Quase lá: A face obscura do Brasil

A face obscura do Brasil

Comentário sobre quatro filmes documentários.

 

Banksy, Trolleys (cor), 2007
 
 

Por JAQUELINA IMBRIZI*

Comentário sobre quatro filmes documentários.

“O regime fascista sempre pesa sobre a língua e a própria linguagem, como pesa originalmente sobre o psiquismo disponível ao passado do fascista. Ele completa e torna densa a relação de cisão e de poder existente entre a linguagem e a realidade social. Fixada por violência e pelas balas e bombas do poder, no fascismo a ideologia tende a se tornar o real, fazendo efeito mesmo como outra coisa do sonho, dando à linguagem a concretude da pedra, a que se atira sobre o inimigo e a que esmaga e paralisa a possibilidade de circulação da diferença” (Tales Ab’Sáber, Michel Temer e o fascismo comum, p. 155).

Quatro documentários que retratam a face mais obscura do Brasil foram realizados por duas diretoras, Petra Costa (2019) e Maria Augusta Ramos (2018; 2022), e três diretores, Tales Ab’Sáber, Rubens Rewald e Gustavo Aranda (2016).

O documentário Democracia em vertigem acompanha os acontecimentos que desembocaram no impeachment de Dilma Rousseff; é composto por algumas imagens cedidas e protagonizadas pela então presidenta do Brasil. Petra Costa (2019) vai costurando as cenas em consonância com suas experiências diante do golpe parlamentar em 2016, que se transformou em nosso trauma coletivo e político. É com sua voz em off e incluindo algumas imagens próprias de momentos históricos diversos, e na companhia de seus familiares e amigos, que Petra Costa rememora a sua e a nossa história, produzindo uma contranarrativa decorrente de seu posicionamento político mais próximo aos ideais de esquerda e em defesa da democracia.

Haja vertigem para acompanhar a narrativa elaborada pela diretora! Ao mesmo tempo, quem sabe, ela pode produzir no espectador e na espectadora acalanto por conta de certa costura de sentidos entre as catástrofes que esgarçaram os laços sociais de uma nação. É um prodígio da diretora por sua rapidez em realizar um filme que acompanhou detalhes do nosso contexto sociopolítico que desembocaram na ascensão da extrema direita, um ano após a chegada do representante conservador ao poder.

Maria Augusta Ramos (2018) também apresenta a sua visão do golpe parlamentar em O processo, utilizando imagens cedidas pelos protagonistas, a então presidenta Dilma Rousseff, e as funções de defesa protagonizadas pelos representantes do PT, Gleisi Hoffmann, presidenta do partido, e o Ministro da Justiça à época, José Eduardo Cardozo, entre outras pessoas. Em seu documentário mais recente, O amigo secreto (Ramos, 2022), ela retrata os bastidores da Operação Lava Jato, mais especificamente a encenação daquilo que foi denominado “Operação Vaza Jato”, ou seja, o vazamento de informações que explicitou as falcatruas perpetradas para impedir a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República em 2018, condensadas na figura do então juiz Sérgio Moro.

A diretora destaca os atores sérios do jornalismo, vinculados às plataformas El País e Intercept, transformados em protagonistas do documentário cujo material é a labuta para desmascarar o juiz parcial. Há cenas gravadas pela diretora no ambiente de trabalho do grupo de jornalistas, e em algumas delas a equipe sabe que está sendo filmada na sua lide cotidiana: a escolha do tema da matéria, a checagem das fontes e com elas, as reuniões de equipe. Há também a organização de imagens produzidas por outros veículos de comunicação. É evidente a tendência colocada por Ramos de valorizar o trabalho de um tipo de jornalismo e de jornalistas que ainda estão interessados nos fatos e sua contextualização histórica.

São profissionais que não descansaram enquanto não desmascararam os protagonistas de uma falcatrua que envolvia os jogos de poder que impediram a candidatura de Lula, a despeito das ameaças às suas vidas que já se anunciava, naquele contexto sociopolítico. O documentário pode ser visto como uma homenagem ao jornalismo sério que, por meio do trabalho de profissionais críticos que, ao não se isentarem diante do desafio inolvidável, desmentiram a narrativa dos representantes políticos conservadores brasileiros.

Recentemente a colunista Milly Lacombe (2022) fez um chamado aos jornalistas e donos dos órgãos de imprensa para que se posicionassem criticamente diante dos fatos e considerassem suas implicações subjetivas ao contar a história de corrupção no Brasil, transformada em mentira quando é imputada somente ao Partido dos Trabalhadores. É uma inverdade que alimenta o ódio e os binarismos – respondendo a interesses ideológicos e financeiros – que impedem o caminho para a responsabilização do atual presidente do Brasil, ele sim capaz de criar um orçamento secreto a vigorar nos próximos cem anos. O título do seu texto é direto: “Mídia deve assumir seu papel na naturalização da extrema direita no Brasil”.

Maria Ramos (2022), nessa produção audiovisual, organiza a sequência de imagens de modo que essa ordenação fale por si só, sem nenhuma voz em off preparando o espectador para o que se desenrolará no documentário, ao mesmo tempo em que não é oferecida a leitura de imagens ao belo estilo de Petra Costa. Ao contrário, quem assiste precisa se esforçar para fazer a síntese que melhor lhe aprouver.

A primeira cena do filme mostra Lula sendo arguido por um Sérgio Moro titubeante que é explicitamente questionado pelo advogado de defesa do ex-presidente para que mudasse as perguntas, pois os questionamentos repetidos incessantemente já haviam sido devidamente respondidos pelo acusado, pressupondo que o arguidor tivesse se preparado para a acareação e avançasse na sua tarefa. Desse modo, a diretora foi perspicaz ao recolher a sequência de imagens na qual a inabilidade do juiz é exposta ao vivo e em cores para dar início à profusão de cenas que vêm em seguida no sentido de desmascarar aquele que foi transformado em super-herói nacional, a despeito de sua falta de caráter e sua adesão à lógica do não pensamento.

Esse estilo da realizadora também está presente no documentário Intervenção – amor não quer dizer grande coisa (Ab’Sáber, Rewald, Aranda, 2016), no qual nada é dito para preparar o espectador para o que virá e as imagens já começam em profusão, destacando, em sua maioria, representantes do sexo masculino em seus cinco minutos de fama, que vão proferindo ódios e xingamentos ao Partido dos Trabalhadores, às mulheres, chamadas ostensivamente de vagabundas por um dos protagonistas, ao Lula e a qualquer pensamento inteligente na face da Terra.

Esse documentário, ao contrário dos de Costa (2019) e Ramos (2018; 2022), não tem imagens gravadas pelos diretores e se refere à coleta e organização de material retirado das redes sociais: lives, Facebook, fóruns de discussão disponibilizados em diferentes plataformas ocupadas pelos próprios sujeitos ali em destaque. Os protagonistas escolhidos para estrear o documentário são as pessoas comuns – “o homem conservador médio” – e os falsos filósofos que gravam suas falas acompanhadas de expressões faciais de ódio, disponibilizando-as nas redes sociais em direção a um público específico e sedento por esse modo de veicular a política da inimizade.

São homens que fazem de sua própria miséria um espetáculo para si mesmos, e podemos inferir que a maioria são ex-militares. Também cabe destacar as cenas nas quais são captados os movimentos automatizados que respondem a músicas de baixa qualidade, em ambiente religioso, misturados com o nome de algum deus e, assim, representam a militarização da religião. Trata-se de uma imitação mal-acabada de uma estetização da política. Veremos essa tendência amadurecida, nos quatro anos que se seguiram, com a vitória do candidato de extrema direita, em 2018, sustentada por um discurso que articula o nome de deus à convocatória para o assassinato de pessoas, juntamente com a defesa do armamento da população: uma política da guerra associada à militarização da religião!

Walter Benjamin, em seu já clássico A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica, escrito entre 1935-36, nos oferece reflexões sobre o cinema. É uma análise que nós, amantes da sétima arte, não cansamos de revisitar e na qual encontramos cada vez mais figuras e ideias enigmáticas para pensar as produções audiovisuais contemporâneas, especificamente no formato documentário. Walter Benjamin, como já é sabido, discute as modificações na percepção das pessoas após o advento da reprodutibilidade técnica da obra de arte, principalmente no que se refere às suas consequências para a regressão psíquica dos receptores dos produtos dessas novas técnicas de multiplicar imagens fotográficas combinadas com o som.

Há um deslocamento da percepção tátil dos frequentadores dos museus para uma percepção dispersa que modifica a relação da massa com a arte, desencadeando certa reestruturação do sistema perceptivo. Onde a coletividade procura a dispersão, ela pode se transformar em retrógrada ou progressista. Assim, “retrógrada diante de Picasso, ela se torna progressista diante de Chaplin”. Essa afirmação de Benjamin (2012a, p.209) ressoa na contemporaneidade – com a reprodução vertiginosa dos memes, TikToks e reels – e a dispersão talvez produza uma oscilação na massa, ora retrógrada, ora progressista.

Pior do que essa oscilação é a junção da narrativa progressista com a conservadora, como em um “tudo ao mesmo tempo agora”, resultado de certa cisão entre a linguagem e a realidade social, conforme destacamos na epígrafe que abre este texto e também está presente no livro de Herbert Marcuse (1973): a falta de distinção entre conteúdos tão díspares e politicamente antagônicos sendo convertidos em massa homogênea edificadora do não pensamento.

Em relação à recepção das produções audiovisuais citadas, os diretores e as diretoras não visam entreter o espectador e provocar a percepção dispersa, mas causar o mal-estar e o contato com uma realidade brasileira que parcela da população continua a negar até o fim. Podemos dizer que são realizadores que tornam acessível uma apresentação da realidade para que possamos melhor elaborá-la, convidando à reflexão do que se passa ao nosso redor, como se o objetivo fosse despertar o nosso vértice progressista para enfrentar uma regressão da consciência de grande parte da população em direção ao ethos conservador e patriarcal que retoma sua força como valores culturais petrificados em terras brasileiras.

Assim, é possível aproximar o cinema da produção onírica no que se refere à função específica do sonho de despertar o sonhante para o contexto histórico e suas potencialidades de transformação e revolução, conforme as reflexões de Walter Benjamin: “Cada época, com efeito, não sonha somente com a próxima, mas busca, ao contrário, em seu sonho sair do seu sono” (apud AB’SÁBER, 2005, p.102-3; AB’SÁBER, 2020a). Outra função do sonho está relacionada ao trabalho de elaboração psíquica dos acontecimentos traumáticos e catastróficos, como nos alerta Sándor Ferenczi (2011).

O que temos percebido é que a resistência ao fascismo pode estar sendo encenada em produções oníricas das pessoas que aderem aos ideais progressistas, cujos heróis, ao não se identificarem com a naturalização da convivência belicosa, transmitem o incômodo figurado por meio de processos de não identificação com representantes políticos que negam a possibilidade de barrar o caminho irreversível da humanidade em direção à barbárie, como nas narrativas oníricas coletadas por Beradt (2017) e por nossos grupos de pesquisa e extensão (IMBRIZI, 2020; IMBRIZI et al. 2021; SILVA et al., 2021).

Para Walter Benjamin (2012a, p.204), o cinema, por meio do que ele denomina inconsciente óptico, pode produzir um sonho coletivo, ao propor cortes e sequências de imagens que independem do desejo de telespectadores. Nas palavras do filósofo, “[…] os procedimentos da câmara correspondem aos procedimentos graças aos quais a percepção coletiva do público se apropria dos modos de percepção individual do psicótico ou do sonhador”.

Nesse caso, o espectador se deixa conduzir pela sequência de imagens como em um sonho sendo produzido por outro que não ele. O jogo de cena, os cortes e o encadeamento sequencial das imagens operam como o mecanismo de figurabilidade onírica; no caso, são sequências imagéticas conduzidas por montadores e diretores. A figurabilidade é um mecanismo próprio do trabalho do sonho (Freud, 1900/2019), diz respeito à transformação de pensamentos abstratos em imagens e está relacionada ao modo como as cenas do sonho são montadas pelos sonhantes: de que perspectiva fala o protagonista, qual o conteúdo transmitido de acordo com certa inversão de afetos e transvalorização de valores, quais os gestos que acompanham os temas mostrados, quais as cores, tessituras e afetos evocados?

Elaboração de acontecimentos traumáticos e estranhamento, horror e não identificação com os heróis oníricos para algumas pessoas ou não sonho, não pensamento e identificação com referenciais viris e vértices conservadores para outras parecem ser os impactos subjetivos nas pessoas que acompanham o desenrolar das narrativas construídas nas produções audiovisuais apresentadas neste texto.

“Estética da guerra” é o último item do ensaio de Walter Benjamin (2012a, p.210) que nos convida a refletir sobre a forma de enfrentamento de certa estetização da política – localizada na figura de Hitler e seus seguidores em ascensão naquele momento histórico – que produziria dispersão na percepção, regressão da consciência e retrocessos na luta pela manutenção de princípios que preservam a vida humana no planeta terra. Assim, a estetização da política “prepara” as pessoas para a guerra: “Todos os esforços para estetizar a política convergem para um ponto. Esse ponto é a guerra”. Para o filósofo, há uma resposta possível para tal tendência bélica nas manifestações artísticas e culturais, reflexo do modo de produção capitalista, que é a politização da arte.

Nas palavras do teórico: “Na época de Homero, a humanidade oferecia-se em espetáculo aos deuses olímpicos; agora, ela se transforma em espetáculo para si mesma. Sua autoalienação atingiu o ponto que lhe permite viver sua própria destruição como um prazer estético de primeira ordem. Eis a estetização da política, como a pratica o fascismo. O comunismo responde com a politização da arte” (BENJAMIN, 2012a, p.212).

Podemos afirmar que as quatro produções audiovisuais, a despeito da heterogeneidade dos recursos utilizados, representam um modo de exercitar certa politização da arte? Pensamos que sim. Mesmo que para atingir esse objetivo a política da arte signifique demonstrar aquilo que a maioria da população não quer ver, pois são documentários que nos colocam de modo incômodo frente a frente da estetização da política à moda brasileira, sem muitas delongas. Portanto, é o citado documentário Intervenção o que mais nos oferece elementos para refletir sobre a estética da guerra e seus impactos psíquicos nos produtores de conteúdo e nos receptores, sejam aquelas pessoas que aderem à lógica neofascista, sejam as pessoas que ainda resistem a ela. Os protagonistas do documentário transmitem em seus gestos, no tom de voz e no afeto carregado em suas falas um convite para o confronto com o inimigo imaginário e/ou real.

A estética da guerra no documentário Intervenção – amor não quer dizer grande coisa

Muito longe de uma forma de arte como entretenimento, os realizadores do documentário ousam mostrar e apresentar algo que nós não gostaríamos de ver e enxergar que está relacionado à ascensão das forças da extrema direita no Brasil. Ou seja, os documentaristas nos convidam para que nos defrontemos com o horror: o fato de que o fascismo ganha força quando fingimos, para nos proteger, que ele não existe, que sua sombra não paira entre e sobre nós como raiz estruturante do modo de produção e organização capitalista.

Cabe uma analogia bem presente nas conversas cotidianas em Minas Gerais: na terra desta autora, há um jeito específico de as pessoas comuns se referirem ao câncer – “àquela doença” – como se só o fato de pronunciar a palavra e denominar o problema de saúde pudesse contagiar quem fala e quem escuta, adquirindo conotações mágicas de algum tipo de maldição. Essa correspondência nos ajuda a pensar sobre o fato de que o documentário visa explicitar, sem pedir licenças ou desculpas às pessoas que a ele assistem, a maldição que se apossou do nosso triste Brasil, causando assim um incômodo por deixar muito transparente a estética da nossa guerra.

Incide sobre um sintoma comum da nossa cultura: nossa incapacidade de entrar em contato com o horror, pronunciá-lo e desnudá-lo – como na nota de Freud em O mal-estar na civilização, ao afirmar que os seres humanos em seu processo de socialização parecem se preparar para enfrentar o inverno com trajes de verão, ao negar os aspectos de agressividade e violência, como se homens e mulheres fossem bons por natureza. O documentário expõe a violência e a agressividade que nos circunda e que tentamos negar veementemente. Talvez seja essa negação que tenha nos deixado desavisados e desprotegidos a ponto de muitos de nós alegarmos surpresa diante da vitória do candidato da extrema direita nas eleições presidenciais brasileiras em 2018.

Há um caldo de cultura sendo produzido por muitos intelectuais que visam com seus conhecimentos produzir “intervenções” com vistas a barrar um conjunto de forças que sustenta a ascensão neofascista em território brasileiro. O psicanalista Tales Ab’Sáber, para além da produção do documentário junto com seus dois comparsas, tem engrossado esse caldo cultural, e por meio de suas pesquisas e trabalho intelectual tem articulado as contribuições de autores críticos, como Karl Marx, e os autores da primeira geração da chamada Escola de Frankfurt – Theodor Adorno, Herbert Marcuse e Walter Benjamin – com sua experiência na clínica psicanalítica expandida tendo por objetivo análises de conjuntura na contemporaneidade, levantando hipóteses sobre o funcionamento das defesas psíquicas de pessoas que aderem à estética da guerra.

Ab’Sáber tem acompanhado as proposições dos filósofos da teoria crítica da sociedade no que se referem às condições culturais, históricas, políticas e econômicas que favoreceram a emergência da lógica fascista na cultura brasileira, além de como se constituem os terrenos férteis, os climas culturais (em linguagem adorniana) que alimentam a racionalidade instrumental, justamente com os sujeitos prontos para aderir às ordens de seus líderes transformados em personificações de seus ideais.

Podemos citar temas já clássicos elencados por Theodor Adorno, como a afirmativa de que enquanto a sociedade estiver organizada tendo suas bases na exploração da força de trabalho, os princípios fascistas sempre estarão à espreita e serão solo fértil para a barbárie. A crítica radical vai à raiz do problema, no caso a crítica e a busca por alternativas ao modo de produção capitalista; à pseudocultura que pauta o ensino nas instituições educacionais que produzem pessoas prontas para dar opiniões descoladas do trabalho intelectual árduo, cuidadoso, moroso e amoroso necessário para um posicionamento político de envergadura. Essa discussão está presente nos textos Teoria da pseudocultura (2004) e Indústria Cultural – o esclarecimento como mistificação das massas (1985), este último escrito na companhia do filósofo Max Horkheimer.

Em palestra radiofônica na década de 1960, Adorno (1995) elenca as condições para uma educação após Auschwitz, um tipo de transmissão dos conhecimentos que coloque em questão os afetos de humanos, demasiadamente humanos. Ele cita diretamente os resultados das pesquisas sobre a personalidade autoritária (ADORNO, 2019) e textos sociais e culturais de Sigmund Freud como Mal-estar na civilização (1930) e Psicologia das massas e análise do Eu (1921), e assinala a urgência das transmissões de temas fundamentais presentes nesses escritos que deveriam ser debatidos nas instituições educativas e culturais para alcançar o grande objetivo de qualquer educação: que “Auschwitz nunca mais se repita”.

São temas que sustentam as condições que conduzem à ascensão do fascismo e que precisam ser enfrentados: a força dos coletivos no apagamento das singularidades; o amor cego aos líderes e às figuras consideradas celebridades; a edificação de um tipo de personalidade autoritária calcada na adoração à técnica e a tudo que possa ser instrumentalizado em nome do progresso, coisificando as relações entre pessoas; a sensibilização para o jogo de forças entre pulsão de vida e pulsão de morte; a urgência de enfrentarmos o mal e a violência que reproduzimos nos mínimos gestos com vistas a manter a engrenagem social em funcionamento; por último e não menos importante, o convite para o exercício de uma autorreflexão crítica. Ou seja, é o trabalho do pensamento crítico que pode impedir o trajeto irrefreável da humanidade em direção à barbárie e, para tanto, é necessário entrar em contato com a lógica fascista incrustada em nossa cultura e introjetada por nós, inculcando-se em nossos afetos mais recônditos e, muitas vezes, em nome do progresso técnico.

Trata-se de um paradoxo, pois até mesmo as pessoas mais esclarecidas têm dificuldades de encarar de frente o discurso fascista e os olhares vidrados das pessoas que aderem a essa lógica; aqui podemos nos referir ao mal-estar causado nas pessoas que conseguem assistir ao documentário até o fim. Ou seja, a produção audiovisual, sem nos convidar, e a despeito de nossas resistências, mostra no que foi transformado o “cidadão de bem brasileiro” e tantos seres humanos que por estarem imersos também neste caldo cultural tendem a se identificar inconscientemente com esse modo de ser e estar no mundo. Repulsa e sedução seriam o misto de sentimentos disparados nas pessoas que assistem ao documentário.

O documentário também é produto de um trabalho de pesquisa maior que visa analisar certa psicopolítica, investigar como os sujeitos aderem à lógica fascista, no caso um neofascismo à brasileira que cresce somado à nossa raiz histórica escravocrata e perversa. Veja-se uma elite que não se incomoda com a junção entre interesses econômicos e o extermínio das pessoas em situação de vulnerabilidade social – jovens, negros, periféricos –, uma sociedade e seu sistema de justiça que não responsabilizaram e julgaram os torturadores e seus mandantes no período da ditadura; a naturalização das condições sub-humanas ofertadas nos presídios brasileiros; uma elite e parcela dos nossos representantes parlamentares que desconsideraram mais de 150 pedidos de impeachment contra Jair Bolsonaro em decorrência de seu descaso diante das milhares de mortes durante a pandemia de coronavírus.

Seriam esses os reflexos de um país que foi o último a libertar os escravizados negros, apesar de sua elite ter assinado decretos contra o tráfego negreiro? Estaria aí o nosso paradoxo de base? Ou podemos retornar até o extermínio de nossos povos originários em nome da religião no período colonial? Uma elite perversa representada por homens brancos devidamente vestidos em trajes opulentos e com vernizes civilizatórios em suas atitudes; uma classe média dividida entre a intelectualidade progressista (que precisa se haver com seus privilégios diante das desigualdades sociais que se agravam cada vez mais) e aqueles que aderem à lógica fascista como ponto de fuga para angústias disparadas pela perda de status social; as pessoas em situação de vulnerabilidade social que ainda estão sob o peso da fome e do analfabetismo funcional – são muitos Brasis e são multifacetadas as formas de adesão às ideologias de esquerda e/ou de direita.

Nesse vasto campo de investigação, vamos priorizar neste artigo a articulação entre trechos escolhidos do livro Michel Temer e o fascismo comum (Ab’Sáber, 2018) e algumas cenas e imagens selecionadas do documentário Intervenção – o amor não quer dizer grande coisa, com o objetivo de analisar a dinâmica de afetos do cidadão médio brasileiro que adere às mentiras fascistas e as propaga em formato de audiovisual.

Aproximações entre cenas do documentário e trechos do capítulo “Sonhos, fascismo e história”

O documentário foi lançado em 2016, mas as cenas e gravações foram coletadas por seus realizadores desde 2015, retratando um movimento que desembocou na candidatura e, infelizmente, eleição do representante da extrema direita, Jair Messias Bolsonaro – que, vale lembrar, não participou dos debates com os seus adversários à cadeira de presidente como caberia a alguém que preza o espaço democrático.

Assim, o título do documentário foi retirado da fala de um dos “espetacularizadores de si” mostrados no filme, que clama por ação, e expressa a máxima: “O amor não quer dizer grande coisa”. Isso revela a pobreza de recursos simbólicos nesses produtores de conteúdo de segunda hora apresentados no documentário e sua sintaxe e já aponta para a necessidade de ir direto ao ato, sem mediação possível de palavras e com total ausência de gestos de delicadeza.

Tales Ab’Sáber (2018, p.161-4) considera que “o sistema fascista de linguagem, de cultura, é um sistema de ações” decorrente de um processo de esvaziamento das palavras, uma dessimbolização da vida e da política, no qual “a cultura programática da morte e do extermínio é cultura da morte de palavras, e com elas, de sentidos”.

No caso da palavra “amor”, há a anulação de seu significado mais precioso: o respeito à diferença, a partilha do sensível, a luta por condições iguais de vida para todos, a empatia e a política da amizade. Em sentido oposto, o amor se desloca de mero afeto ao ato e à atuação e, assim, como nos ensina a psicanálise: aquilo que não pode ser dito, rememorado e elaborado se repete em ato violento repetido à exaustão (Freud, 1914).

Nessa linha de raciocínio, o documentário expõe pessoas que bradam para que alguém faça alguma coisa em seu lugar, convidando aqueles que os escutam a exterminar os seus inimigos imaginários. A posteriori e no desenrolar das expressões desses personagens grotescos, exibidos na montagem das imagens selecionadas pelos realizadores, é que nós vamos desvendando que a intervenção que todos solicitam é a intervenção militar e o consequente retorno da ditadura e suas atrocidades autoritárias. E “a grande coisa” formulada na frase pelo protagonista da cena que inspira o título é escolher fora de si algum objeto para projetar o seu ódio e sua vontade de eliminar toda e qualquer diferença, imaginária e/ou real.

O sentimento amoroso é transformado em ódio e é deslocado contra todo aquele que ousa pensar de modo diferente. No caso, o comunismo imaginário, personificado nos governos petistas, na figura de Lula e na misoginia contra Dilma Rousseff. O ódio é deslocado em um continuum: direcionado contra o comunismo inexistente, vai se dirigindo para o artista existente, o professor e a professora da área de humanidades existentes. Vide a política de contenção de gastos do atual governo federal que visa minar direitos sociais conquistados historicamente por brasileiros e brasileiras, um modo de diluir o ódio em desmonte das políticas públicas de educação e saúde conquistadas por anos de lutas dos grupos de pessoas que militam em movimentos sociais.

Se os autores da primeira fase da teoria crítica da sociedade priorizaram as contribuições da psicanálise freudiana para a análise das condições culturais e psíquicas que favoreceram a adesão aos ditames fascistas, Tales Ab’Sáber (2005), para refletir sobre a personalidade neofascista em solo brasileiro, utiliza as contribuições de Melanie Klein, D. W. Winnicott e Wilfred Bion. A psicanálise com crianças muito pequenas elaborada por Klein postula a constituição psíquica por meio das relações de objeto, a partir de duas posições do sujeito do inconsciente: a esquizoparanóide que cinde os objetos em maus e bons, sendo os primeiros projetados para o mundo externo, e a posição depressiva que oportuniza a integração entre objetos bons e maus.

Dando sequência ao legado kleiniano, Winnicott e Bion são psicanalistas que ousaram estender o cuidado na clínica psicanalítica aos psicóticos, esquizofrênicos, pacientes chamados boderlines e os situados nos estados-limite. Para Winnicott, a psique humana é construída em contato com as figuras cuidadoras e depende de condições ambientais suficientemente boas. Ele postula o desenvolvimento do Eu não como algo pronto e acabado, mas em constante edificação ao percorrer o caminho que vai de um estágio de dependência total da mãe-ambiente para uma etapa de maior independência. Portanto, o Eu é composto por traços de personalidades psicóticas e neuróticas e é no processo de seu desenvolvimento psíquico que o espaço entre esses dois tipos de personalidade pode se transformar em cisão, caracterizando os casos mais graves.

No sujeito considerado normal, o neurótico, em seu caminho para a conquista de sua independência ele é capaz minimamente de identificar as regras e leis da realidade social e respeitá-las. Em casos mais graves, a pessoa não é capaz de discernir entre as regras do mundo interno e seus desejos. Ou seja, toda pessoa em contextos sociopolíticos específicos pode despertar traços psicóticos de sua personalidade que estavam adormecidos, fugir da realidade e inventar um mundo próprio que o proteja das intempéries da realidade social. A novidade da proposta bioniana é considerar a experiência do sonhar, cujo primeiro movimento é alucinar o objeto primordial de satisfação, como a primeira etapa para que o sujeito adquira a capacidade de pensar.

Ou seja, é preciso adquirir a capacidade de sonhar para construir o processo lógico do pensamento. Em muitos casos, o psicótico experimenta uma espécie de alucinação contínua, quase um estado de não sonho que dificulta a sua capacidade de desenvolver o pensamento e o raciocínio lógico. Muitas vezes, o principal trabalho na clínica com esses pacientes em estados graves é construir um ambiente entre analisante-analista que restaure no sujeito a capacidade de sonhar – tarefa não tão simples em decorrência do fato de que o trabalho do sonho, no sujeito neurótico, sempre se refere a uma solução de compromisso entre elementos recalcados e os desejos que podem ser realizados alucinatoriamente pelo sonhante.

No sujeito psicótico, em vez do mecanismo de recalque, o que ocorre é uma clivagem do Eu, caracterizada pela divisão e fragmentação do Eu entre objetos bons e maus e pela divisão dos objetos externos que são atravessados pelo medo, pelas ameaças a sua integridade advindas da agressividade e das fantasias sádicas. O mau está fora, povoa o mundo externo e precisa, como é próprio ao mecanismo da projeção, ser odiado e, na sequência, exterminado. Quando não ocorre a integração entre os objetos bons e maus, o sujeito vive em uma alucinação e em um delírio constantes; trata-se de uma alucinose que se refere ao não sonho e ao estado de não pensamento. A partir dessa experiência clínica Bion postulou a ideia de alucinose: “uma distorção efetiva da capacidade de pensar fundada na necessidade de saturar a realidade com desejos que não suportam frustração, bem como o impacto corrosivo dos mecanismos psíquicos ligados ao ódio sobre o próprio pensamento” (Tales Ab’Sáber, 2018, p.53).

Para que a capacidade de sonhar seja restaurada e com ela a possibilidade de pensar, é necessária a construção de um ambiente na clínica psicanalítica que refaça a solução de compromisso entre os desejos do sujeito e o reconhecimento das imposições da realidade sempre associadas às condições sociopolíticas de determinado contexto histórico. A hipótese de Tales Ab’Sáber (2018, p.176) é que o ódio é alimentado pela cultura liberal da competição e do desempenho e pelo movimento fascista que busca, por meio da destruição, a manutenção da ordem capitalista: “Como o capital, o ódio como política não pode parar de produzir o seu próprio excedente, a política da inimizade, a invenção do inimigo civilizatório universal”.

O que o documentário mostra, no caso específico do Brasil, é que foi produzida uma “alucinose coletiva” em algumas pessoas, como defesa para suportar os dados da realidade, na qual há uma clivagem do Eu, e esse sujeito do inconsciente assim dividido constrói alucinações e delírios que pautam a sua invenção de verdades dissociadas dos fatos históricos, portanto, uma inversão da realidade que visa produzir prazeres perversos. Essas invenção e inversão respondem à busca de realização imediata de desejos de um sujeito que evita entrar em contato com seus medos e angústias disparados no convívio com a diferença e com os conflitos sociais.

Assistimos, assim, à construção de enunciados que estão cindidos dos fatos políticos e da realidade socioeconômica brasileira, o que se configura como uma máquina de poder perversa que se baseia na barbárie e na mentira, por meio da ativação psicopolítica da posição esquizoparanóide no sujeito. Diante da invenção do inimigo civilizatório universal, da divisão entre bom e mal e do sadismo, o delírio fascista não tem regulação e nenhum compromisso com a realidade histórica. Como exemplo é possível citar o trecho do documentário no qual um homem afirma para os seus espectadores ter recebido a informação de que haveria um contrato sendo assinado com a China para construir uma grande ferrovia ligando o litoral brasileiro até o Peru, com a finalidade de importar pessoas, trazendo cerca de 300 milhões de chineses para morar dentro das casas dos brasileiros.

Trata-se, portanto, de uma política regressiva espetacular da mentira, na qual a guerra adentra qualquer palavra. Nessa cultura da guerra, a mentira na lógica neofascista, enquanto ação real que deforma a realidade, invade violentamente as coisas, invertendo os valores e os sentidos. A guerra deve ser total, internalizada e tornar-se ato de subjetivação, invadindo a estrutura desejante e empobrecendo a vida imaginária, exigindo do sujeito a conversão à máquina de guerra, à agressividade.

Nessa linha de raciocínio, há cenas do documentário que apresentam uma figura masculina que fala e se filma – por meio de seu aparelho celular – de dentro do seu carro estacionado em via pública. Ele mora nos Estados Unidos e sua mensagem é direcionada aos brasileiros que residem no Brasil, proferindo palavrões de baixíssimo quilate e convocando pessoas, transformadas em míseras sul-americanas, a sair da inércia e lutar pela volta da ditadura militar em território nacional.

O pensamento binário e dicotômico está presente, ao desqualificar os brasileiros e exaltar os estadunidenses; há preconceito geopolítico e o bradar pela volta do Estado autoritário, cimentado em valores patriarcais, ao fazer referência ao “aquilo roxo” – expressão utilizada pelo ex-presidente Fernando Collor de Mello para se referir à virilidade masculina. (Mais atualizado temos o termo “imbroxável”, criado pelo atual presidente de uma República que gasta mais com próteses penianas do que com medidas eficazes para erradicar a fome do país. Parece que são homens que desconhecem outras formas de satisfação erotizada que não seja transformar mulheres em objetos “recatados e do lar”. São pessoas que dificilmente enfrentarão o fato de que as políticas autoritárias transformam a todos em indivíduos broxáveis, pois de fato e de direito nós estamos impotentes diante do perigo e ameaça advindos do armamento da população e do processo de destruição anunciado).

Esse “cidadão do bem” transforma em espetáculo a sua própria miserabilidade de dentro de seu automóvel ao se expressar por meio de uma fala repetitiva, rasa, recheada de impropérios e, assim, transforma a si e a seu carro em utensílios bélicos – reduzidos a um imediatismo condizente com um contexto que exige velocidades supersônicas – apresentados de forma exibicionista em tempo real em sua página do Facebook.

Ele transforma o carro em tanque de guerra, posiciona-se com tom autoritário e gestos automatizados de modo a ditar regras para os seus prováveis interlocutores. São atitudes que nos remetem à ideia de Victor Klemperer ressaltada por Tales Ab’Sáber (2018, p.1 61): “A partir de 1939, o carro de corrida foi substituído pelo tanque, e o motorista de automóvel foi substituído pelo Panzerfaher (motorista de tanque) […]. Durante doze anos, o conceito e o vocabulário do heroísmo estiveram entre os termos prediletos, usados com maior intensidade e seletividade, visando a uma coragem belicista, a uma atitude arrojada de destemor diante de qualquer morte em combate”.

Aqui estamos frente a frente com o neofascista que faz exigências a tudo, traduzido na imagem do dedo em riste que visa ditar o que o outro deve fazer, de modo a ele mesmo não se implicar com seus atos e se responsabilizar por suas consequências. Esses são os modos de agir dos vários personagens exibidos no documentário. Trata-se do que já dizia Sartre (2005): “o inferno são os outros” – são aqueles que precisam obedecer às ordens porque são considerados pessoas destituídas de qualidades. Trata-se de relações pautadas na política da inimizade na qual o outro é sempre o perigoso, o insubordinado e o inimigo. Dessa forma, a lógica do fascismo comum e da cultura de guerra propagada pela extrema direita convida seguidores e seguidoras ao desrecalque da violência, ligada ao prazer sádico de destruição do outro.

Tales Ab’Sáber (2018, p. 165) considera que a cultura fascista é o negativo da multiplicidade, é a sociedade dos mínimos direitos liberais, com a limitação de uma organização voltada para a guerra que ocupa a vida simbólica, de modo que “a coisa penetra o espaço do símbolo”. É esse clima cultural que dá contorno ao fato de que a nossa capacidade de sonhar está cada vez mais distante, enquanto a nossa capacidade de morrer e matar se aproxima. O fascismo é um sintoma que gera sintoma e ataca o sujeito sonhador: “Porque o sonho é o limite simples da resistência, a fonte da mobilidade psíquica, o único resto da ideia de liberdade, o que o fascista visa é de fato dominá-lo, paralisá-lo, reconfigurá-lo mesmo como forma: de sua negociação civilizatória fundamental, da metáfora, da distância e da poesia do sonhar, do exílio humano sonhado em sentido, à ação direta de descarga e recusa da existência do outro” (Tales Ab’Sáber, 2018, p. 164).

O documentário, nesse sentido, oferece aproximações com a ideia de sonho como memória de futuro, pois olhando de forma retrospectiva, a partir de 2022, ele retrata personagens comuns e certa horizontalidade nas relações entre pessoas que ainda não encontraram um líder para adorar, a despeito do fato que nesses protagonistas já está presente o processo lento de cimentação das bases para o despertar das forças neofascistas brasileiras. Ou seja, só anos mais tarde é que a extrema direita, retratada por cidadãos gritando impropérios no filme, encontrará um líder para chamar de seu, a figura de mais um herói sem nenhum caráter, capaz de evocar o nome de um torturador quando declarou seu voto favorável ao processo de impeachment contra a então presidenta Dilma Rousseff, em uma plenária democrática que não lhe imputou punição. Estamos falando de Jair Messias Bolsonaro que, novamente, saiu ileso dessa desfaçatez. Somos nós que o deixamos livre para produzir vergonha nacional e internacional em todo brasileiro que se preze, durante os quatros anos de seu desgoverno. Perplexos e desatentos nós mergulhamos numa espécie de sono sem sonho, uma hipnose socializada.

É Adorno (2015, p. 189) quem desconfia do lema de seu país – “Desperte, Alemanha” –, que significava um chamado velado, naquela época, à adesão cega da população ao líder nazista, como se o povo precisasse despertar de uma espécie de hipnose socializada que fez com que grande parte da população aceitasse o caminho para a sua própria destruição. Não sem uma pitada paradoxal de otimismo, o filósofo afirma: “A hipnose socializada cria em si mesma as forças que eliminarão o fantasma da regressão através do controle remoto e que, no fim, despertarão aqueles que mantêm seus olhos fechados embora não estejam mais dormindo”.

Já Benjamin (2012b) nos oferece outros significados para o despertar associando-o ao sonho, cuja função seria despertar-nos para o pesadelo ao qual estamos presos e, só assim, poderíamos buscar forças para a reconstrução da nossa história, rememorando os nossos mortos, pois eles não terão paz nem nos deixarão em paz e em segurança enquanto líderes fascistas estiverem vencendo e ocupando os lugares de poder, decidindo sobre quais vidas podem viver e quais devem morrer. Nós já temos conhecimentos acumulados para a desconstrução da estética da guerra e para cultivar climas culturais menos afeitos ao autoritarismo e sabemos que essa edificação será realizada com avanços e retrocessos; por isso não nos apressemos em demasia, há o tempo necessário para o diálogo com aqueles e aquelas que estão dispostos a construir alianças que visem elaborar, imaginar e sonhar “outros horizontes políticos possíveis” (KRENAK; SIDARTA, 2020).

Os riscos de nossa história se repetir como tragédia e como farsa

O não sonho e o não pensamento dos fascistas têm produzido interferências exacerbadas na capacidade imaginativa de brasileiros e brasileiras. Cabe agora, às vésperas de mais um segundo turno nas eleições presidenciais no Brasil, em 2022, sensibilizar os cidadãos para encarar o horror sem maquiagens. Cabe exercitarmos nosso direito cívico de colocar nossos votos nas urnas para o candidato que respeita a constituição e o espaço democrático de direito. Apesar da sensação de que a história se repete, ao novamente sermos convidados a escolher entre Jair Bolsonaro e um candidato do PT, não nos cabe essa ilusão.

Trata-se de escapar da sensação de tragédia iminente com a certeza de que a farsa já imperou em demasia nos últimos quatro anos em território brasileiro. Acertadamente, não há repetição, pois está sendo desmascarada a farsa que impediu que Lula fosse candidato ao cargo de presidente da República em 2018. Agora há o embate entre o candidato da extrema direita e os representantes de uma frente democrática que conjuga vários partidos com o objetivo de reconstruir o Brasil.

Nada está pronto, não há Messias para nos salvar, há heterogeneidade e contradições também no interior das forças progressistas e precisamos questionar nossos privilégios diante da desigualdade social que se aprofundou em grande monta nos últimos quatro anos. Quem tem fome também tem reduzida a sua capacidade de sonhar e pensar. Urge barrar o vínculo entre crescimento econômico e o extermínio das classes populares que marca a raiz histórica da nação brasileira. Cabe retomarmos as rédeas de uma sociedade rumo ao bem-viver para tod@s.[i]

*Jaquelina Imbrizi é professora de psicologia na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).

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Nota


[i] Agradecimentos especiais a Luísa Segalla de Carvalho, estudante do curso de Psicologia da Unifesp, por realizar a leitura e inserir alguns parágrafos na primeira versão deste manuscrito, além do seu apoio técnico no recorte das cenas selecionadas do documentário e que foram utilizadas na apresentação do evento Sonho e História, realizado em setembro de 2022 (disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1XhJSaMIfA8&t=15s).

 

 

fonte: https://aterraeredonda.com.br/a-face-obscura-do-brasil/

 

 

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