania à metade da população brasileira.

A homenagem, em tudo apropriada, traz consigo o reconhecimento de que não há direitos sem luta. Sabemos que a roda da história é pesada e que seus movimentos são determinados pela disputa entre forças políticas diferentes e conflitantes. Os movimentos de mulheres, orientados por uma perspectiva feminista, foram e são motores propulsores de transformações culturais profundas.

Sem dúvida, cada direito que conquistamos, ao longo desses 70 anos, foi antes criado e afirmado pelos próprios movimentos de mulheres, transformado em fortes demandas junto ao Estado, para só então serem consagrados na lei.

Da condição de pessoas relativamente capazes (como os doentes mentais) no Código Civil de 1916 à situação de cidadã plena de direitos; da negação do direito ao voto à sua conquista; da aceitação dos assassinatos de mulheres por seus maridos à rejeição das defesas baseadas na legítima defesa da honra masculina; do dever de ter filhos à busca do direito de decidir sobre quantos e quando tê-los; e da presença de apenas 25 mulheres na Assembléia Nacional Constituinte de 1988 à garantia da quota mínima de 30% para as candidaturas de mulheres houve muitas batalhas ganhas, das quais grande parte das mulheres, mas não somente elas, se beneficiam.

O CFEMEA, sendo uma ONG que atua no Congresso Nacional em estreita articulação com outras organizações de mulheres, tem claro que os melhores argumentos, do ponto de vista ético, jurídico, científico e político são muito importantes. Entretanto, tais argumentos são inócuos se não houver um sujeito político com força e expressão para lutar pelos direitos das mulheres e relações de gênero igualitárias, para superar as desigualdades e eliminar a pobreza.

Criado em 1989, num contexto de grande mobilização dos movimentos sociais e logo após a realização da Assembléia Nacional Constituinte, o trabalho realizado pelo CFEMEA sempre buscou contribuir para o fortalecimento dos movimentos de mulheres, tendo aí os alicerces para a defesa de vários direitos junto aos parlamentares.

Entretanto, há que se dizer, os benefícios de tantos direitos não foram distribuídos igualmente entre a população feminina. Os direitos assegurados aos trabalhadores e trabalhadoras em geral não foram os mesmos garantidos às trabalhadoras domésticas, categoria que compõe uma parte expressiva da mão- de-obra feminina empregada, constituída em sua grande maioria por mulheres negras.

Se voltarmos as nossas vistas para as ainda poucas mulheres que ocupam espaços de poder, veremos que quase nenhuma delas é negra ou de origem rural. No país que amarga os níveis mais indignos de desigualdade em todo o mundo, é só querer ver para enxergar o fosso que separa, em termos de poder político, econômico e social as trabalhadoras rurais das urbanas, as mulheres negras das brancas e, é evidente, as mulheres dos homens.

Se as conquistas foram distribuídas de forma desigual, os enormes prejuízos da reordenação neoliberal do Estado brasileiro também têm pesado desigualmente sobre a sociedade.

Foram-se os tempos em que contávamos, dia-a-dia, os avanços que experimentávamos. Nos últimos anos, temos investido grande parte das nossas forças para resistir ao desmonte da Lei Maior em favor das leis do mercado, à flexibilização das relações de trabalho para privilegiar o lucro, à redução dos gastos em políticas sociais para pagar a dívida. O desemprego, o sucateamento dos serviços públicos, as inúmeras responsabilidades sociais que pesam sobre as mulheres, em razão da irresponsabilidade do Estado na garantia do direito universal à saúde, a educação e à segurança pública são alguns dos muitos resultados, decorrentes da opção governamental pelas políticas de ajuste estrutural.

O momento eleitoral é especialmente fecundo ao debate sobre alternativas para o país. E é um bom sinal para toda a Nação que os movimentos de mulheres e feministas, alicerçados num compromisso radical com a democracia, tanto no que se refere à vida pública quanto à privada, tenham se mobilizado para imprimir suas propostas na agenda política nacional.

No processo que nos traz à Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras, mobilizou-se 26 estados na realização de conferências preparatórias. Buscou-se intensificar a discussão e aprofundar a capacidade crítica até re-significar conceitos basilares como o de democracia política, democracia na vida social, justiça social e liberdade sexual.

Afirmando a autonomia dos movimentos de mulheres, toda esta movimentação perseguiu o propósito de sair da "geléia geral" que, muitas vezes torna quase impossível decifrar o que se pretende e onde se quer chegar quando se fala em combate à pobreza, fim da violência, solidariedade, justiça, cidadania, democracia, igualdade. Da esquerda à direita, dos progressistas aos conservadores, do norte ao sul, muitas vezes a linguagem é a mesma. Tratou-se, portanto, de imprimir significados, a partir de uma ótica feminista, a estes conceitos a estes valores.

Não é uma missão simples realizar tudo isto em meio a uma campanha presidencial. Neste momento, projetos políticos antagônicos se confrontam, mas o que orienta o embate é a lógica da contabilidade dos votos mais do que os princípios políticos.

Talvez a maior ousadia deste processo e também sua grande riqueza tenha sido o de reunir uma tremenda diversidade de organizações de mulheres, produzindo um nível de radicalidade democrática coletiva qualitativamente superior ao que qualquer uma pudesse alcançar isoladamente. Congregou-se mulheres de diferentes segmentos dos movimentos sociais e o que elas produziram de pensamento e crítica, a partir de suas identidades ou áreas específicas de militância. A síntese disto tudo terá inúmeros resultados, o primeiro deles é a Plataforma Política Feminista.

O feminismo tem uma origem transgressora e faz jus às suas raízes. Não se engana, e nem se satisfaz com a "perspectiva de gênero dos neoliberais". Vai responder ao papel histórico que lhe cabe e contribuir significativamente para as transformações radicais almejadas.


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