Quase lá: Feitiço contra o feiticeiro? Maré Verde pela legalização do aborto avança no Brasil

Desde que a Câmara dos Deputados tentou tocar a tramitação do PL 1904, a chamada “Maré Verde” pela legalização do aborto - que já vinha em ascensão por aqui e em toda a América Latina há anos - ganhou fôlego e vive um novo e importante ciclo de protestos.

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Nas últimas duas semanas, milhares de mulheres ocuparam as ruas e as redes em todo o Brasil para mostrar indignação contra o PL 1904/2024. Como se sabe, o projeto de lei de autoria do deputado federal evangélico Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), integrante da Frente Parlamentar contra o Aborto e em Defesa da Vida, pretende equiparar o aborto realizado depois de 22 semanas de gravidez ao crime de homicídio, com pena de até 20 anos. Isso valeria inclusive nos casos de estupro e de risco à vida da gestante, em que o aborto é permitido por lei desde 1940. A reação contra essa tentativa de retrocesso pode estar sendo muito mais poderosa do que se poderia imaginar.

Desde que a Câmara dos Deputados tentou tocar a tramitação do PL 1904, a chamada “Maré Verde” pela legalização do aborto - que já vinha em ascensão por aqui e em toda a América Latina há anos - ganhou fôlego e vive um novo e importante ciclo de protestos.

A importância dessa reação se reforça com a constatação de que o PL é a ponta de um imenso iceberg. A quatro meses das eleições municipais de 2024, mais uma vez o ataque ao aborto e aos direitos das mulheres está no centro das estratégias eleitorais de setores da direita. Mas engana-se quem vê nisso somente um “meio” para mobilizar bases e atrair votos. É também um fim em si mesmo, uma agenda política intencional de negação de direitos reprodutivos, sexuais e sociais às mulheres e pessoas que gestam.

Para situar a agenda antiaborto como um projeto de largo prazo, é útil reconstituir a sequência recente de acontecimentos que antecedeu a criação do PL 1904. Em dezembro de 2023, a prefeitura de São Paulo suspendeu o serviço de aborto legal do Hospital Vila Nova Cachoeirinha, um dos principais do país e um dos poucos a realizar o procedimento em casos de gestações avançadas. Profissionais foram obrigados pela secretaria de saúde a entregar prontuários de pacientes, o que é ilegal e viola o sigilo médico. Alguns deles estão sendo processados pelo Conselho Regional de Medicina de São Paulo pelo simples fato de terem tentado cumprir seu dever médico.

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Para dirimir esta insegurança jurídica, que leva muitos profissionais a negar o aborto legal em gestações avançadas, o Ministério da Saúde emitiu em fevereiro de 2024 uma nota técnica em que reafirmava que a lei não impõe limite de tempo. A bancada evangélica reagiu e a nota técnica foi revogada menos de 24 horas depois.

Em abril, o Conselho Federal de Medicina (CFM) emitiu uma resolução que proíbe médicos de realizarem a assistolia fetal em casos de gravidez decorrente de estupro.

Esta técnica é tida como a mais segura e ética disponível hoje para a interrupção tardia de gestações, e é recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), pela Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (FIGO) e pela Rede Médica Pelo Direito de Decidir do Brasil.

Em seguida, o PSOL entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF), a ADPF 1141, questionando a constitucionalidade da resolução do CFM. Em 17 de maio, o STF concedeu liminar suspendendo a resolução até que a ADPF seja julgada. No mesmo dia, Sóstenes Cavalcante apresentou o PL 1904, que em menos de um mês teve sua tramitação em regime de urgência aprovada.

O PL é, assim, o resultado mais recente de uma série de movimentos e contramovimentos que envolvem diversos atores, instituições e setores sociais. Materializa uma disputa que não se limita aos últimos eventos ou às próximas eleições, mas está em curso desde pelo menos a Redemocratização do país, além de ser um fenômeno global.

Ao longo deste processo, o campo antiaborto se especializou na produção de pânicos morais (Cohen, 1972) para promover sua bandeira, isto é, investiu na definição do aborto, das mulheres que abortam e dos grupos que defendem o direito ao aborto como uma ameaça aos valores sociais, em especial à “família” e à “criança”. Performar o sofrimento do feto, estrategicamente chamado de “bebê”, é central para a eficácia do pânico moral, pois o qualifica como vítima e pessoa dotada de direitos (Luna, 2014), além de enquadrar o aborto como “crueldade” e “assassinato”. É assim que nos repertórios de protesto do campo antiaborto, abundam imagens de “bebês” ensanguentados e miniaturas de fetos, que incitam emoções de indignação e horror.

Desde que as redes digitais se consolidaram como arena pública de disputa, as imagens se tornaram recursos fundamentais para incitar o engajamento emocional e político das pessoas. Os repertórios de pânico do campo antiaborto, ricos em imagens com alta carga moral e afetiva, encontraram nas redes digitais o ambiente ideal de reprodução e capilarização.

O campo feminista pró-legalização, por sua vez, tem historicamente investido no enquadramento do aborto como “questão de saúde pública”, a partir de marcos do direito, da ciência, da educação e do cuidado. Tais interpretações são elaboradas em linguagens mais institucionais como, por exemplo, na litigância estratégica e em cartilhas, cuja tradução no ambiente veloz e emotivo das redes digitais é um desafio.

Mas quando o PL 1904 foi colocado em regime urgência, os movimentos feministas e de mulheres rapidamente o transformaram numa oportunidade política. As hashtags #CriançaNãoÉMãe e #PLda GravidezInfantil foram as primeiras estratégias discursivas empregadas, com as quais o campo pró-legalização se apropriou da figura da “criança em sofrimento”.

Embora o PL criminalize a todas as mulheres e pessoas com capacidade de gestar, as feministas foram bem-sucedidas em enfatizar o impacto para as mais “vulneráveis”: meninas que engravidam em decorrência de estupro e respondem pela maior taxa de abortos legais tardios, quando chegam a acessar este direito. A estratégia permitiu qualificar como vítimas as “crianças estupradas e obrigadas a gestar”, não o feto. Em seguida, #PLdoEstuprador passou a ser utilizada também, associando aos antiaborto o estigma monstruoso do “pedófilo” (Lowenkron, 2015).

Ao jogar o feitiço contra o feiticeiro, a campanha mobilizou públicos para além das bolhas ativistas e acuou apoiadores do PL. Profissionais da saúde, também criminalizados pelo projeto, engrossaram o coro, agregando à campanha a legitimidade e autoridade do campo médico-científico. O sucesso da mobilização se traduziu no aumento da capacidade do campo pró-legalização de disputar na arena pública termos antes capturados pelos setores antiaborto, como “infância”, “vida”, além da própria noção de “estupro”.

Normalmente enunciado como exceção, o estupro foi escancarado como violência cotidiana, cometida e silenciada sobretudo dentro de casa, o que permitiu questionar também o ideal de “família” frequentemente mobilizado pelo campo opositor. Como me disse uma liderança feminista, “fizemos do limão uma limonada”. Bem verde.

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Paulo Mussoi
Editor Executivo




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