O porquê de o aborto ser um dos temas mais polêmico da humanidade merece uma reflexão. Será apenas porque o aborto evita um nascimento ou tem algo mais por traz desta afirmativa?
O Fêmea deste mês se dedica a apresentar o tema por meio de várias falas e, como não poderia deixar de ser, são falas a favor do direito de escolha da mulher na ótica feminista, compromissada com a saúde e na busca do cumprimento por parte do Estado da sua obrigação de oferecer às mulheres o acesso ao aborto, de forma digna e segura.
Instrumentos internacionais, frutos de consensos em encontros promovidos pela Organização das Nações Unidas (ONU), em especial o Plano de Ação do Cairo (1994), a Plataforma de Ação de Beijing (1995), o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1992) recomendam uma revisão em todas as legislações nacionais punitivas sobre aborto e recomendam garantias às mulheres de acesso a serviços que permitam a realização do aborto com segurança.
No Brasil, a exemplo de muitos outros países, as mulheres, em especial as feministas, têm, há algumas décadas, reivindicado o direito de decidir sobre quando, como e quantos filhos terão. Toda essa preocupação se dá por ser o aborto um ato personalíssimo da mulher. É ela que vai ter que conviver com a decisão tomada de se submeter ou não a um abortamento. Os homens, partícipes da reprodução, em grande maioria, não são partícipes da decisão do abortamento nem da criação d@s filh@s e, em muitas ocasiões desconhecem, inclusive, a gravidez que compartilhou.
No âmbito dos movimentos de mulheres e feministas, várias frentes se formaram entre elas as Jornadas Brasileiras para Garantia do Aborto Legal e Seguro, composta de dezenas de organizações e centenas de mulheres, que lutam para que o tema do aborto seja debatido na sociedade e para demonstrar que esta questão deve se basear no princípio da laicidade do Estado, uma questão de direitos humanos e dignidade das mulheres para, finalmente, o aborto ser considerado um problema de saúde pública, uma vez que já está incluído na quarta causa de mortalidade materna e que é responsável por seqüelas irreparáveis às mulheres.
Não se tem provas concretas de como as mulheres da pré-história ou após este período, controlavam a fecundidade. Com certeza não era apenas através do "efeito aleitamento materno", nem, posteriormente, com a "tabelinha". As mulheres usavam e ainda usam ervas, chás, ungüentos, outros produtos naturais ou tóxicos. Fazem auto-aborto com sondas ou com apoio de pessoas inescrupulosas, expondo sua saúde e vida a riscos irreparáveis. Sabe-se, entretanto, que a decisão de fazer um aborto não é fácil. Nenhuma mulher, em sã consciência, busca uma gravidez exclusivamente para praticar o aborto. Este ato é considerado extremo, quando não têm acesso a um método contraceptivo científico e seguro, ou ele falha.
Na nossa história legislativa, o Código Criminal do Império (1830) não previa crime para o aborto praticado pela própria mulher em si (auto-aborto) nem para o aborto praticado por terceiros, com o consentimento da mulher. O que era protegido (bem tutelado) era a segurança da pessoa e da vida. Em 1890, com o Código Penal da República, foi ampliada a imputabilidade para o auto-aborto. Havia atenuante se era praticado para ocultar a desonra própria. Este Código trouxe a figura do aborto legal ou necessário, praticado para salvar a gestante de morte inevitável.
O aborto, como um crime contra a vida foi introduzido pelo Código Penal de 1940, em todas as hipóteses, excluindo de punibilidade apenas para o aborto necessário - se não há outro meio de salvar a vida da gestante - e o aborto no caso de gravidez resultante de estupro.
Apesar de constar no nosso Código Penal e ser praticado em larga escala, o aborto sempre foi pouco discutido na sociedade, até um período recente, reservando-se sua prática aos espaços privados. São as paredes de um quarto que testemunham a dor e o sofrimento de mulheres que buscam este meio para evitar a procriação. E o Estado, responsável pelo bem estar de suas/seus cidadãs e cidadãos, atua com base em uma legislação que exige que a mulher passe por um dos dois sofrimentos para ter direito a um aborto seguro: quando é violentada ou quando está em vias de perder sua vida. E até para estas formas legais de interromper uma gravidez, existem parlamentares querendo retirar o direito das mulheres. É o que vemos no Congresso Nacional, em alguns projetos de lei que lá tramitam. E, em nome de quê? Será em nome de um fanatismo religioso ou será para demonstrar que a mulher é e deve continuar a ser um objeto reprodutor da humanidade, sem direito a ter escolha, sem direito a decidir até sobre seu corpo?
Hoje, para a sociedade, as mulheres são as vítimas e as vilãs do aborto clandestino, inseguro, ilegal e mal feito. Principalmente as mulheres pobres, em especial as negras. Para as mulheres ricas, existem clínicas seguras, protegidas de infecções, onde não existe um vizinho ou conhecido que vá denunciá-las.
Na verdade, haja ou não legislação proibitiva, haja ou não religião que o condene, o aborto sempre foi e sempre será praticado, pois a reprodução é inerente de todo ser vivo como é inerente à mulher a vontade de quando ser ou não reprodutiva. Desta forma está provado que, considerá-lo crime ou pecado, não tem reduzido as estatísticas que, ao contrário, vêm aumentando de forma drástica em nossa sociedade.
Assim sonhamos que, dia virá em que o aborto seja uma questão onde "as mulheres decidem, a sociedade respeita, o Estado garante".