Quase lá: A POLÍTICA DA OBSTRUÇÃO - contra os direitos das mulheres ao aborto

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A POLÍTICA DA OBSTRUÇÃO - contra os direitos das mulheres ao aborto

Grupos conservadores perceberam que, mais fácil que proibir o aborto previsto em lei, é inviabilizar a sua realização por todos os meios possíveis

Mônica Manir |19 mar 2024_10h16 - Revista Piauí
 

aborto legal2

 

Um nada. Assim Carla* se sentia quando chegou ao Hospital Maternidade Vila Nova Cachoeirinha, na Zona Norte de São Paulo. Era mais um capítulo de uma longa saga. Fazia nove semanas que Carla fora estuprada depois de sofrer um golpe do tipo Boa Noite, Cinderela. Antes que pudesse se recuperar do trauma, descobriu ter engravidado. Percorreu São Paulo em busca de um hospital onde pudesse abortar. A lei brasileira permite a interrupção da gravidez em três cenários: quando há risco de morte para a mulher, quando o feto é anencéfalo ou quando a gravidez é resultante de estupro. Carla, portanto, estava amparada pela lei, que lhe permite não ter um filho contra a sua vontade.

Ainda assim, deu com a cara na porta de vários hospitais. Do Vila Nova Cachoeirinha, um dos últimos que visitou, já não esperava muita coisa. Em dezembro, o hospital, que até pouco tempo era referência em aborto legal na rede pública, deixou de oferecer o serviço. Num primeiro momento, a prefeitura, responsável pela unidade, se justificou alegando que havia pouca demanda por procedimentos de aborto. Depois, explicou que era preciso centrar esforços em outros tipos de cirurgia. O aborto não estava entre as prioridades.

Carla esperava ao menos ser encaminhada para outro hospital onde pudesse interromper a gravidez. No dia 2 de fevereiro, uma liminar judicial havia determinado que o Vila Nova Cachoeirinha deveria recepcionar as grávidas em busca de aborto e direcioná-las para outras unidades de saúde, agendando dia e horário para o procedimento, sem restrição de idade gestacional. Carla, no entanto, recebeu no Cachoeirinha apenas o endereço de outros três hospitais. O agendamento ficou por sua conta e risco.   

Risco, por exemplo, de não encontrar um médico disposto a atendê-la, como havia ocorrido dias antes no Hospital Municipal Dr. Cármino Caricchio, mais conhecido como Hospital do Tatuapé, na Zona Leste da cidade. Disseram-lhe, na ocasião, que o ginecologista estava de férias e que, além disso, ali não se praticava aborto legal. Questionada pela piauí, a Secretaria Municipal da Saúde afirmou que o hospital oferece, sim, o procedimento, mas não explicou o motivo pelo qual ele foi negado a Carla.

Risco de exigirem um boletim de ocorrência como condição para realizar o aborto, como havia acontecido no Hospital Maternidade Leonor Mendes de Barros, também na Zona Leste. Por lei, o B.O. não é pré-requisito para aborto em nenhuma circunstância. Mas é comum que médicos inventem a regra. Dias depois, no Hospital da Mulher, na região central de São Paulo, Carla ouviu a mesma exigência. Dessa vez, ela só queria fazer uma ultrassonografia. De tanto insistirem, Carla de repente se viu numa viatura com dois policiais rumando para a Casa da Mulher Brasileira, onde funciona uma Delegacia da Mulher.

Desnorteada, debulhou-se em lágrimas. Em seguida, telefonou para o Projeto Vivas, que auxilia meninas e mulheres a acessarem os serviços de aborto legal no Brasil e no exterior. Carla é advogada, mas não conseguiu fazer a lei valer para si mesma. 

“Está muito, muito difícil em São Paulo”, lamenta a advogada Rebeca Mendes, que acompanhou a saga de Carla. Mendes é uma das fundadoras do Vivas e foi a primeira brasileira a requisitar ao Supremo Tribunal Federal a prerrogativa de abortar legalmente e em segurança, mesmo seu caso não se enquadrando nas três hipóteses previstas em lei. O pedido, protocolado em novembro de 2017, não foi aceito. Mendes foi abortar na Colômbia.

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Outras brasileiras já fizeram o mesmo. Dois anos atrás, os colombianos descriminalizaram o aborto até 24 semanas de gestação. Segundo Mendes, no entanto, o destino mais requisitado nos últimos tempos tem sido a Argentina. O país fica mais perto que a Colômbia e, desde 2020, permite o aborto até a 14ª semana de gravidez sem que seja necessário apresentar um motivo. Depois da 14ª semana, a interrupção só é permitida em casos de estupro ou de risco para a vida ou para a saúde da mulher. Viajar é caro e trabalhoso, mas, para muitas mulheres, é uma aposta mais certeira que tentar abortar no próprio país. “A gente tem de comer pelas beiradas, mas parece que estamos sendo devoradas pelo meio”, diz Mendes.

AFrança acaba de tornar o aborto um direito constitucional das mulheres. O Brasil está longe disso. Em setembro do ano passado, antes de se aposentar, a ministra do Supremo Tribunal Federal Rosa Weber votou pela descriminalização do aborto nas primeiras doze semanas de gestação. O voto, considerado histórico por ativistas de direitos humanos, logo foi engavetado nos escaninhos da Corte. O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, não encaminhou o assunto para votação no plenário. Em dezembro, disse que não pretendia fazê-lo no curto prazo. Dias atrás, disse querer fazê-lo “na velocidade máxima possível”. 

Enquanto isso, mesmo o aborto que já é previsto em lei vem sofrendo investidas. Grupos conservadores, muitos deles evangélicos, pressionam pela aprovação de projetos de lei que dificultam a interrupção da gravidez, apelando sobretudo para medidas que constrangem tanto as grávidas quanto os médicos. Em geral, os projetos não propõem mudar o texto do Código Penal. Propõem, em vez disso, inviabilizar a realização do que está previsto nele.

Alguns exemplos: em dezembro, a Câmara de Vereadores de Santa Maria (RS) aprovou uma lei que incentiva médicos a realizarem ultrassonografias e mostrar para as grávidas a batida do coração do feto. A tese é de que, ao ouvi-la, as mulheres desistirão do aborto. Em janeiro, uma lei similar foi aprovada pela Assembleia Legislativa de Goiás e sancionada pelo governador Ronaldo Caiado (União). Em novembro, um deputado federal do Republicanos propôs incluir a seguinte frase nas embalagens de testes de gravidez: “Aborto é crime; aborto traz risco de morte à mãe; a pena por aborto provocado é de 1 a 3 anos de detenção.” Em agosto, outro deputado do Republicanos propôs obrigar as escolas públicas a promover palestras sobre os riscos do aborto. Os palestrantes, diz o projeto, podem ser médicos, psicólogos, assistentes sociais ou especialistas “devidamente capacitados para fornecer informações objetivas e embasadas sobre os malefícios do aborto”. 

“São estratégias muito bem articuladas e organizadas em diferentes níveis, do nacional até o municipal, que vão se pulverizando e capilarizando, seja via partidos políticos, seja via organizações desse campo”, diz a advogada Renata Jardim, integrante do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres (Cladem) Brasil.

Autora do projeto de lei aprovado em Santa Maria, a vereadora Roberta Leitão (Progressistas-RS) foi mais longe. Apresentou um projeto que obriga a cidade a divulgar “cartazes educativos” com explicações e ilustrações sobre cada tipo de procedimento abortivo. Devem mostrar “os danos físicos e psicológicos que o procedimento poderá ocasionar para a gestante” e informar o destino do nascituro após o aborto. Novamente, a Câmara aprovou a proposta. Os dois projetos, juntos, foram chamados de Pacote Pró-Vida. O prefeito Jorge Pozzobom (PSDB) os vetou ainda em dezembro. Agora, eles voltam ao plenário para avaliação dos vereadores. Ainda não há data definida para as votações.

O SUS registrou 2,9 mil abortos legais em 2023. O número aumentou de forma lenta e quase constante na última década (em 2014, foram 1,6 mil casos). Segundo o ginecologista e obstetra Cristião Rosas, representante no Brasil da Rede Médica pelo Direito de Decidir, isso não significa que o acesso a esse tipo de procedimento tenha melhorado. Os dados possivelmente refletem a piora nos índices de violência sexual no país. O número de estupros notificados nesse mesmo período saltou de 50 mil casos para 75 mil, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A maioria das vítimas são crianças de até 13 anos.

Para Gabriela Rondon, da organização feminista Anis – Instituto de Bioética, soma-se a isso o fato de que a mortalidade materna cresceu no Brasil durante a pandemia (o crescimento foi desproporcional ao da mortalidade da população em geral, segundo estudo publicado pela Fiocruz). É provável que tenha havido, nesse período, um aumento no número de gravidezes de risco.

ORepublicanos, que nasceu em 2005 como Partido Municipalista Renovador, está na linha de frente da causa antiaborto. Criado por pastores da Igreja Universal do Reino de Deus, o partido tem como presidente o deputado federal Marcos Pereira, bispo licenciado da Universal, e como porta-voz sênior a senadora Damares Alves. Ambos compareceram ao 1º Encontro Nacional de Mulheres Republicanas, que ocorreu entre 11 e 13 de dezembro, em Brasília.

O painel de encerramento do primeiro dia chamava-se “Republicanas pela Defesa da Vida”. No auditório do Complexo Brasil 21, cerca de quatrocentas mulheres de todos os estados, muitas delas pré-candidatas às eleições municipais, ouviram Damares discursar sobre o Estatuto do Nascituro. O projeto, de autoria das deputadas Chris Tonietto (PL-RJ) e Alê Silva (Republicanos-MG), estabelece a proteção integral do nascituro – figura jurídica que, segundo o projeto, equivale a um ser humano concebido, mas ainda não nascido, incluindo fetos in vitro ou produzidos mediante clonagem. A lei confere personalidade jurídica integral ao feto desde a concepção. O aborto, com isso, torna-se crime hediondo – inclusive em casos de estupro.

De acordo com o Estatuto, “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar ao nascituro, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar, além de colocá-lo a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. O projeto tramita na Câmara, sob diferentes embalagens, há pelo menos dezesseis anos. Sua primeira versão foi apresentada em 2007 pelos então deputados Luiz Bassuma (PT-BA) e Miguel Martini (PHS-MG). Os dois projetos correm em paralelo e estão sujeitos à apreciação do plenário.

Ao lado de Damares, no palco, estava a advogada Cristiane Britto, que a sucedeu no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos durante o governo Bolsonaro. A senadora levantou a bola para a colega: “O Estatuto do Nascituro muda o Código Penal?” Britto cortou: “Não.” Para os grupos antiaborto, essa é uma questão importante do ponto de vista jurídico. Caso os deputados entendam que o projeto interfere no Código Penal, podem rejeitá-lo, alegando que o texto é inconstitucional ou que acarreta insegurança jurídica.

Britto argumentou que a lei não contraria o Código Penal porque, de seu ponto de vista, o código não legaliza o aborto nos casos de estupro, de malformação do feto ou de risco à saúde da mãe – ele diz que é um crime, mas extingue a pena que as mulheres sofreriam nesses casos. Isso significa, para Britto e seus colegas do Republicanos, que na verdade não existe aborto legal em hipótese alguma – mesmo sendo previsto em lei. “Não se discute direito à vida”, concluiu a ex-ministra. “Estamos aqui para dizer que a vida existe desde a concepção.” E frisou novamente: “O Estatuto do Nascituro não vai mexer no Código Penal.”

A curitibana Ela Wiecko, ex-subprocuradora-geral da República e professora aposentada da Faculdade de Direito na Universidade de Brasília (UnB), rebate essa hermenêutica. “Não é verdade. O que o Código Penal prevê é exclusão de crime, e não exclusão de pena”, explica. Wiecko argumenta que o Estatuto fere, sim, o texto da lei. “Estatuto é um tipo de lei que regula tudo, como no caso do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).” O ECA, ela diz, prepondera na Justiça e nas políticas públicas. O mesmo poderia acontecer caso o Estatuto do Nascituro fosse aprovado. Sua existência anularia, na prática, o Código Penal.

O advogado Henderson Fürst, que preside a Comissão Especial de Bioética e Biodireito da OAB de São Paulo, explica que, se o Estatuto não revoga expressamente o Código Penal, ele certamente abre brecha para a revogação tácita. “Em geral, um profissional que atende em hospitais é formado em ciência da saúde, não em ciência política, o que significa que, diante de uma hesitação quanto à legalidade do aborto em determinadas condições, ele tende a seguir a lei mais recente, ainda que seja contrária à anterior”, pondera Fürst.

Um dos impactos possíveis diz respeito às vítimas de estupro. Em seu artigo 13, o Estatuto do Nascituro diz que o feto concebido por um ato de violência sexual tem os mesmos direitos que todos os nascituros, além do direito prioritário à assistência pré-natal, com acompanhamento psicológico da gestante; do direito prioritário à adoção, caso a mãe não queira assumir a criança; e do direito à pensão alimentícia no valor de, pelo menos, um salário-mínimo até que o nascido complete 18 anos. O dinheiro deve sair do bolso do estuprador, caso ele tenha sido identificado. Caso contrário, o Estado assume a despesa.

A pensão alimentícia foi batizada por seus críticos de “bolsa-estupro”. Para o ginecologista Jefferson Drezett, a proposta “transita entre o tolo, o pueril e o ideológico, porque não considera o horror que é, para uma mulher, estar grávida de um estupro. A ideia, em vez disso, é de que elas abortam porque são pobres e não têm condições de cuidar da criança”. Drezett é professor de Saúde Sexual, Reprodutiva e Genética Populacional na Faculdade de Medicina do ABC. Antes disso, coordenou por 24 anos o principal serviço de aborto legal do Brasil, no Hospital Pérola Byington, em São Paulo, atual Hospital da Mulher, hoje dirigido por Morris Pimenta e Souza.

“Na verdade, não é só uma proposta tosca. É perversa”, prossegue Drezett. “Querem oferecer um auxílio exclusivamente para mulheres que engravidaram após um estupro justamente porque elas têm direito ao aborto, por lei. É trabalhar de forma contrária a um dos pouquíssimos princípios legais a que as mulheres podem recorrer nessa situação.”

Municípios por todo o país instituíram, recentemente, o Dia do Nascituro, celebrado em 8 de outubro. É o caso de Mogi das Cruzes, José Bonifácio, São Carlos e Casa Branca, cidades paulistas que aprovaram a medida nos últimos três anos. É o caso também de Fortaleza (CE) e dos estados de Mato Grosso e Piauí. O Senado aprovou uma lei que inclui o Dia do Nascituro no calendário nacional. O projeto agora aguarda votação na Câmara.

A data foi criada pela Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em 2005, em Indaiatuba (SP), por ocasião da 43ª Assembleia Geral da instituição. O objetivo era “celebrar a vida desde o ventre materno”. Em outubro do ano passado, a CNBB comemorou que em “mais de sessenta cidades brasileiras” foram feitas passeatas em defesa do nascituro.

As datas não têm efeito prático, senão o da “conscientização”, como costuma dizer o texto dessas leis. Elas ajudam, no entanto, a politizar o aborto. Engrossam um caldo político que acaba se manifestando no dia a dia das mulheres. Hospitais e médicos sentem-se pressionados – ou autorizados – a recusar procedimentos abortivos. Por lei, profissionais de saúde podem alegar motivos de consciência pessoal para não realizar um aborto. Em tese, é obrigação dos hospitais encontrar outro médico que se disponha a prestar o serviço, já que se trata de um direito amparado pelo Código Penal. Mas isso nem sempre acontece.

Um exemplo de como essa pressão gera resultados aconteceu em 28 de fevereiro. Nesse dia, o Ministério da Saúde publicou a nota técnica conjunta nº 2/2024. Era um texto reafirmando o direito das mulheres de abortar nos casos previstos em lei a qualquer momento da gestação. Pode parecer redundância, mas não é: a nota tinha o objetivo de refutar outra nota, de número 44, publicada sob o governo de Jair Bolsonaro, que orientou como prazo máximo da gestação 21 semanas e 6 dias. Notas técnicas não têm poder de lei, mas servem para regular determinado tema e às vezes são usadas para respaldar decisões de médicos.

O estardalhaço foi imediato. No dia seguinte, a Gazeta do Povo publicou um artigo que dizia no título: “A ordem é matar a todos.” Damares tuitou: “Meu gabinete já estuda que medidas jurídicas e legislativas poderemos tomar contra essa cultura de morte.” Em questão de horas, o Ministério suspendeu a nota técnica. Um dia depois da suspensão, Eduardo Girão (Novo-CE), hoje o mais estridente senador antiaborto, foi à tribuna comemorar. “Houve um levante, um levante autêntico, legítimo dos brasileiros de bem, mostrando ‘Aqui, não!’”

A nota nº 2/2024 foi assinada pelos secretários de Atenção Primária à Saúde, Felipe Proenço de Oliveira, e de Atenção Especializada à Saúde, Helvécio Miranda Magalhães Júnior. O Ministério justificou o recuo dizendo que a nota “não passou por todas as esferas necessárias do Ministério da Saúde e nem pela consultoria jurídica”. Juristas argumentam que o trâmite alegado pelo governo não é necessário, nem habitual. “Nota técnica é nota técnica, feita em resposta a uma necessidade pública. Não precisa passar pela ministra da Saúde”, diz Henderson Fürst, da Comissão Especial de Bioética da OAB-SP. 

Carla acabou por sofrer um aborto retido, quando o feto morre dentro do útero e não sai espontaneamente. Um ultrassom revelou que ele não tinha batimentos cardíacos. Para não ter de passar por mais um hospital e mais um constrangimento, ela optou por expelir o feto naturalmente em casa. 

Questionada pela piauí sobre a conduta do Hospital Maternidade Vila Nova Cachoeirinha, a Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo respondeu apenas que “os equipamentos de saúde da rede estão orientados a informar quais são os hospitais que possuem equipe de acolhimento para realização do procedimento de aborto legal”. Não explicou por que o hospital não agendou o atendimento de Carla em outra unidade, conforme manda a Justiça.

A piauí também procurou a Secretaria Estadual da Saúde (SES). Após a publicação da reportagem, a pasta enviou a seguinte nota: “A Secretaria de Estado da Saúde (SES) informa que vai apurar o caso citado pela reportagem e que cumpre todas as recomendações legais para a realização do procedimento. Atualmente, existem 12 unidades em diferentes pontos do estado para a realização do aborto previsto em lei.” Segundo a Secretaria, o Hospital da Mulher – onde se exigiu de Carla um boletim de ocorrência – é a principal referência no atendimento a vítimas de violência sexual no estado.

* A reportagem adotou um nome fictício para preservar a identidade da personagem.

 
 
Mônica Manir
Mônica Manir

É jornalista. Publicou os livros Por um ponto final (Com-Arte) e Diário de uma fadiga (Cancioneiro).

 
fonte: https://piaui.folha.uol.com.br/a-politica-da-obstrucao-aborto-legal/
 
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