Em entrevista ao Catarinas, Justyna Wydrzyńska e Kinga Jelinska defendem a desmedicalização, a descriminalização e a desestigmatização do aborto

catarinas portalPor Mariana Prandini Assis

 

Tradução e edição: Jess Carvalho

Em fevereiro de 2020, Justyna Wydrzyńska, que ao lado de Kinga Jelinska e Natalia Broniarczzyk fundou o Abortion Dream Team (Time dos Sonhos do Aborto, em tradução livre), grupo polonês especializado em fornecer informação a respeito do aborto seguro com medicamento, tentou ajudar uma mulher em situação de violência doméstica a acessar pílulas abortivas, e por seu gesto de solidariedade acabou denunciada à polícia. Na Polônia, a pessoa que aborta não está sujeita à lei penal, mas todas as pessoas que venham a se envolver no procedimento podem ser criminalizadas, e isso de fato ocorreu. Em março deste ano, Justyna foi condenada a oito meses de trabalho social, pena que não foi reduzida porque a ré se negou a prometer que não ajudaria outras pessoas a abortarem, um ato político rumo à desestigmatização da prática.

Em entrevista ao Catarinas, as ativistas falam do processo e de seus desdobramentos, que estão longe de acabar. Ambas consideram injusto criminalizar alguém por ajudar outra pessoa a acessar um procedimento de saúde que deveria ser normalizado como um evento comum nas vidas de mulheres cis e outras pessoas que gestam. Justyna vai recorrer da decisão na Polônia, e se diz disposta a ir aos tribunais europeus. Para elas, a importância do caso vai muito além do ativismo do Abortion Dream Team – trata-se de desmistificar o aborto em nossas culturas e de desmedicalizar esse evento, colocando o poder de volta nas mãos de quem mais importa, as pessoas que abortam. Confira.

Mariana: Obrigada, Justyna e Kinga, por falarem com a gente, especialmente nesse momento em que vocês ainda estão processando as repercussões de um julgamento tão injusto. Ao me preparar para a entrevista, fiquei refletindo sobre todas as semelhanças que nossos países compartilham: uma grande influência da Igreja Católica na política e na vida social em geral, o avanço da extrema direita no tecido social, ganhando poder, atacando os direitos das mulheres e LGBTQIA+, perseguindo ativistas… Assim como ocorre com vocês, grupos antigênero vêm se fortalecendo aqui, com acesso a mais recursos e capacidade de mobilização na sociedade civil e, por último, mas não menos importante, compartilhamos um arcabouço jurídico de severa restrição ao aborto. Para as pessoas no Brasil que não sabem muito sobre a Polônia e não conhecem o Abortion Dream Team, vocês podem nos contar sobre a trajetória e o ativismo de vocês, o que as levou a se organizarem coletivamente e começar esse trabalho que fazem há anos?

Justyna: Kinga, Natalia e eu nos conhecemos há anos, quando trabalhávamos em nossas próprias organizações. Em 2016, decidimos juntar o conhecimento que temos e começar a trabalhar juntas. Nossa primeira ideia foi viajar pela Polônia fazendo encontros sobre a realidade do aborto, falando que este não é um assunto tabu, que devemos ser abertas e dizer como ele realmente é, e gostamos da experiência. Em 2019, demos início à iniciativa conjunta Abortion Without Borders com outras cinco organizações. Mas veio a pandemia de Covid-19, paramos de viajar, e tivemos que mudar nossas atividades para o mundo virtual. Nosso principal objetivo era mostrar que o aborto, muito estigmatizado, é uma experiência comum, e queríamos que todas soubessem como o aborto deve ser feito com medicamentos, e onde acessar o serviço. Assim, damos às pessoas o poder de agir, de lutar por sua própria autonomia.

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Justyna Wydrzyńska | Crédito: Abortion Dream Team.

 

Kinga: Este é um exemplo de organização feminista transnacional para a autoajuda. Especialmente o Abortion Without Borders (Aborto Sem Fronteiras, em tradução livre), porque a iniciativa conta com seis grupos atualmente, alguns deles na Polônia, incluindo o Abortion Dream Team. Nosso objetivo é fornecer informação, porque isso é obviamente permitido e protegido, embora os ultraconservadores tentem argumentar que também se trata de auxiliar e incentivar o aborto. O Abortion Dream Team é o tipo de entidade que aborda tópicos e discussões incômodas a partir de um outro ângulo, especialmente da justiça reprodutiva, porque faltava uma voz polonesa que falasse sobre um tema tão estigmatizado aqui – o aborto. As ações do Abortion Without Borders se dão, na maior parte, em torno das pílulas, porque a maioria das pessoas usa as pílulas na Polônia, especialmente no primeiro trimestre da gravidez. Mas há pessoas que também viajam para o exterior para ter acesso ao aborto seguro. E aqui usamos as possibilidades de viajar que temos dentro da União Europeia. Estamos cientes de que esse modelo funciona bem na Europa porque a maior barreira para viajar aqui geralmente são os custos, diferente do que ocorre em outros países onde você precisa ter passaporte, visto, etc. Então, quando conseguimos nos organizar para levantar o dinheiro, estimulamos essa prática entre todas as pessoas, independentemente de sua condição financeira. As pessoas podem fazer abortos em clínicas no exterior, e esses são predominantemente abortos de segundo e terceiro trimestre. 

Estatisticamente, e esse é o paradoxo, praticamente todos os abortos na Polônia são feitos fora do sistema formal, sobretudo depois das últimas restrições, de 2020 [quando uma decisão da Corte Constitucional polonesa tornou ilegal o aborto, antes autorizado, nos casos de gestação inviável]. Mesmo antes disso, a lei era extremamente rigorosa. Podemos dizer que, há pelo menos 30 anos, vivemos a criminalização do aborto, de uma forma ou de outra.

A estatística divulgada recentemente pelo governo é de que o sistema de saúde fez 107 abortos em todo o ano de 2021. E isso é praticamente o que nós fazemos em um dia, essa é a escala.

Então, quando falamos sobre quem tem o poder, o conhecimento, especialmente o conhecimento mais atualizado e adaptado às recomendações de saúde neste país, somos nós e não os médicos, infelizmente. Muitos deles não estão dispostos a fazer abortos. Em vez de aliados, eles são barreiras. Criticam o aborto com pílulas, mas não têm conhecimento de como fazer um aborto seguro. Eles adotam procedimentos muito desatualizados, como a dilatação e curetagem, algo que sabemos que também ocorre no Brasil.

Mariana: Agora eu quero tratar das leis que criminalizam o aborto, porque acho que essa é outra semelhança que temos. Muito do debate sobre aborto no Brasil, acaba ficando restrito à agenda da legalização. E há uma grande diferença entre descriminalizar e legalizar. Gostaria que vocês falassem um pouco sobre a agenda compartilhada pelo Abortion Dream Team, o Abortion Without Borders e vários outros coletivos e organizações feministas ao redor do mundo, inclusive na América Latina e no Caribe, em torno da descriminalização, desestigmatização e desmedicalização do aborto. O que esses três eixos significam? Penso que as pessoas têm muito a aprender com essa abordagem que as feministas pelo aborto autônomo estão não apenas desenvolvendo conceitualmente, mas colocando em prática por meio de seu ativismo. 

Justyna: Sobre a descriminalização, na Polônia, a lei diz que você pode pedir comprimidos e se fizer um autoaborto, você não será criminalizada, mas todos que tentarem ajudar podem ser denunciados. É por isso que eu sofri um processo judicial. Eu compartilhei pílulas abortivas com outra pessoa, e quando isso vazou, fui denunciada. Você pode fazer o aborto legal no sistema de saúde em dois casos: em caso de risco à saúde ou à vida, ou quando a gestação resultar de um crime sexual. Mas o aborto por crime sexual quase não existe no sistema de saúde polonês, porque para acessar o serviço, é preciso demonstrar que a investigação criminal começou. Sobre a situação de risco à vida, as barreiras são os médicos. Eles têm tanto medo da criminalização que praticamente nada fazem. Após a mudança na lei, nós tivemos duas, quase três mortes de mulheres que estavam nos hospitais e os médicos realmente não fizeram nada. Eles esperaram o feto morrer naturalmente, as mulheres tiveram sepses e morreram. Então, na verdade, o acesso ao aborto é viabilizado apenas por organizações como a nossa. Quando falamos com as pessoas aqui, percebemos que elas têm muito medo de usar o sistema para acessar o serviço, porque a lei é muito complicada.

Kinga: A nossa posição, e eu quero demonstrá-la usando o caso de Justyna, é de que as leis e o projeto de legalização são meios de controlar o aborto e colocá-lo dentro do sistema formal de saúde. Entendemos que esse conceito não está ajustado à realidade atual, em que existem vários modos de realizar abortos que devem ser acessíveis às pessoas. Concretamente, as regras em torno do aborto sempre excluem alguém, por exemplo, a limitação em razão do número de semanas ou de quem pode realizar o procedimento. Mas sempre haverá pessoas cuja situação estará fora da lei. A descriminalização garante que não haverá sanções criminais a abortos também nesses casos, e aponta que não precisamos de leis. E é interessante ver o que aconteceu com o caso de Justyna na Polônia. Justyna não é médica. Ela é uma ativista feminista, uma doula de abortos, que provê informação a pessoas que precisam; de fato, ela é uma prestadora de aborto recomendada pelas mais recentes orientações da Organização Mundial de Saúde. E as pessoas foram esmagadoramente a favor do que Justyna fez, como ficou claro pela reação nas redes sociais e na mídia. Ou seja, a maioria pensa que era a coisa certa a se fazer. Afinal, como você nega ajuda a uma pessoa que precisa? E é interessante porque, teoricamente, ela poderia ser criminalizada em muitos outros países.

A situação que temos hoje é que não há um regime legal em qualquer parte do mundo, não apenas nos países onde o aborto está muito restringido, mas também naqueles com as chamadas legislações liberais, que seja sobre segurança e acesso, e não sobre controle político acerca de quem é dono do aborto. Esse controle se dá por leis ou regulações, sistemas de licenças e pela própria medicina.

Porque o aborto tem sido um domínio da medicina apenas, e isso é algo que também estamos buscando transformar com a ideia de que você pode ajudar outras pessoas que abortam. Quando se tem acesso a informações e a pílulas, realmente não é preciso consultar um médico, a menos que haja uma complicação [nisso consiste a desmedicalização]. 

E a desestigmatização se relaciona com tudo o que falei até aqui. Provavelmente teria sido mais seguro para Justyna, do ponto de vista jurídico, dizer que não faria novamente o que fez ou que estava arrependida, porque sua ação é, supostamente, um ato criminoso. Mas ela nunca disse isso, e isso é desestigmatizar. Trata-se de normalizar que nós não acreditamos que ajudar uma outra pessoa a ter acesso a pílulas abortivas ou a informação sobre aborto pode ser considerado um crime. E na visão da maioria das pessoas não é um crime, porque ajudar é algo que fazemos desde que o mundo é mundo. Mães ajudam filhos e filhas, amigos e amigas se ajudam mutuamente. Então, trata-se de normalizar que todas nós fazemos isso e que o ato de entregar pílulas a uma outra pessoa não pode ser considerado um ato criminoso, porque isso não é coerente com a realidade.

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Kinga Jelinska, Justyna Wydrzyńska e Natalia Broniarczzyk | Crédito: Abortion Dream Team.

 

Mariana: Vocês já mencionaram o caso de Justyna e a condenação ao longo dessa entrevista algumas vezes, mas provavelmente a maioria das pessoas que nos lerão ainda não conhece o caso. Então, podem voltar um pouco no tempo e nos contar que modelos de cuidado desenvolveram e por que exatamente Justyna está sendo criminalizada? Como isso aconteceu e quais serão os próximos passos?

Justyna: Vou começar com a história do processo. Tudo teve início em fevereiro de 2020. Era o começo da pandemia e uma mulher escreveu para o Abortion Without Borders pedindo ajuda. Ela queria ir para o exterior, mas mudou de ideia porque foi chantageada pelo companheiro, que ameaçou denunciá-la por sequestro, porque tinham um filho pequeno. Então ela perguntou se havia alguma outra maneira de ajudá-la, porque se não recebesse apoio, tentaria métodos inseguros ou pensava até mesmo em se matar. Minhas colegas me ligaram e me contaram sobre esse relacionamento violento e como ela estava desesperada. Eu também passei pela experiência de violência doméstica. O meu ex-marido era muito controlador e eu sofria não apenas violência patrimonial como também violência psicológica e física. Esta foi a razão pela qual decidi compartilhar os medicamentos com ela. Para mim, ficou claro que se ela tivesse as pílulas em mãos, teria a possibilidade de decidir o que queria e interromper a gravidez de forma segura. Ela estava com quase 12 semanas, então eu sabia que as pílulas eram seguras e ela poderia usá-las sozinha. Porém, o companheiro, de alguma forma, obteve a informação de que eu havia enviado o pacote e informou a polícia, que foi até a casa e apreendeu os comprimidos. No envelope, havia meu número de telefone e com isso, a polícia obteve a informação de quem havia enviado. A história é longa porque a polícia ficou em silêncio por mais de um ano. No dia 1º de junho de 2021, vieram à minha casa e procuraram mais comprimidos. Eu tinha outro pacote para uso pessoal, e fui denunciada em novembro de 2021. Em dezembro do mesmo ano, o Ministério Público encerrou a investigação, e no dia 8 de abril de 2022, tive a primeira audiência no tribunal. Tive que ir seis vezes ao tribunal porque as testemunhas não compareceram. A gente sabe que quando se vive em violência, há momentos diferentes no ciclo – um é bom, o outro é ruim etc. Essa provavelmente foi a razão pela qual ela não compareceu por muitas vezes. Mas finalmente ela veio à audiência em fevereiro deste ano, e deu seu testemunho. Foi muito emocionante. Eu tenho muito orgulho do que ela disse. Ela foi corajosa e aberta, e após a audiência, enviou uma carta ao meu advogado contando que, quando quis interromper a gravidez, todos se afastaram dela, mesmo os médicos que dela deveriam cuidar. E eu a ajudei. Por isso, ela me agradecia e me oferecia apoio. Na semana passada, saiu a sentença. Fui considerada culpada por ajudar alguém e agora tenho que cumprir oito meses de trabalho social, 30 horas por mês. Iremos, é claro, recorrer, porque durante todo o processo eu reafirmei que não me sinto culpada. Obviamente enviei as pílulas, mas não acredito que ajudar outra pessoa é algo pelo qual se deva ser criminalizada. É por isso que iremos à corte de apelação, mas não sabemos como será porque o sistema judiciário na Polônia está em péssimas condições. Se não resolver, iremos aos tribunais europeus.

Kinga: Quero acrescentar algo muito sintomático do caso, que é o fato de a promotoria ter continuado apresentando novas evidências, e essas evidências geralmente eram entrevistas sobre o ativismo de Justyna. O que a promotoria buscava era expandir, simbolicamente, a que significa “ajuda”, que é um termo vago no direito, para incluir o ativismo e o fato de que Justyna continua dizendo que fará o mesmo, que faria tudo de novo, que continuará prestando informação às pessoas. Além disso, o judiciário realmente está  em uma situação muito ruim, porque se trata de juízes nomeados politicamente. Um dia após o veredito de Justyna, o juiz foi promovido ao Tribunal de Apelação, o que provocou outro escândalo. Então, este é um caso interessante e multifacetado, porque é um caso de empatia, de uma mulher tentando ajudar outra mulher. Também é uma história sobre como a violência é institucionalizada pelos atores estatais. O marido liga para a polícia, e a polícia comparece e mostra interesse. Em seguida, a promotoria, o tribunal, um grupo de homens, de figuras patriarcais a quem você deve contar uma história, mas em quem não pode confiar. Não importou o que Justyna ou as testemunhas disseram, parece que o veredito já estava escrito, tanto que foi entregue dentro de uma hora após o encerramento do procedimento. E há também a história do estado de direito e de como o sistema jurídico não é empático com as mulheres e suas necessidades.

Sobre a sua segunda pergunta, sobre o que fazemos no Abortion Dream Team, nosso trabalho é principalmente sobre a desestigmatização do aborto e ser assertiva ao dizer que o acesso ao aborto é um bem social que as pessoas querem e precisam. Nós todas já fizemos abortos e falamos alto sobre isso. Tentamos mostrar a realidade de que um aborto geralmente resulta em alívio e não precisa ser uma decisão difícil. Na verdade, a maioria das pessoas que nos escrevem tem certeza de que precisa de um aborto, o difícil é ter acesso e pagar.

E nós somos práticas, no sentido de que através da rede Abortion Without Borders fazemos daquela visão uma realidade. Porque todas temos nosso papel na rede, e o Abortion Dream Team é prioritariamente sobre mídia e visibilidade na Polônia. Mas o objetivo final é fornecer acesso prático e, ao mostrar como isso pode funcionar, também mudar a forma como as pessoas se sentem sobre o aborto e como o percebem. Durante o julgamento, a juventude nos escrevia para dizer que já não tem tanto medo de fazer sexo porque sabe que existe uma opção. As pessoas estão absolutamente maravilhadas porque podem ser apoiadas no deslocamento até clínicas estrangeiras, como parte de um cuidado de saúde em que são tratadas com dignidade e respeito. Então, muita mudança já está acontecendo. Buscamos ser amigáveis e oferecer uma interação humanizada quando se trata de aborto, porque fomos completamente abandonadas pelo sistema e pelos médicos que, como eu disse, não são nossos aliados neste país. Eu diria que eles são obstrutores ativos. E o estado é o estado, você sabe como é. Acho que um dia os políticos chegarão onde estamos. Talvez esse seja um raio de esperança para países como a Polônia e o Brasil: já vemos  políticos de esquerda, e até liberais, incorporando esse discurso porque compensa, é o que as pessoas querem e é onde estão os futuros votos. E o segundo ponto positivo resultante do caso de Justyna e de todas as restrições é que vimos uma enorme reação entre pessoas oprimidas que passaram a compartilhar informação e se tornaram mais ativas em torno do tema. É claro que essa mobilização depende do contexto. Cada lugar é um lugar, porque o risco de criminalização não é o mesmo para todas e estamos conscientes disso. Também estamos muito cientes de que este caso está acontecendo na Europa, onde há muita pressão sobre a Polônia por violar os direitos humanos. E eu sou muito agradecida a você, Justyna, porque decidiu potencializar esse caso, sabendo do privilégio que seria fazer isso neste contexto em particular. Você assumiu esse risco, e foi muito inteligente politicamente. Foi um movimento estratégico importante para todos os outros casos, porque certamente os teremos e há paralelos entre eles.

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Natalia Broniarczzyk durante o julgamento | Crédito: Abortion Dream Team.

 

Mariana: Definitivamente. Esse caso é ilustrativo de como a violência está arraigada em todos esses diferentes sistemas. Temos a mulher que enfrenta violência dentro de casa e na família, e depois temos a ativista que oferece ajuda e passa a enfrentar violência dentro dos sistemas jurídico, político e médico. Eu acho fantástico como vocês conectam todas essas pontas de maneira estrutural e vinculada a um movimento muito maior. E esse ponto se conecta a uma pergunta para Justyna. Na ocasião de seu julgamento, você disse não sentir que estava enfrentando o tribunal sozinha. Você pode nos falar sobre esse grupo que você representa? Quem são as pessoas que fazem parte desse grande movimento transnacional que organiza o aborto autônomo, a descriminalização e a desestigmatização do aborto ao redor do mundo?

Justyna: Na minha opinião, primeiro represento aquelas que já tiveram essa experiência de aborto, não importa se foi com medicamentos ou cirúrgico, e represento todas aquelas que talvez no futuro queiram decidir sobre isso, mas também toda ativista, toda pessoa que já compartilhou informações sobre como pedir pílulas abortivas, como ir para o exterior, aonde ir. Aquelas mães que ajudam suas filhas, amigas que ajudam umas às outras e parceiras e parceiros que ajudam suas parcerias. Portanto, todas as pessoas que, em algum momento da vida, disseram: você pode fazer um aborto e eu estou com você. Para mim, isso é o mais importante. Mas claro, há também todas as ativistas que estiveram na frente do tribunal, gritando, protestando por horas a fio, quando estava muito calor e quando estava muito frio na Varsóvia, fazia – 10º e elas estavam comigo. E é por isso que me sinto muito mais corajosa.

Eu senti a força das pessoas que me apoiavam. Também houve tantas organizações de direitos humanos a nos apoiar nesse processo, parlamentares, coalizões europeias… Enfim, isso realmente fez uma grande diferença, porque quando você se senta na frente desses defensores da lei e da ordem, você pensa que eles têm muito poder. Mas quando os confronta, você vê que eles não são tão corajosos nem são tão poderosos e você começa a ter menos medo deles.

Mariana: Chegamos à nossa última pergunta. O ativismo pelo aborto autônomo é uma fonte de inspiração para todas nós – ele garante que pessoas tenham acesso ao aborto seguro aqui e agora. Portanto, não se trata de tentar criar caminhos para uma bela lei no futuro – o futuro já está acontecendo hoje com o trabalho que vocês e tantas outras coletivas e organizações desenvolvem ao redor do mundo. Além disso, as campanhas de vocês são lindas. Coloridas, divertidas, calorosas, acolhedoras, elas contribuem para a luta contra o estigma. E vocês promovem uma visão de mundo onde o aborto é um evento comum na vida das pessoas. O aborto não é mais um crime, não é imoral, mas sim um fato real, algo que acontece na vida de pessoas concretas. E que pode ser um alívio, pode ser triste, mas também pode ser feliz. Pode ser relaxante. Pode ser doloroso, mas também pode ser prazeroso. Então, acredito que o trabalho de vocês e todas as feministas que se organizam pelo aborto autônomo, é poderoso porque conecta diferentes dimensões materiais, simbólicas e estéticas. É um trabalho político e também jurídico, porque enfrenta a lei e denuncia o quanto ela é injusta. 

Agora estamos em um momento muito importante no Brasil, pois nos livramos de um presidente fascista, de direita, e estamos olhando para frente, com um governo de centro-esquerda que se mostra aberto a nos ouvir. Mas que também já esteve no poder antes e não se comprometeu a lutar conosco por uma decisão justa em torno do aborto. Diante disso, queria saber que mensagem vocês têm para as ativistas do Brasil. Quando eu olho para as condições na Polônia, vejo uma sociedade conservadora, onde a religião e o patriarcado exercem muito poder, a direita avança e, mesmo nesse contexto adverso, vocês conseguiram realizar muito… Isso é transformador. Que mensagem vocês nos deixam?

Justyna: Eu não sou muito boa em deixar mensagens… Mas, o mais poderoso para mim é você ter amigas ao seu redor que a apoiam, não importa a circunstância, e que estão com você o tempo todo. E que você tenha uma rede não apenas no seu país, mas também fora. Quando vocês estão juntas nesse ativismo, em uma situação de crise, faz uma grande diferença que vocês saibam que existem pessoas ao redor do mundo em situação semelhante. Pode acontecer em qualquer lugar e há pessoas que podem aprender com suas lições. Então, olhem para o que aconteceu aqui e tentem tirar essas lições, adaptando-as à sua situação, antes que algo similar aconteça.

Kinga: Quero dizer duas coisas. Uma é que tenho trabalhado na Polônia nos últimos dezessete anos e, por muito tempo, foi extremamente frustrante porque fomos absolutamente incapazes de criar qualquer espaço para falar sobre a experiência e a realidade do aborto na mídia ou no discurso público. Este era um assunto de que não se falava ou um tema que só era apropriado em momentos de eleições, em algum debate político que na verdade nada se relacionava às realidades das pessoas gestantes. E foi muito, muito frustrante. Mas então tudo mudou, com as restrições adicionais impostas, com o nosso trabalho etc, e mudou tão rapidamente que até nós mesmas ficamos maravilhadas. Portanto, é possível, e às vezes parece que não há quase nada a ser feito, que estamos lutando uma guerra de Sísifo ou que estamos lutando contra poderes que não querem que falemos ou sejamos ouvidas.

E a outra coisa, para mim, são as pílulas abortivas. Elas são disruptivas dessas estruturas de poder de que falamos e nos permitem retomar a segurança do aborto e, pelo menos, uma parcela de poder. Isso é revolucionário. É uma tecnologia que acredito ser imparável, que só pode se tornar mais acessível com todo o trabalho dos grupos feministas.

Porque as feministas vêm dizendo tudo isso há tempos, antecedendo a ciência com práticas inovadoras, baseadas na ética humana, e eu tenho muita confiança nisso. E eu acredito que esse caso é evidência da solidariedade internacional e de nosso poder de organização social.

Mariana: Muito obrigada! 

*Publicação atualizada às 14h18 de 05/04/2023.

 
Mariana Prandini Assis

Professora da Universidade Federal de Goiás (UFG) e conselheira editorial do Catarinas.

 

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