Verônica Ferreira
Assistente Social e Educadora do SOSCORPO - Instituto Feminista para a Democracia
O mundo do trabalho em nossos dias é um cenário repleto de mudanças. Nas três últimas décadas, ocorreram reconfigurações substanciais na dinâmica da produção capitalista, com o processo de reestruturação da produção. Trata-se de mudanças na dinâmica capitalista voltadas para retomar os níveis de produtividade e consumo e as altas taxas de lucro nos países, em especial nos países ricos, que acirraram as desigualdades sociais. Este processo atinge em particular as mulheres, como procurarei apontar brevemente a seguir.
Em um contexto em que se apontam importantes discussões e proposições no bojo das Reformas Trabalhista e Sindical, é imperioso deter-se sobre a realidade do trabalho das mulheres para construir estratégias de incidência política no horizonte da igualdade.
Recentemente, a Revista Caros Amigos publicou matéria sobre as possibilidades de emprego que se oferecem às mulheres pobres e de baixa escolaridade. A jornalista submeteu-se a diversas formas precárias de emprego: como diarista, cuja situação de trabalho e vida em nada se assemelha à "dona do jogo" do programa de TV; em trabalhos manuais e repetitivos dos quais retirou, além da exaustão, uma mísera remuneração por peça; aos "trabalhos inúteis", como vigia de placas e outdoors, junto a outras mulheres jovens1.
As feministas têm demonstrado que o trabalho das mulheres não se resume ao âmbito da produção - de bens e serviços - mas também ao campo da reprodução social - das atividades relacionadas ao cuidado das pessoas, como a alimentação, a saúde etc. A produção teórico-política e a práxis feminista contribuiu para alargar o campo do trabalho para além do produtivo, instaurando novas questões para a luta política.
Vivenciamos hoje a realidade delineada pela mudança no modelo de acumulação do capitalismo nas últimas décadas. Uma das primeiras marcas deste processo é a exigência de um novo tipo de mão-de-obra: polivalente, multi-especializada, capaz de realizar diversas tarefas ao mesmo tempo e de modo criativo. No caso das mulheres, é uma das características exigidas atualmente nas empresas e, na maioria das vezes, associada a "atributos femininos naturais", tornando-as mão-de-obra preferencial. A ocupação dos postos de trabalho continua vinculada às chamadas "qualidades femininas" e a uma idéia de "feminilidade" que atrela mulheres a determinadas funções, percebidas em geral como extensões das tarefas domésticas e assim desvalorizadas.
A exigência de flexibilidade nas formas de contratação são difundidas como necessidades vitais para o crescimento econômico e do emprego nos países pobres, sendo esta uma questão central na Reforma Trabalhista. Os custos com o trabalho formal - direitos trabalhistas, condições de trabalho, enfim, direitos conquistados pela atuação dos movimentos sindicais e outros movimentos sociais - são responsabilizados pela crise, pela redução da taxa de lucro, pela estagnação da economia que, para retomar sua movimentação, precisa desonerar-se.
Disto emergem novas relações de trabalho, baseadas na flexibilidade ou, em verdade, na precarização destas relações, que são desregulamentadas através de contratos temporários, da terceirização, do trabalho em domicílio, pago por peça, da sub-contratação, do trabalho parcial etc. São as mulheres aquelas que ocupam hoje os postos mais precários de trabalho.
De outro lado, a divisão sexual no mercado formal e por setores de trabalho persiste. Segundo as pesquisas de Helena Hirata2, as mulheres ocupam no setor formal, como as indústrias, os postos de "trabalho intensivo", nos quais prevalece o trabalho manual, repetitivo e escasso em tecnologias, enquanto nos postos dos homens predominam os maiores investimentos de capital em tecnologias de produção ("capital intensivo").
Em meio a estas reconfigurações, uma dimensão permanece intocável: o trabalho doméstico. Este imenso quantum de trabalho realizado pelas mulheres permanece invisível e desvalorizado tanto social como economicamente. O tempo de trabalho com a esfera de reprodução social, como assinala a socióloga Maria Betânia Ávila, não é contabilizado e nem considerado na organização social do tempo. Mesmo tomando grande parte do tempo de vida das mulheres, não existe para o capital nem para o Estado e sua inexistência é instrumental para a acumulação capitalista, para a desresponsabilização do Estado e para a sujeição das mulheres.
A questão do trabalho doméstico é dilemática para o feminismo: ao mesmo tempo em que precisa ser reconhecido em seu valor social e econômico e como trabalho, não se pode perder de vista o fato de ser um trabalho "delegado" exclusivamente às mulheres, que toma do seu "tempo para si" e que está na base das desigualdades de poder e na dificuldade em se constituírem enquanto sujeito.
Para atuarem no mercado formal e estudarem, as mulheres de classe média e alta, "delegam" estas atividades às mulheres pobres, em sua maioria negras (60% das empregadas domésticas do País), através do emprego doméstico. Já as mulheres pobres, ou trabalham em múltiplas jornadas para conciliar os tempos de trabalho fora e dentro de casa ou apenas lhes resta a "conciliação" inevitável, através da extensão da jornada, ou o apoio de outras mulheres, da própria família ou da comunidade. As mulheres liberam o tempo das outras (Ávila,2002)3. Ressalte-se ainda que, para muitas empregadas domésticas, isto significou - e ainda significa - a supressão de suas vidas pessoais e familiares para que se dedicassem exclusivamente ao cuidado da família de outrem.
O trabalho de mulheres no setor de serviços também se expande, em situações de informalidade e precariedade extremas, e o emprego doméstico responde por grande parte deste crescimento, permanecendo como ocupação das mulheres pobres e negras. Nas zonas rurais, o lugar das mulheres pouco se transformou e o emprego doméstico continua sendo uma alternativa diante da pobreza. As políticas de geração de emprego e renda não superam a divisão sexual do trabalho e a diversificação econômica - possibilidade de ocupação e autonomia financeira para as mulheres - não tem sido priorizada.
Considerando estas facetas, cabe ao feminismo pensar o trabalho doméstico à luz da divisão sexual do trabalho, questionando esta mesma divisão, como também à luz das relações sociais de classe e de raça. Se o emprego doméstico cresce, é justamente porque a divisão sexual do trabalho doméstico não se modificou. Conforme já apontado na última edição do jornal Fêmea, este será um dos mais intensos debates no Congresso Nacional este ano, considerando os projetos de lei em tramitação sobre a matéria.
Por fim, pensar sobre as mulheres e o trabalho na atualidade remete a questões importantes das políticas públicas no contexto do neoliberalismo e de ajuste estrutural. As políticas focalizadas, em especial aquelas baseadas na idéia de família, têm se valido do trabalho realizado pelas mulheres dentro de suas casas, por exemplo, no cuidado da saúde da família, como ocorre com o PSF4.
Todas essas facetas não são uma realidade nova para as mulheres, pois dizem respeito aos lugares e às relações de trabalho a que historicamente estiveram submetidas e que se baseiam na exploração e na opressão. A maior fragilidade na capacidade de resistência e organização das mulheres também é apropriada pelo capital e nos remete ao desafio de fortalecer a organização das mulheres.
São muitas as questões em jogo e cada uma delas carrega em si suas contradições e seus desafios. Contradições e desafios que são, desde há muito, a nossa tarefa.
(1) Revista Caros Amigos. Edição 94. Janeiro de 2005.
(2) HIRATA, H. Nova divisão sexual do trabalho? Um olhar voltado para a empresa e a sociedade. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002.
(3) Ávila, M. B. O tempo e o trabalho das mulheres. In Costa, A. et. al. Um debate crítico a partir do feminismo: reeestruturação produtiva, reprodução e gênero. São Paulo: CUT, 2002.