Nesta quarta-feira (12), a Câmara dos Deputados votou a urgência do projeto que altera o Código Penal e estabelece a aplicação de pena em casos de aborto em fetos com mais de 22 semanas. Em abril, CFM emitiu norma proibindo médicos de realizarem assistolia fetal em casos de aborto oriundos de estupro após 22 semanas.
Por Mariana Garcia, g1
Manifestante pede aborto legal, seguro e gratuito no Dia Internacional da Mulher, em São Paulo — Foto: ETTORE CHIEREGUINI/ESTADÃO CONTEÚDO
A Câmara dos Deputados votou nesta quarta-feira (12) a urgência de um projeto de lei que equipara aborto a crime de homicídio. O texto altera o Código Penal e estabelece a aplicação de pena de homicídio simples nos casos de aborto em fetos com mais de 22 semanas nas situações em que a gestante:
- provoque o aborto em si mesma ou consente que outra pessoa lhe provoque; pena passa de prisão de 1 a 3 anos para 6 a 20 anos
- tenha o aborto provocado por terceiro com ou sem o seu consentimento; pena para quem realizar o procedimento com o consentimento da gestante passa de 1 a 4 anos para 6 a 20 anos, mesma pena para quem realizar o aborto sem consentimentos, hoje fixada de 3 a 10 anos.
A proposta também altera o artigo que estabelece casos em que o aborto é legal. Conforme o texto, só poderão realizar o procedimento mulheres com gestação até a 22ª semana. Após esse período, mesmo em caso de estupro, a prática será criminalizada. Vale lembrar que a lei brasileira não prevê um limite máximo para interromper a gravidez de forma legal.
Aborto em debate
Em abril, o Conselho Federal de Medicina (CFM) criou, na visão de especialistas ouvidos pelo g1, mais uma barreira para as vítimas de estupro que procuram o aborto legal. A entidade emitiu uma norma proibindo médicos de realizarem a assistolia fetal em "casos de aborto previsto em lei oriundos de estupro".
A norma chegou a ser suspensa pela Justiça Federal em Porto Alegre, mas voltou a valer no final de abril, quando o Tribunal Regional Federal da 4ª Região derrubou a liminar anterior.
Em maio, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes suspendeu a resolução. Na decisão, Moraes considerou que há indícios de que a edição da resolução foi além dos limites da legislação. A decisão do ministro vai a referendo em julgamento no plenário virtual a partir do dia 31 de maio.
A assistolia fetal consiste em uma injeção de produtos que induz à parada do batimento do coração do feto antes de ser retirado do útero da mulher. O procedimento é recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para casos de aborto legal acima de 22 semanas.
Se o procedimento é feito antes das 22 semanas, o Ministério da Saúde orienta que o profissional ofereça à mulher a opção de escolha da técnica a ser empregada: o abortamento farmacológico (induzido por medicamentos), procedimentos aspirativos (como a aspiração manual intrauterina) ou dilatação seguida de curetagem.
No entanto, a resolução do CFM vai contra o que diz a lei brasileira, que não prevê um prazo máximo para interromper a gravidez de forma legal.
Para Flávia Nascimento, coordenadora de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, “o CFM está na contramão da garantia da qualidade no atendimento obstétrico no Brasil”.
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Aborto previsto em lei
O aborto é crime no Brasil, mas existem três situações em que ele é permitido. São os casos de aborto legal:
- anencefalia fetal, ou seja, má formação do cérebro do feto;
- gravidez que coloca em risco a vida da gestante;
- gravidez que resulta de estupro.
Para os casos de gravidez de risco e anencefalia, é necessário apresentar um laudo médico que comprove a situação. Além disso, um exame de ultrassonografia com diagnóstico da anencefalia também pode ser pedido.
Já para os casos de gravidez decorrente de violência sexual - e estupro engloba qualquer situação em que um ato sexual não foi consentido, mesmo que não ocorra agressão -, a mulher não precisa apresentar Boletim de Ocorrência ou algum exame que ateste o crime. Basta o relato da vítima à equipe médica.
Apesar de parecer simples, não é. Mesmo que não seja necessário "comprovar" a violência sexual, muitas mulheres (e meninas) sofrem discriminação nos serviços de saúde na hora de buscar o aborto legal.
"Há muitos questionamentos quando a mulher relata que foi vítima de violência sexual. A legislação não exige que se faça o registro de ocorrência, só é preciso seguir um protocolo no serviço de saúde. Mas muitas mulheres sofrem discriminação por exercer esse direito, têm a palavra invalidada, tanto no serviço de saúde quanto em delegacias", afirma Flávia Nascimento, coordenadora de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Rio de Janeiro.
Quando decidem impor uma "data limite" para que as vítimas de violência sexual procurem o aborto previsto em lei, estão invalidando todas as questões que envolvem a tomada de decisão.
"Quem atende essas pessoas que procuram o aborto legal sabe que meninas e jovens adolescentes demoram mais para acessar o serviço. Muitas delas nem tiveram a primeira menstruação, não compreendem que sofreram uma violência, não tem acesso à informação. Além de passar pela violência, elas ainda correm risco de vida ao levar a gestação para frente", diz Flávia Nascimento.
Quanto mais a gestação se desenvolve no corpo de uma menina, maior o risco dessa gestação à saúde da mãe (e aí já são duas situações previstas em lei: o estupro e o risco à vida da gestante).
Henderson Fürst, presidente da Comissão Especial de Bioética e Biodireito da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil), lembra que as vítimas de estupro não esperam passar as 22 semanas de gestação por "capricho". Existem diversos motivos que podem levar a essa procura tardia.
"70% dos casos de estupro de meninas no Brasil acontecem dentro de casa, com pessoas conhecidas ou mesmo familiares sendo os agressores. A família demora para descobrir e quando descobre, fica no dilema de denunciar ou não. Aí o tempo passa, não existe um serviço próximo, é necessário viajar, mas não tem dinheiro para arcar. São incontáveis barreiras", relata.
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Descriminalização do aborto no Brasil
O aborto é crime no Brasil e a regra prevê que a mãe e os demais envolvidos no procedimento podem ser processados.
Em setembro de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) começou a julgar a ação para descriminalizar o aborto feito por mulheres com até 12 semanas de gestação. A ministra Rosa Weber era relatora do processo e registrou seu voto a favor da descriminalização. O ministro Luís Roberto Barroso, presidente do STF, pediu destaque no julgamento e a votação foi suspensa.
Em fevereiro, Barroso disse em entrevista que o STF não julgará a ação neste momento. Para ele, não cabe neste momento ao Supremo decidir sobre uma prática que a maioria da população é contra e o Congresso também expressa esse sentimento.
Comentarista de política e economia da GloboNews.
De olho na sucessão de Lira, Câmara promove retrocessos em aborto e delação
O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), em imagem de abril de 2024 — Foto: WILTON JUNIOR/ESTADÃO CONTEÚDO
Se está acuada de um lado, por causa das brigas em comissões, de outro, a Câmara dos Deputados, de olho na sucessão de sua presidência, ameaça promover retrocessos em dois temas que agradam aos apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro: aborto e delação.
E tudo feito a toque de caixa, sem discussão em assuntos que deveriam ser debatidos profundamente.
Nesta quarta-feira (12), os deputados deram uma satisfação à sociedade aprovando um projeto para acelerar a punição de deputados brigões, mas, logo em seguida, os parlamentares pisaram no acelerador dos retrocessos.
Primeiro, a Casa aprovou a urgência para o projeto que proíbe presos de firmarem acordos de delação premiada, um golpe fatal no combate à corrupção, do jeito que boa parte da Câmara deseja.
Câmara acelera projetos que limitam delações e equiparam aborto a homicídio
Depois, quase de forma escondida, em poucos segundos foi aprovada a urgência para o projeto que equipara o aborto a crimes de homicídio quando praticados depois de 22 semanas de gestação, uma decisão tomada na correria para atender oposicionistas que desejam testar o presidente Lula. Uma pauta conservadora, que pode ser aprovada por um plenário formado em sua maioria por homens decidindo um assunto que atinge mulheres.
Aprovar o regime de urgência para este tipo de projeto, cortando caminhos para seguir direto para o plenário, é um absurdo.
Especialistas e mulheres deveriam ser ouvidas em comissões sobre o assunto, a sociedade teria de ser consultada, antes de qualquer avanço na tramitação. Mas o que está pesando é a busca de apoios para que Arthur Lira (PP-AL) tenha controle sobre sua sucessão.
No caso do aborto, teremos uma situação esdrúxula. A mulher estuprada pode ser condenada a uma pena superior ao de seu estuprador. Sem falar que, hoje, as principais vítimas de estupro no país, cerca de 40%, são pré-adolescentes, que descobrem a gravidez tardiamente. Se o projeto for aprovado, podem ser condenadas como se tivessem praticado um homicídio nas ruas.
A expectativa é que a reação contrária leve o presidente da Câmara, Arthur Lira, a evitar colocar o projeto em votação. Infelizmente, ficará sempre como uma arma para obter apoio de opositores do governo na sua sucessão. Tomara que, em nome das mulheres, ele não adote esse caminho.